POR VLADIMIR PASSOS DE FREITAS
A Associação dos Magistrados Brasileiros publicou, em 16 de abril passado, moção de apoio da Federação Latinoamericana de Magistrados (FLAM), à juíza venezuelana María Lourdes Afiuni Mora, presa desde dezembro de 2009.
Segundo a notícia, “a magistrada, que atuava em Caracas, está sendo mantida em uma cela comum no Instituto Nacional de Orientação Feminina na cidade de Los Teques, distante uma hora da capital. María Afiuni convive com mulheres que, inclusive, foram condenadas por ela. Há relatos de atentados contra a vida da magistrada, que se mantém isolada na cela para evitar agressões pelas demais detentas” (http://www.amb.com.br/index.asp?secao=mostranoticia&mat_id=20546, acesso em 30 de abril de 2010).
Atribui-se à juíza da Venezuela o fato de ter posto em liberdade o banqueiro Elígio Cedeño, que se achava preso desde 2007, por suspeição de fraude bancária. Em dezembro, por ausência do Ministério Público, uma audiência foi adiada e a juíza autorizou Cedeño a cumprir prisão domiciliar, retendo o seu passaporte. Para o governo, o ato judicial teve natureza política e visava permitir que o preso fugisse para os Estados Unidos.
Cumpre, inicialmente, esclarecer quem é a FLAM e quais são os seus propósitos. Trata-se de entidade fundada em 1977, em Santiago, Chile, que congrega associações nacionais de juízes. Segundo o desembargador gaúcho Guinter Spode, que foi seu presidente, “verifica-se claramente tratar-se de entidade que tem basicamente uma finalidade, qual seja, contribuir para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, mediante o exercício da função jurisdicional orientada por valores que traduzem os direitos fundamentais da humanidade” (Direito e Administração da Justiça, Juruá Ed., 2006, p. 98).
Em um passo seguinte, cumpre registrar que a Constituição da República Bolivariana da Venezuela, publicada em 30 de dezembro de 1999, estabelece que se trata de um Estado Federal como o Brasil (art. 4º) e que o Poder Público Nacional se divide em Legislativo, Executivo e Judicial, seguindo a tripartição de Poderes de Montesquieu (art. 136º). No entanto, proíbe aos membros da Magistratura, do Ministério Público e da Defensoria Pública que se reúnam em associação de classe, como garantia de atuação imparcial e independente (art. 256º)
Mas, afinal, o que se atribui à juíza Afiuni?
Segundo consta, o Ministério Público apresentou denúncia ao 50º Tribunal de Controle de Caracas, atribuindo à magistrada irregularidades na soltura do banqueiro e a presunção de ter cometido os crimes de corrupção ativa, abuso de autoridade e favorecimento para a evasão, previstos na Lei Contra a Corrupção e no Código Penal (site http://informe21.com/maria-lourdes-afiuni, acesso em 30 de abril de 2010).
O processo está em andamento, sob a presidência da juíza Leidys Azuaj. No dia 13 de abril, seria realizada uma audiência, mas foi adiada por ser dia de celebração de festividade nacional. Houve o adiamento para amanhã, dia 3 de maio. O advogado da acusada reclama de excesso de prazo na prisão e insiste em seu pedido de liberdade.
Não cabe a um país julgar as decisões judiciais de outro. Todavia, excepcionalmente isto pode ocorrer (a Espanha processou e julgou o ditador chileno Augusto Pinochet). Nada impede, por outro lado, que se faça análise comparativa entre sistemas judiciais diversos. Ao contrário, isto é altamente positivo, pois pode significar o aprimoramento de nossas instituições.
No caso da juíza Afiuni, sem avançar no mérito da acusação, algumas observações merecem ser feitas. E a primeira delas é a de que o empresário Cedeño, posto em liberdade, se achava preso desde 2007. Há aí, para os padrões brasileiros, um prazo excessivo na prisão cautelar que, certamente, seria aqui objeto de decisão semelhante, ou seja, de ordem judicial de soltura.
Em seguida, não há como distinguir a diversidade de tratamento dado à juíza no país vizinho. Aqui nenhum juiz foi preso por conta de decisão judicial. Até onde vai minha memória, isso não aconteceu nem nos tempos de ditadura, seja na época do Estado Novo e do seu repulsivo Tribunal de Segurança Nacional, seja na época da ditadura militar (1964-1985).
É dizer, o juiz brasileiro tinha, tem e espera que assim seja sempre, respeitadas as suas decisões judiciais e assegurada a liberdade de decidir, não apenas pelas garantias constitucionais de que desfruta, como pela consciência geral de que isto é uma garantia de todos à liberdade. Juízes medrosos não julgam imparcialmente.
Em um terceiro passo, vê-se que no Brasil a prisão da juíza não seria mantida. Não ofereceria um juiz brasileiro, em condições semelhantes, nenhum risco à sociedade. Afastado de suas atividades, sem o seu único instrumento de poder, que é a caneta, evidentemente, nenhum perigo representaria para a sociedade. Não haveria justificativa para a prisão cautelar.
Diante de um quadro inusitado como esse, bem andou a FLAM, entidade latino americana de magistrados, em promover a defesa da magistrada venezuelana. Aí não está em jogo apenas o drama vivido pela juíza Afiuni. Está em cena muito mais. A própria independência da magistratura. A admitir-se que nesse ou naquele país se atente contra a autonomia do Judiciário como Poder de Estado é criar um precedente e, no futuro, quem se calou pode ser vítima.
Por isso a gravidade da situação mereceria no Brasil divulgação e posicionamento mais firmes. Está-se diante de algo que afeta a todos. Não apenas aos 15 mil juízes brasileiros, mas também à sociedade. Casos como este são emblemáticos e merecem análise de cada associação de magistrados, das grandes às pequenas, das nacionais às regionais. O interesse aí transcende aos corporativos. Vai muito além.
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