OLAVO DE CARVALHO
Falso amor à justiça: Brasil-Mentira I
http://www.olavodecarvalho.org/semana/090409dc.html
Este é o primeiro de uma série de cinco artigos com o tema Brasil-Mentira.
Nação nenhuma tem o monopólio da imoralidade, mas algumas foram dotadas com uma quota extra que as torna exemplos de escolha numa investigação de filosofia moral. Ao incluir o Brasil entre elas, não tenho em vista as famosas taxas nominais de corrupção, onde, ao contrário, as comparações com outros países têm até um efeito consolador sobre as almas dos nossos compatriotas. Refiro-me a fenômenos de outra ordem, mais difíceis embora não impossíveis de quantificar. Já observei mais de uma vez que a nossa literatura de ficção, escassa em personagens de grandeza excepcional, santos, heróis ou monstros, é rica em figuras de minúsculos farsantes, mentirosos, fingidores compulsivos e semiloucos de vários matizes, que se abrigam numa esfera de irrealidade, fugindo da própria consciência. Com uma ou duas exceções, os personagens do maior e mais significativo dos nossos romancistas são todos assim. Também o são os de Lima Barreto, Raul Pompéia, Marques Rebelo, Annibal M. Machado e tantos outros, sendo até covardia lembrar a figura de Macunaíma, na qual os brasileiros se reconhecem tão facilmente, e cuja veracidade sociológica é atestada por um milhão de piadas populares que mostram os nossos conterrâneos em traços bem parecidos com os dele.
Uma vaga consciência de que há algo de errado com os padrões de moralidade da nossa gente perpassa as conversas familiares, as crônicas de jornal, os espetáculos de cinema e teatro, as novelas de TV, etc., e alimenta algumas discussões de mais alto nível, como aquelas que aparecem em livros de Paulo Prado, Mário Vieira de Melo, J. O. de Meira Penna, Roberto da Matta, Ângelo Monteiro. O que aí se destaca não é a propensão à criminalidade propriamente dita, mas uma tendência quase incoercível a preferir antes o fingimento do que a sinceridade, antes a aparência artificialmente construída do que a realidade conhecida. É como se o brasileiro não acertasse jamais falar com a sua própria voz, sentindo-se antes compelido, por um intenso desejo de aprovação – também ele camuflado –, a imitar o tom das conveniências momentâneas.
Desde os tempos de Lima Barreto, não se atenuou nem um pouco o vício nacional de sacrificar a ambições mesquinhas, se não à busca obsessiva de segurança contra perigos imaginários, os impulsos mais altos do espírito humano, condenando-os, não raro, como tentações pecaminosas, provas de vaidade, cobiça, pedantismo ou desprezo pelos semelhantes. As vocações intelectuais e artísticas são aí especialmente sacrificadas, não só quando se vêem esmagadas pela pressão e pela chacota do ambiente, mas até mesmo quando se realizam, porque o fazem num sentido oportunístico e farsesco, o único possível nessas condições, que as transforma em caricaturas de si mesmas.
Nas últimas décadas, porém, essa deformidade moral crônica foi se acentuando de tal modo que começa a assumir as feições de uma sociopatia alarmante, disseminada sobretudo entre as classes cultas com mais acesso aos meios de difusão. As opiniões dessa gente vão se afastando dia a dia de todo padrão universal de veracidade e moralidade, ao ponto de constituirem já um sistema ético peculiar, válido só no território nacional, fechado e hostil às exigências da consciência humana em geral, inacessível a toda cobrança superior de idoneidade e racionalidade.
O mais característico desse novo sistema é que seus criadores e representantes não têm a mais mínima idéia de quanto suas falas, atitudes e julgamentos são imorais, maliciosos e alheios àquele mínimo de franqueza que uma alma deve ter ao falar consigo mesma para que, quando fala com os outros, se reconheça nela a voz de uma “consciência”, um espírito alerta, uma presença viva. Falar numa linguagem de estereótipos, com um automatismo sufocante, parece que se tornou obrigatório.
