Em "O problema da pobreza: entre o reducionismo atávico e a compreensão integral", Casimiro de Pina articula os aspectos morais, religiosos, econômicos e políticos de uma questão que há tempos é discutida de forma parcial e desviada de seus aspectos essenciais, sobretudo por uma casta acadêmica viciada em devaneios ideológicos e por militantes vazios e interesseiros.
A pobreza é uma questão moderna. Melhor: um subproduto da modernidade, enquanto "questão social".
Uma encíclica papal (Rerum Novarum), de 1891, debruçou-se justamente sobre essa temática, à luz da Fé e dos ensinamentos do Evangelho. O nascimento da própria ciência econômica está intimamente vinculado ao nosso inquietante problema. Numa carta dirigida a Ricardo, datada de 26 de Janeiro de 1817, Thomas Malthus clarifica este ponto de vista: "[...] as causas da riqueza e da pobreza das nações - o grande objetivo de todas as investigações em economia política".
A economia é, nessa linha, uma disciplina humanística, centrada na promoção da riqueza e da prosperidade geral. É com esta declaração impressiva que David Landes, professor em Harvard, abre o seu monumental A Riqueza e a Pobreza das Nações (Gradiva, 2002), um livro de leitura obrigatória, sem o qual, como escreveu o scholar Bradford DeLong, no Washington Post, "Não é possível começar sequer a pensar sobre os problemas do desenvolvimento". Objeto de discussão apaixonada nos areópagos internacionais, a pobreza ganhou, sem dúvida, um estatuto de primeira grandeza, dividindo a opinião pública e alimentando clivagens ideológicas.
Bono (o vocalista dos U2) e outras figuras do show business, encavalitados no humanitarismo fácil, atribuíram-na um cunho de espectáculo e protesto emocionado. A pobreza é celebrada e causticada, mas raras vezes merece um exame sereno e informado. Os fatos, esses, são muitas vezes desprezados, numa atitude intelectual que impressiona pela ligeireza e vacuidade da análise.
Durante milênios, a humanidade viveu sob o peso cruel da indigência e da carestia. A pobreza foi assim, desde tempos imemoriais, a condição normal dos povos e das civilizações.
A pobreza, e não a riqueza, foi, no passado, a fiel companheira da espécie humana. Jean-François Revel recorda-nos, a propósito, numa fórmula precisa, esta verdade incontestável: "Sociedades sem crescimento", resumo da história econômica num arco temporal que vai do Neolítico às vésperas da Revolução Industrial. Havia, é certo, pequenos "oásis de prosperidade", mas a condição rotineira das massas (leia-se: da imensa maioria da população, os "condenados da terra", no dizer de Fanon) era paupérrima e degradante. As cidades eram insalubres. Não tinham qualquer sistema de saneamento básico, nem dispunham de iluminação pública. Recolha periódica do lixo? Não havia.
Os campos, círculos de rotina e hábitos ancestrais, na melancolia do pitoresco, vegetavam na mais completa penúria, entregues às vicissitudes da sorte e ao capricho das estações. Reinava o arbítrio da Natureza! As jacqueries (revolta de camponeses) eram frequentes na Europa. Até as famílias mais ricas e aristocráticas viviam num certo desconforto, o qual, nos dias de hoje, seria motivo de incompreensão e riso generalizado. O magnífico Luis XIV (esse mesmo que, do alto do seu poderio, proclamava: "L'État, c'est moi!") não tinha uma simples casa de banho. Os dejectos do palácio real eram despejados nas redondezas, numa operação roll on-roll off pouco civilizada! Não havia papel higiênico em Versailles. As damas de Paris, senhoras de uma elegância quase mítica, não tinham nada parecido com o actual "penso higiênico". Não me perguntem, por favor, como elas faziam, nos momentos de aperto biológico!...
Os salões da "alta sociedade" podiam ser espaços requintados, animados por poetas e músicos talentosos, mas imperava, ainda assim, a escassez de bens e produtos indispensáveis. Não havia, nessa altura, aspirinas para aliviar uma repentina dor de cabeça.