O fator que mais contribuiu para isso foi decerto a tomada dos meios de comunicação, do sistema educacional, das instituições de cultura e dos altos postos da política por uma geração marcada pelo sentimento de vitimização, acompanhado, inevitavelmente, da crença na sua bondade intrínseca e na recusa completa, radical, absoluta, de encarar seus supostos inimigos como sujeitos humanos portadores de uma consciência moral, capazes de dar razão de seus atos e merecedores de um confronto justo. O sentimento de impecância essencial, que está hoje disseminado em todas as classes falantes deste país, predispõe a um discurso de acusação indignada que encobre os mais óbvios pecados próprios sob a impressão – artificiosamente reiterada ao ponto de tornar-se uma carapaça invulnerável – de estar sempre discursando em nome de valores sublimes sufocados pelo mundo mau, quando, na verdade, o que torna o mundo mau é acima de tudo o número excessivo de pessoas imbuídas desse mesmo sentimento.
Um dos sintomas mais alarmantes dessa patologia é a fúria justiceira com que as autoridades e seus acólitos, os “formadores de opinião”, investem contra delitos menores, sobretudo de ordem financeira, ao mesmo tempo que toleram, como detalhe irrisório, a taxa anual de 50 mil homicídios que faz do Brasil a nação mais cruel e assassina do mundo. Quando um magistrado exclama que 94 anos de cadeia são punição branda para a sonegação fiscal e delitos correlatos, ao mesmo tempo que assassinos em série, seqüestradores e traficantes de drogas são protegidos pela leniência das leis e ainda celebrados como vítimas da sociedade má, está claro que uma nova classe falante subiu ao primeiro plano da cena pública, intoxicada de uma tal dose de rancor invejoso contra a “burguesia”, que não hesita em conceber traficantes multibilionários como pobres vítimas do capitalismo, fazendo deles aliados na epopéia revolucionária da “justiça social” que pretende implantar.
Inversão retórica e realidade invertida: Brasil-Mentira II
http://www.olavodecarvalho.org/semana/090415dc.html
Enxergar nos criminosos a sombra da sociedade, portanto a projeção ampliada dos males latentes no próprio coração da maioria honesta, é tendência bem antiga da cultura ocidental. Quando François Villon, o poeta-assassino, vislumbra o seu próprio corpo de enforcado balançando no ar, não como testemunho de seus crimes, mas como um apelo à bondade das gerações futuras, sem lembrar-se de dizer uma palavra sequer em favor de suas vítimas, ele inaugura uma das inversões retóricas mais poderosas da modernidade: a relação de caridade estabelece-se agora como um vínculo direto entre a comunidade e o criminoso, fazendo-se abstração das vítimas. Estas não têm direito à caridade, nem do seu algoz, nem do futuro. Passando por cima dos assassinados, a Deusa História absolve os assassinos.
As Confissões de Jean-Jacques Rousseau, um dos livros mais populares de todos os tempos, consolidam a inversão, quando, da revelação de seus defeitos e pecados, o autor, em vez de inferir que não presta, tira a conclusão de que ninguém é melhor que ele. Pais e mães que sacrificaram vida e saúde por seus filhos são rebaixados ante a vaidade do ambicioso carreirista que preferiu remeter os seus cinco a um orfanato, para ter tempo de brilhar nos salões e ser paparicado por todos aqueles que depois ele acusaria de oprimi-lo. Rousseau gaba-se mesmo de ser o melhor homem da Europa, o mais humano, o mais bondoso, o mais sensível, incompreendido pela multidão de filisteus.
A literatura dos séculos XIX e XX esforçou-se tanto para humanizar a imagem do criminoso, que acabou por desumanizar o restante da espécie humana. A partir dos anos 60 do século XX, a superioridade ontológica dos criminosos sobre a sociedade normal havia se consolidado tão profundamente na imaginação das classes falantes, que foi possível fazer, daquilo que nascera como um mito literário, uma estratégia de ação política e o princípio de uma reforma cultural e moral de dimensões universais. A geração de universitários que hoje ocupa todas as posições de poder e influência no Brasil foi inteiramente formada nessa mentalidade, e já não pode distinguir entre uma figura de linguagem e a realidade da vida social. O que essa figura de linguagem expressa não é de todo irreal. Cada delinqüente, por definição, dá expressão física e manifesta às tendências malignas latentes na alma dos seres humanos em geral, inclusive os melhores deles. Nenhuma vítima de homicídio pode proclamar que o desejo de matar está totalmente ausente no seu coração. A diferença entre ela e o assassino não é de natureza, mas de proporção. É por isso que o assassino pode simbolizar o pecado oculto na alma do assassinado. Basta, porém, uma pequena ênfase retórica para que a diferença de proporções desapareça sob uma impressão contundente de que todos são culpados pelo homicídio, exceto o homicida. As figuras de linguagem servem precisamente para realçar certos aspectos da realidade, que o senso de proporcionalidade da experiência comum encobre. Mas quando o poder sugestivo de uma figura de linguagem começa, retroativamente, a encobrir a experiência comum, ela deixa de ser uma figura de linguagem, passa a ser uma afirmação literal, uma fé e até um dogma. Já não é nem mesmo uma ideologia política. É um valor pessoal, uma crença espontânea: não é que o sujeito “ache” que os criminosos são superiores, ele age como se eles o fossem, porque jamais lhe ocorreu que pudessem ser outra coisa. A ideologia, aí, incorporou-se à psique e já não é reconhecida como tal: é um sentimento pessoal e mesmo um reflexo incoercível. Quando na era Brizola as damas da sociedade começaram a achar lindo namorar com traficantes do morro, já não se podia dizer que faziam isso por ideologia: a ideologia se transformara em compulsão emotiva. Foi isso o que aconteceu na linguagem das classes falantes do Brasil nos últimos quarenta anos. Elas já não acreditam somente que o assassino “pode”, imaginariamente, refletir o mal latente no coração do inocente, mas enxergam realmente, literalmente, os inocentes como culpados. Fazer justiça, no seu entender, é libertar da prisão todos os assassinos, estupradores, seqüestradores e narcotraficantes, colocando em seu lugar aqueles que até ontem personificavam a sociedade “normal”. A busca de pretextos para justificar essa inversão consolida, por sua vez, uma lógica jurídica invertida. Ao mais mínimo sinal de que um cidadão conceituado não tenha uma conduta irrepreensível, santa, impecável, isto surge aos olhos desse novo modelo de justiceiro como a prova cabal de que tinha razão: os bons, se não são perfeitos, são maus; os maus, sendo um reflexo da maldade deles, são bons no fundo. Daí a inversão da pena: para os crimes de morte, mesmo em série, mesmo cometidos por motivos torpes, brandura e leniência. Para os delitos financeiros e administrativos das pessoas famosas, vingança implacável – exceto, é claro, se essas pessoas famosas forem por sua vez adeptas da nova justiça: aí seus crimes se tornam sacrifícios meritórios pelo bem da sociedade futura.
Até um certo ponto, a inversão retórica é tolerável. Ela serve como um atenuante relativista da confiança que toda sociedade tem na sua própria bondade. Quando, porém, o atenuante da norma se transforma ele próprio em norma, é evidente que todo o senso das proporções se perdeu por completo, sendo substituído pela proclamação despótica da inocência dos culpados e da culpabilidade de todos os demais (exceto, naturalmente, o próprio autor da inversão e seus similares). Que isso se faça em nome da “justiça” é claramente uma ironia macabra, de vez que a justiça humana, não podendo jamais alcançar a perfeição absoluta do seu modelo divino (real ou imaginário), consiste precisamente, e exclusivamente, no senso das proporções. Suum cuique tribuere, “atribuir a cada um o que lhe cabe”, é a definição mesma da justiça. Daí deriva o princípio essencial do Direito moderno, que é a proporcionalidade dos delitos e das penas. Um código penal – qualquer código penal – não é outra coisa se não um sistema de proporcionalidades. Quando esta noção desaparece do horizonte de consciência não só dos fazedores de justiça, mas também daqueles que lhes dão suporte cultural na mídia e no sistema educacional, toda possibilidade de discussão racional da gravidade relativa dos crimes, e portanto das penas que lhes competem, está eliminada do panorama social. Em lugar dela, entra a vontade arbitrária dos novos agentes, inteiramente fundada no ódio e na inveja, disposta a aplicar, conforme suas conveniências grupais, a uns os rigores de um purismo inflexível, a outros os mais confortáveis atenuantes do relativismo cultural.