A atmosfera circundante era pobre, mesmo nas maiores metrópoles europeias. Em 1709, a França viveu uma grande fome. Dois milhões de pessoas pereceram. A desordem social acompanhava, normalmente, o movimento do flagelo. E o "bas-fond" da sociedade refletia, até certo ponto, esse estado de coisas. Victor Hugo captou esse quadro, de forma magistral, num dos seus romances mais famosos: Les Misérables. As casas das classes baixas não possuíam nenhum sinal de conforto.
O recheio circunscrevia-se a uma ou outra peça de mobiliário tosco. Faltavam talheres não havia estantes, nem sofás. Mesmo na França, o mais rico país europeu até finais do séc. XVIII, as famílias raramente comiam carne. Só as classes abastadas podiam beber cerveja. A esperança média de vida não ia além dos 35 anos. Os membros da família amontoavam-se, não raras vezes, e num caldo de promiscuidade, num mesmíssimo e reduzido aposento. A residência era infestada por insectos e parasitas, foco de várias doenças e incomodidade. As crianças e as mulheres andavam descalças. Vestia-se blusões e calções de sarja. A indumentária era mínima. Uma florescente "indústria" caseira de remendos, profissão predominantemente feminina, foi, durante muito tempo, a solução encontrada para resolver a escassez.
O Inverno, sobretudo nos anos mais frios, era um suplício. A "superfície da existência humana" (Norbert Elias) era, portanto, frágil e miserável, numa sociedade marcada pela estagnação econômica - o jogo de soma zero. Quando surgia uma epidemia, a falta geral de condições sanitárias fazia com que a situação ganhasse, numa espécie de efeito multiplicador, a dimensão de uma tragédia. Populações inteiras eram dizimadas.
A Irlanda (hoje uma nação rica e desenvolvida) atravessou períodos de fome catastróficos, o que levou Jonathan Swift, em 1729, a propor receitas jocosas (Modest Proposal) com vista à resolução do magno problema nacional. Tratava-se, evidentemente, de um país atrasado, preso a um sistema econômico feudal, ineficiente, tecnologicamente deficitário e pré-capitalista. Hegel, o notável filósofo do Estado e do "fim da história" (tese engenhosa que os ignaros e a intelectuária esquerdista atribuem ao pobre Fukuyama), morreu de cólera, uma doença engendrada pela imundície, quando a cidade de Berlim, onde se encontrava ao tempo, foi fustigada pela horrível moléstia.
Foi a Revolução Industrial que criou o conceito de abundância e resolveu o problema milenar da escassez. Nasce aqui, como resultado da poderosa revolução epistemológica trazida pelo capitalismo liberal, a tal "questão social". Os espíritos mais subtis perceberam que algo inédito estava a acontecer. Era possível vencer a pobreza! Abriu-se um novo campo de estudo e investigação científica. A literatura socialista destaca a longa jornada de trabalho e a exploração infantil nas fábricas do séc. XIX, mas omite, tendenciosamente, a condição social anterior daqueles que procuravam trabalho nas cidades industriais da Inglaterra.
A industrialização, criando uma gama vastíssima de bens e serviços, aliviou grandemente a pobreza, a fome e a carestia generalizada das épocas anteriores. Foi, pois, um progresso extraordinário. Hoje, uma pessoa comum vive com um grau de conforto superior aos monarcas e nobres do séc. XVII. Muitos possuem TV, telefones celulares, casa de banho, automóvel, rádio, água canalizada, frigorífico e um conjunto de outras vantagens propiciadas pela tecnologia moderna. O capitalismo (ou "economia de mercado") é, como bem notou Schumpeter, um sistema de "destruição criativa". A electricidade substituiu a lamparina o telefone tomou o lugar do pombo-correio e do telégrafo, o computador sucedeu à velha máquina de escrever, e assim por diante.