A proibição de comparar: Brasil-Mentira III
http://www.olavodecarvalho.org/semana/090417dc.html
Exemplos recentes da radical abolição do senso das proporções nas discussões públicas neste país, e da sua substituição por proclamações absolutistas rancorosas e pueris até à demência, aparecem em dois artigos do Observatório da Imprensa, publicação que, sublinhando o grotesco da situação, se autodefine não como um agente entre outros no jornalismo brasileiro, mas como um tribunal para o julgamento da idoneidade dos demais agentes.
Discutindo a celeuma causada pelo uso do termo “ditabranda” na Folha de S. Paulo para qualificar o regime militar brasileiro, o Sr. Alberto Dines, fundador, diretor, e guru máximo do Observatório, proclama:
“O debate sobre a ‘ditabranda’ estava errado desde o início porque fixou-se numa classificação de ditaduras, quando o certo seria discutir a inflexibilidade do processo democrático. Há um certo momento pareceu que as partes estavam querendo inventar um medidor de ditaduras, ou ditadurômetro, por meio do qual as diferentes relativizações, devidamente equacionadas, estabeleceriam um kafkiano ranking de autoritarismo, do suportável ao insuportável... A ‘Guerra Suja’ argentina matou 30 mil, a nossa matou 300 ou 3 mil. A quantificação é desumana, armadilha brutalizante...”
Vamos por partes. O Sr. Dines afirma que toda comparação de autoritarismos é indecente. Só vale a democracia absoluta. “O pacifismo é incondicional ou é hipócrita. A democracia é integral ou é uma farsa.” Não vou apelar ao expediente, até covarde nas presentes circunstâncias, de mostrar que nenhuma democracia no mundo jamais foi integral. Os meros fatos não alcançam as alturas do rigorismo platônico exigido pelo Sr. Dines. Em compensação, conceitos puros são o domínio da lógica e não podem furtar-se ao dever de definir-se a si mesmos. Ora, a “democracia integral” é indefinível, porque é autocontraditória.
Todo principiante no estudo da teoria política tem de saber, desde logo, que a democracia não é uma substância, uma coisa, mas uma qualidade que se tenta impor a uma substância preexistente, isto é, à sociedade tal como estava antes do advento da democracia. Tem de saber também, em conseqüência, que a democracia não é uma quantidade fixa, mas uma proporção – e que, por isso mesmo, não pode ser “integral”. A democracia constitui-se essencialmente de uma limitação mútua entre os poderes, o que subentende que esses poderes existam e que cada um deles não seja integralmente capaz de limitar-se a si mesmo. Todos os teóricos da democracia, mesmo os mais entusiastas, sempre ressaltaram que ela é um estado de equilíbrio instável, incapaz de fixar-se na perfeição do equilíbrio puro subentendido na palavra “integral”. A democracia não é um princípio universal, mas um arranjo pragmático. Princípios universais podem ser aplicados ad infinitum sem levar jamais a contradições. Por exemplo, o próprio suum cuique tribuere, ou a noção de que a responsabilidade de um ato incumbe a quem o cometeu e não a outra pessoa. Você pode aplicar indefinidamente esses princípios a todos os casos possíveis e imagináveis, nunca eles levarão a situações paradoxais e sem saída.
Bem diferentes são os arranjos pragmáticos, cuja aplicação é limitada por definição e que, estendidos para além do seu campo próprio de aplicação, se autodestroem ou se convertem nos seus contrários. A democracia é um dos exemplos mais óbvios dessa distinção, e isso é mesmo uma das primeiras coisas que o estudante de teoria política tem de aprender. Em toda democracia há, por definição, uma infinidade de abusos antidemocráticos. Suprimi-los por completo, como subentendido na noção de “democracia integral”, exigiria a instalação do controle social perfeito, portanto a eliminação da própria democracia. A democracia reside precisamente na busca permanente da compensação mútua entre fatores que, em si, não são democráticos. Isso quer dizer que enormes coeficientes de autoritarismo subsistem necessariamente dentro de qualquer democracia e que sem eles o próprio conceito de democracia não faria sentido. A “democracia integral” coincidiria em gênero, número e grau com a ditadura.