Lênin, impressionado pela opulência capitalista, chegou a definir o socialismo deste modo curioso: "eletricidade mais sovietes".
Vejam, nos nossos dias, a história do telefone celular. No início, só uma pequena elite (executivos, políticos, etc.) podia adquirir esse bem raro. Era, então, uma questão de status e símbolo de poder econômico. Atender uma chamada no meio da multidão dos have not era o cúmulo da sofisticação - um suspiro mágico e de sedução! Pouco tempo depois, porém, toda a gente já podia adquiri-lo. O seu uso democratizou-se. Há dias, este vosso criado presenciou, em Ribeira do Ilhéu, uma cena tocante: em pleno trabalho agrícola (a sementeira), jovens usavam o telefone celular, conversando, alegremente, com pessoas amigas. Por meio desse aparelho revolucionário, podem trocar "mensagens" e falar com os seus familiares na terra longe. As vantagens, em termos de liberdade e facilidade de contactos, são incalculáveis. Adam Smith estava certo: o sistema capitalista cria um estado de "opulência geral". A concorrência entre empresas, sob regras claras e imparciais (fair-play), gera a inovação e oferece, decerto, benefícios crescentes à população e aos consumidores.
A maior parte das censuras ao actual mecanismo económico nasce de um equívoco: a ignorância da dureza pré-capitalista. As críticas partem da comparação, necessariamente mítica e injusta, daquilo que é com o que devia ser. Assim se perdem de vista os incríveis ganhos que a livre troca e iniciativa trouxeram à humanidade. Os notáveis avanços na saúde e comunicação, conforto e arte, cultura e liberdade, que tantos vêem como direitos, são inseparáveis do capitalismo.
Em virtude do incrível aumento da produção e da prosperidade geral crescente, as previsões apocalípticas de Malthus não se confirmaram. A prédica era interessante: "Enquanto os recursos crescem numa progressão aritmética, a população cresce numa progressão geométrica".
Mas nada disso aconteceu. Hayek chama a atenção para um fato decisivo: a relação entre o aumento da população e a melhoria das condições de vida. A Inglaterra tinha, em 1801, nove milhões de habitantes em 1851, tinha já dezoito milhões.
A introdução de máquinas na agricultura aumentou o estoque de alimentos disponíveis. Registaram-se, também, grandes progressos na medicina: bactericidas, antibióticos, etc.
Tudo isso é, contudo, uma pequena parte da história.
Escutemos David Landes: "O aumento considerável da esperança de vida nos dias de hoje deve-se mais às conquistas na área preventiva e à disseminação dos hábitos de higiene... Água limpa e rápida remoção de lixo, aliadas a mais asseio pessoal, marcaram a diferença".
A infeccão gastrintestinal era uma das doenças mais perigosas, uma calamidade pública. A falta de papel higiênico e de roupas interiores laváveis favorecia, em épocas recuadas, a contaminação (via contacto com dejetos, etc.).
A resposta foi encontrada, explica Landes, "...na inovação industrial. O principal produto da nova tecnologia que conhecemos como a revolução industrial foi o algodão barato e lavável e, paralelamente, a produção em massa de sabão feito de óleos vegetais. Pela primeira vez, o homem comum podia dar-se ao luxo de adquirir roupa interior, outrora conhecida como 'roupa branca', porque era feita de linho, o tecido lavável que as pessoas abastadas usavam junto à pele. O indivíduo podia lavar-se com sabão...A higiene pessoal mudou tão drasticamente que as pessoas comuns, dos finais do século XIX e início do século XX, viviam em geral com maior asseio do que os reis e rainhas do século anterior".
O bem-estar e a riqueza das nações cresceram de uma forma admirável. As fomes cíclicas e coletivas desapareceram, pelo menos nos espaços geográficos atingidos pelo fulgor do novo e criativo sistema econômico.