Em segundo lugar, democracias não existem no ar, mas em unidades políticas soberanas que coexistem com outras unidades políticas soberanas. Um regime de um país só pode ser democrático para dentro. Não pode conceder aos cidadãos e governos de outros países os mesmos direitos e garantias que dá aos nacionais. Isso implicaria a sua dissolução imediata. Uma “democracia integral” pressuporia a inexistência de fronteiras, mas parece difícil explicar isso a uma mente como a do Sr. Dines. Tratados internacionais podem, por sua vez, retroagir sobre as leis internas, diminuindo o coeficiente de direitos desfrutados pelo cidadão da democracia. Por outro lado, o governo mundial, necessário à implantação da “democracia integral”, seria também contraditório com a noção de democracia, por ser inatingível à fiscalização direta de todos os eleitorados locais – a não ser na hipótese de uma humanidade ilimitadamente poliglótica. Uma expressão como “democracia integral” só pode ser usada por um leviano opinador que não examinou o problema por um só minuto e que se limita a manifestar desejos arbitrários como uma criancinha que esbraveja e chora quando contrariada.
A existência mesma de um poder legislativo, que é um componente essencial da democracia, prova que ela não pode ser integral. Se você tem de estar continuamente produzindo novas leis, é porque as anteriores não produziram a “democracia integral”. Se a produzirem, a subseqüente supressão do legislativo a transformaria ipso facto em ditadura. Basta isso para mostrar como as idéias de pureza e democracia são radicalmente incompatíveis, não apenas no baixo mundo dos fatos, mas na própria esfera dos conceitos absolutos. Como é possível que um sujeito que ignora uma coisa tão elementar da teoria política tenha os meios de sair por aí dando lições de democracia?
Umas ditaduras são mais iguais que as outras: Brasil-Mentira IV
http://www.olavodecarvalho.org/semana/090427dc.html
O Sr. Dines não é burro, pessoalmente. Já provou isso em escritos excelentes. Ele encontra-se emburrecido e cego pelo apoio dos seus pares, que, quando o que ele diz coincide com os desejos deles, tratam de aceitá-lo imediatamente, reprimindo em si próprios e nos outros a mais elementar exigência analítica. Confirmado retroativamente pelo apoio deles, o Sr. Dines está autorizado a jamais perceber a enormidade do que disse. Ser “formador de opinião”, no Brasil de hoje, é isso. É expressar amores e repulsas com a irracionalidade de um cão que late, reforçado pelos ecos inumeráveis de uma orquestra canina.
A idéia de que não haja comparação possível entre autoritarismos iguala, na base, os campos para prisioneiros japoneses nos Estados Unidos durante a II Guerra e os campos de concentração nazistas. Iguala as medidas defensivas, tomadas por uma nação em perigo, à construção da máquina totalitária que cresce justamente na medida em que as oposições desaparecem e em que se torna necessário inventar mais e mais oposições imaginárias para justificá-la. O Brasil teve, ao longo de vinte anos, aproximadamente dois mil prisioneiros políticos, nenhum deles totalmente isento de ligações diretas ou indiretas com a guerrilha e com a ditadura cubana. Cuba, com uma população doze vezes menor, chegou a ter cem mil ao mesmo tempo – a quase totalidade sem processo legal, e levada ao cárcere por crimes hediondos como fazer uma piada, recusar-se a usar um crachá patriótico ou, nos casos mais graves, possuir uma casa. Se não há nenhuma diferença entre uma coisa e outra, também não há diferença entre matar seis milhões de judeus e dar um discreto pontapé no traseiro do sr. Alberto Dines, ou entre jogar milhões de padres no Gulag, por serem padres, e, como se fez na Grã-Bretanha durante a II Guerra, prender sem processo uns quantos colaboradores do inimigo. Abolir as diferenças equivale a neutralizar o próprio conceito de democracia, que só é democracia, precisamente por basear-se no senso das proporções, que essa abolição impugna.