Houve um crescimento surpreendente da oferta de alimentos e uma melhoria substancial dos transportes. A riqueza produzida podia circular com facilidade e servir, assim, um maior número de pessoas.
Resultado: uma dieta alimentar mais rica, uma vida mais feliz e saudável mil necessidades satisfeitas. O rendimento per capita aumentou consideravelmente.
A mudança social foi de tal ordem que, décadas mais tarde, a retórica anticapitalista foi obrigada a dar uma volta de 360 graus.
Assim, abandonando, por instantes, a falácia marxista de que "os pobres estão a ficar mais pobres", os intelectuais ressentidos, mestres supremos da arte dialética, passaram a criticar a "alienação" que o sistema provoca, ao produzir cidadãos obcecados com o "consumo e o supérfluo". Já não se pode alegar o "empobrecimento das massas"? Critique-se, então, o seu estúpido enriquecimento! É esta a linha dos Marcuses e companhia; da crítica econômica passou-se, pois, ao apelo moralizante.
O sistema da "liberdade natural" funciona, hoje, em vários continentes, sempre com resultados apreciáveis. Não se ignora o passivo. Mas as suas vantagens compensam largamente os inconvenientes.
O capitalismo - parafraseando Churchill - é o pior sistema econômico, excetuando todos os outros.
K. Marx, no Manifesto Comunista, imaginou um mundo medieval idílico que nunca existiu.
Partindo de um diagnóstico errado, só podia produzir uma terapêutica desastrosa. O socialismo totalitário, nos sítios infelizes onde se implantou, apenas produziu miséria, opressão e atraso tecnológico. (Cavaleiro do Templo: isto nem mesmo socialistas/comunistas poderiam tentar negar)
Cuba e a Venezuela de Chávez são exemplos cintilantes de uma filosofia irrealista (o "ópio dos intelectuais"), contrária à dignidade humana.
A maior parte das censuras ao actual mecanismo económico nasce de um equívoco: a ignorância da dureza pré-capitalista. As críticas partem da comparação, necessariamente mítica e injusta, daquilo que é com o que devia ser. Assim se perdem de vista os incríveis ganhos que a livre troca e iniciativa trouxeram à humanidade. Os notáveis avanços na saúde e comunicação, conforto e arte, cultura e liberdade, que tantos vêem como direitos, são inseparáveis do capitalismo. Acima de tudo, são incríveis os ganhos na redução da pobreza. A população mundial na situação de carência (menos de 1,25 dólares por dia) caiu de 35% do total para menos de 26% nos últimos dez anos. Isso significou arrancar à miséria 50 milhões de pessoas por ano. Quem fez isto não foi a ajuda ao Terceiro Mundo, a caridade cristã ou a sociedade socialista, mas a entrada na economia de mercado pela globalização.
Em Cabo Verde, o regime totalitário do Partido Único, imposto pelo PAIGC/CV a partir da independência nacional, estabeleceu, com base nos dogmas marxistas, uma mentalidade francamente antieconômica.
A iniciativa privada era fortemente combatida, como sinônimo de "egoísmo" e "exploração do homem pelo homem". (Cavaleiro do Templo: como dizia Lênin, acuse-os do que você é, do que você faz ou está fazendo. Pois esta exploração existe de fato nos Socialismo/Comunismo. No mundo Livre existem CONTRATOS DE TRABALHO, ou seja, ACORDO ENTRE PARTES, que podem ser inclusive ser levados à avaliação de um treco chamado JUDICIÁRIO. Tem isto no Socialismo/Comunismo?)
Em virtude de um atavismo incompreensível, Cabo Verde desligou-se do sistema econômico internacional, perdendo oportunidades e atrasando-se notoriamente, em termos, sobretudo, de capacidade tecnológica e ideias inovadoras. Era o "não-alinhamento", com o subdesenvolvimento e a ineficácia.
O investimento estrangeiro era insignificante. Preferiu-se a "substituição das importações".
Havia que resguardar a nação da influência maligna do "capital" e dos vilões do Ocidente liberal, segundo as sábias orientações da teologia marxista-leninista!