A prova de que proibir toda gradação entre autoritarismos é inviável na teoria e na prática nos é dada pelo próprio Sr. Dines quando, ao referir-se a Fulgêncio Batista, o rotula de “tirano” e, no mesmo parágrafo, falando de Cuba, atenua a linguagem dizendo apenas que “está longe de ser uma democracia”, como se Cuba não tivesse feito outra coisa ao longo destes últimos quarenta anos senão esforçar-se para ser uma democracia. Se isso não é uma gradação, eu sou o Alberto Dines em pessoa.
Graduando mais ainda, ele faz questão de frisar que, se Cuba “ainda” (depois de breves quatro décadas) não se transformou em democracia, isso ocorreu ‘a despeito das magníficas intenções dos rebeldes”. Ora, os militares brasileiros, em 1964, derrubaram o governo que acobertava uma guerrilha financiada por Cuba, e prometeram em lugar dele, o quê? Uma democracia, ora bolas! Uma democracia com eleições plenas em seis meses. Não seriam, essas também, “magníficas intenções”, embora falhadas? Falar em “magníficas intenções”, neste caso, não seria ainda mais legítimo do que no tocante aos guerrilheiros cubanos que instantaneamente implantaram um regime de terror da ilha e não cederam um milímetro até hoje, enquanto os nossos militares acabaram se afastando do poder por obediência à pressão popular? Em vão o Sr. Dines afirma que todas as ditaduras são iguais, pouco importando as intenções. O que ele acaba dizendo, no fim das contas, é que todas são iguais, mas algumas são mais iguais que as outras. Ele jura “abominar as gradações”, mas ele próprio gradua, só que em sentido inverso: odeia o mal menor e ama decididamente o pior dos piores.
Na edição subseqüente do seu Observatório, ele mesmo deu a maior prova disso, ao falar da rebelião chefiada em 1936 por Francisco Franco contra a república pró-comunista espanhola. Ele rotula as forças rebeldes como “ditatoriais” e “fascistas” e o outro lado como “forças legalistas”. Tentando camuflar a escolha, ele apela ao seu usual artifício de fingir equanimidade, nivelando “as violências contra sacerdotes e freiras” e “a participação do clero na repressão fascista”, como se fossem ambas episódios da guerra civil, quando de fato as primeiras antecederam a guerra e foram a causa direta da rebelião franquista. Matanças em tempo de guerra podem ser debitadas na conta da violência geral, mas matanças em tempo de paz, promovidas por forças governistas contra a própria população local, caracterizam não somente uma ditadura, mas uma ditadura totalitária e genocida. É absolutamente imoral chamar de “legalista” ou “democrático” um regime que promoveu a matança sistemática de padres e freiras simplesmente por serem padres e freiras e que incendiou centenas de igrejas católicas nos territórios sob o seu domínio, fechando todas as restantes e tornando virtualmente ilegal a religião majoritária do país. A república espanhola foi obviamente uma ditadura, e entre ela e a ditadura franquista que a sucedeu Alberto Dines, desmentindo seu fingido horror a comparações dessa ordem, não hesita em estabelecer uma gradação de preferências, com o agravante de que, nessa gradação, não se limita a cotejar a extensão de dois males, mas eleva um deles ao estatuto de um bem, ao afirmar que os “libertários do mundo inteiro” – assim ele qualifica os membros das Brigadas Internacionais – lutavam pelos “conceitos de República, democracia e solidariedade”. Ora, as Brigadas Internacionais foram à Espanha obedecendo a uma convocação de Stálin, e, se delas participou a inevitável quota de idiotas úteis que não sabiam estar servindo à ditadura soviética – os depoimentos de John dos Passos e de George Orwell a respeito são bastante significativos –, o fato é que as Brigadas foram sempre um instrumento a serviço do comunismo, e não da liberdade. Chamar comunistas de “libertários” é mais do que mera impropriedade vocabular, é trapaça pura e simples, de vez que o segundo termo designa um movimento político existente, notoriamente hostil ao comunismo e atuante na política até hoje, inclusive no Brasil.
Para piorar as coisas, Dines nivela dois fenômenos radicalmente diferentes: a participação soviética ao lado dos republicanos e a ajuda nazifascista às tropas de Franco. É notório que o general rebelde obteve ajuda técnica e militar da Itália e da Alemanha, mas sem nada ceder a esses incômodos fornecedores (os únicos de que dispunha), defendendo a soberania do seu país com obstinada teimosia, timbrando em manter a neutralidade espanhola durante a II Guerra contra todas as pressões de Hitler e Mussolini e ainda concedendo abrigo a judeus foragidos, no mínimo como agradecimento à comunidade judaica de Valencia que ajudara a financiar sua rebelião. Em contrapartida, o governo dito “republicano” colocou-se sob as ordens de Stalin da maneira mais servil, chegando a ser controlado diretamente pelos russos nas etapas finais da guerra e a transferir para Moscou, sob a grotesca desculpa de “segurança”, todas as reservas estatais de ouro espanhol, um óbvio crime de alta traição que os russos festejaram com risos de escárnio, sabendo que os espanhóis jamais veriam aquele tesouro de volta, como de fato não viram.
Inventando certezas: Brasil-Mentira V
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No mesmo Observatório, Luciano Martins Costa pontifica: “Ditaduras são ditaduras... Fazer a conta da ditadura pelo número de mortos nas masmorras oficiais é vilipendiar a história. É coisa de alienados.” Contestando as comparações usuais que contrastam as trezentas e poucas vítimas da polícia política brasileira com as cem mil da ditadura cubana, o Sr. Costa lança à conta do nosso regime militar dois delitos extras que, segundo ele, deveriam entrar no cálculo. De um lado, “a corrupção que se consolidou durante os vinte e poucos anos da ditadura militar”. De outro, “a violência policial não diretamente política” porque, diz ele, “a polícia brasileira, em todos os estados, foi transformada durante a ditadura militar num perverso e incontrolável instrumento de controle social, que foi treinado para ‘identificar’ e punir preventivamente os supostos objetores do regime e acabou produzindo uma lógica toda especial segundo a qual todo jovem de pele relativamente escura é um inimigo potencial da ordem pública”.
Textos como esse ou os dois de Alberto Dines já citados são até difíceis de analisar, tal a mixórdia psicótica de erros, confusões e impropriedades lógicas que neles se compacta. Normalmente serviriam apenas de amostras de como o fanatismo enlouquece. O significativo é que nenhum de seus autores é conhecido publicamente como um fanático. Ambos passam como profissionais equilibrados, idôneos, capacitados a julgar a qualidade do jornalismo alheio. E é justamente isso a prova de que não se trata de distúrbios pessoais, mas de um mal endêmico nas classes falantes do Brasil: a absoluta incapacidade ou recusa de julgar as coisas com um mínimo de equanimidade, o radicalismo cego de um parti pris que ao inflamar-se masturbatoriamente e apelar aos subterfúgios mais unilaterais e artificiosos, acredita piamente, tranquilamente, fazer justiça.
O Sr. Costa, indignado de que a truculência das ditaduras só se calcule pela violência política direta, pergunta: “Quem estabeleceu os critérios desse ranking? O departamento de infográficos da Folha?” Ele não pergunta se quem estabeleceu a diferença entre a proporção de negros e mulatos mortos antes e durante a ditadura foi o seu próprio departamento de infográficos mentais. Nenhuma pesquisa histórica ou estatística prova que antes de 1964 a polícia, composta ela própria de maciços contingentes de negros e mulatos, fosse mais bondosa para com os chamados afrodescendentes. Louco de ódio, ele inventa sem a mais mínima prova um racismo crescente, e julga baseado nisso.
Quanto à alegada corrupção da ditadura, é falso, em primeiro lugar, que ela não fosse denunciada na época. Na mesma medida em que reprimiam certo tipo de notícias políticas, os militares aceitavam e apreciavam denúncias de corrupção, que os ajudavam, segundo eles, a manter sob controle uma classe política viciada. Eu mesmo trabalhava num dos jornais mais visados pela censura – o Jornal da Tarde – e posso garantir que, se várias matérias minhas viraram receitas de bolo, o mesmo não aconteceu com nenhuma acusação feita a políticos corruptos. Que os próprios militares no alto comando da nação fossem ladrões, é algo de que o Sr. Costa não cita nem poderia citar um único exemplo, visto que nenhum desses homens, na presidência ou em ministérios, prosperou tanto quanto o Sr. Lula ou o Sr. José Dirceu, nem muito menos – para dar um exemplo característico do regime deposto em 1964 – tanto quanto o Sr. Tião Maia, o amigo do presidente Goulart, que saiu do Brasil com dinheiro suficiente para comprar a vigésima parte do território australiano e, interrogado sobre como conseguiu isso, respondeu singelamente: “O Banco do Brasil foi uma mãe para mim”.
Houve sim, casos de corrupção no governo militar. Nenhum deles maior que o das “polonetas”, o empréstimo ilícito feito ao governo comunista da Polônia pelos esquerdistas que então infestavam o Ministério de Relações Exteriores de Geisel, contra os quais nem o Sr. Costa nem qualquer de seus congêneres diz a mais mínima palavra. E, entre os feitos de violência do regime, nenhum se compara à ajuda fornecida pelo mesmo governo Geisel para a ditadura cubana invadir Angola e aí matar, em poucos meses, pelo menos quinze mil pessoas. Também disso o Sr. Costa não diz nada.
Não há sinal de que, na ditadura Vargas, a violência social da polícia fosse menor do que se tornou depois ou de que fosse menos racialmente orientada. Simplesmente não é possível estudar o fator racial na conduta da polícia sem estudá-lo simultaneamente no próprio fenômeno da criminalidade. Até hoje ninguém provou que o número de “afrodescendentes” oprimidos ou assassinados pela polícia seja maior, proporcionalmente, do que o número deles no contingente de criminosos ou, mais ainda, na própria composição racial das tropas policiais. Sem essa prova, falar em racismo policial é calúnia pura e simples. Abolir metade do fenômeno para usar a outra metade como prova de racismo e, sem o mais mínimo fundamento comparativo, proclamar que esse racismo aumentou durante a ditadura militar (como se a própria noção de “aumentar” não fosse comparativa) é simplesmente expelir ódio por meio de mentiras.
Mas o Sr. Costa, repito, não tem fama de fanático odiento. Se tivesse, estaria tudo normal. Ninguém diz que o Sr. Costa é um agitador de extrema-esquerda. Ao contrário, a linguagem dos agitadores de extrema-esquerda tornou-se normativa, obrigatória e mainstream na mídia brasileira e nas classes falantes em geral – de tal modo que basta você resmungar um pouquinho contra ela e você é que é instantaneamente apontado como um perigoso extremista de direita, sem precisar para isso ter advogado jamais qualquer medida extrema contra quem quer que fosse.
Mais ainda, o Sr. Costa, na mesma medida em que abomina comparações e as faz no mesmo instante, ressaltando unilateralmente o horror da ditadura brasileira para fazê-la parecer ainda pior do que a argentina ou a cubana, nos sonega, novamente, um dos termos da comparação. Quantos entre os prisioneiros políticos de Cuba eram e são negros e mulatos? Quantos no Brasil? Quantos o eram entre os 17 mil fuzilados do regime cubano? Quantos entre os trezentos terroristas mortos pela nossa ditadura? Condenar comparações e em seguida fazê-las da maneira mais parcial, sectária e deformada é coisa de uma vigarice tão flagrante que em outras épocas qualquer esquerdista normal se recusaria a uma trapaça desse calibre. Mas o Sr. Costa não é um esquerdista normal. Ele é um esquerdista do ano 2009 no Brasil. E isso é muito diferente de sê-lo em qualquer outra parte do mundo e em qualquer outra época. No mínimo, essa condição basta para apagar, na mente do sujeito, esta obviedade gritante: se não é lícito dizer que uma ditadura foi pior que outra, também não pode sê-lo dizer que ela foi pior que ela mesma.