Os manuais escolares estavam recheados dessas tolices ideológicas.
O Estado dominava as indústrias e controlava a economia.
Quando a odisséia da I República terminou, em 1991, Cabo Verde tinha uma factura caríssima à sua frente: desemprego elevado e uma taxa de crescimento econômico quase nula (cerca de 1%).
O MpD recebeu um país tecnicamente estagnado.
Após um ambicioso programa de reformas (a começar pelo sistema político, com a aprovação da Constituição de 1992, que instituiu o Estado de Direito e a prioridade ontológica da dignidade humana), Cabo Verde começou a mudar, entrando nos eixos do desenvolvimento e da modernidade. Negando o transpersonalismo constitucional de matriz hegeliana, afirmou-se, antes, o pluralismo e a singularidade da condição humana: cada pessoa é um ser livre e responsável, senhor dos seus projectos e do seu destino, "[...] sob o único governo de Deus e das leis", na síntese primorosa de Tocqueville.
Nos finais da década de 90, os resultados sociais eram claros: um crescimento econômico apreciável (cerca de 8%) e um bom Índice de Desenvolvimento Humano (vide os relatórios do PNUD). O desemprego conheceu uma redução bastante acentuada.
Olavo Correia, num recente artigo publicado no Expresso das Ilhas (5/8/2009, p. 8), tem plena razão.
O PAICV do Sr. José Maria Pereira Neves, ao privilegiar o Estado em vez das empresas, desenhou uma política econômica errada, que não consegue resolver a questão do desemprego, a prioridade máxima de qualquer Governo responsável e de "rosto humano".
O falhanço é clamoroso. As metas do Programa da atual Legislatura não foram cumpridas.
Alguém falou do "crescimento a dois dígitos"?!
O Governo é mercantilista e o Fisco goza do incrível "privilégio de execução prévia", herança do absolutismo monárquico.
Quem dá emprego (e inova: criando novos produtos e serviços) são as empresas. Se não houver um enquadramento institucional que estimule a atividade empresarial, e o crescimento econômico, o problema manter-se-á praticamente insolúvel.
Os atuais governantes, apesar da arenga à volta dos "ganhos na economia", parecem não perceber a raiz do problema. (Cavaleiro do Templo: de fato não querem resolver o problema pois para eles não é problema. Sociopatas não estão pensando nos outros, pensam apenas em si mesmos. Os outros que se danem pois o deles está garantido.)
Olavo aponta, a meu ver, ideias interessantes para sairmos do marasmo. Concordo com quase todas, desde a baixa fiscalidade (um poderoso incentivo da poupança e do investimento, como se verificou na Irlanda) à aposta num Estado mínimo, promotor das empresas e da criação de mais riqueza. É bom ler e discutir as suas propostas. Sensatas.
O Estado liberal não é um Estado ausente. Quem defende, em termos de Filosofia Política, a "extinção do Estado" são dois grupos ideológicos bem identificados: os Marxistas e os Anarquistas. Mais ninguém.
O problema é que muitos continuam a confundir a força do Estado com a sua dimensão.
O Zimbabwe é um Estado grande, altamente interventor, mas simultaneamente fraco. Falta tudo no país, desde a eletricidade aos gêneros alimentícios. O quotidiano popular é surrealista, no meio de uma inflação astronômica e da arbitrariedade policial.
O atraso endêmico é a consequência de uma deliciosa confusão!
Para o pensamento liberal, o Estado é sempre necessário. Garante a Justiça e a ordem pública, assegura a diplomacia, protege os mais fracos, disciplina a concorrência e a atividade econômica. O Estado é o sustentáculo da res publica e da convivência civilizada.
Adam Smith, em pleno séc. XVIII, defendia a intervenção do Estado com vista à educação das classes mais pobres. Vale a pena lembrar isto, num país, como o nosso, em que o pensamento totalitário, apostado na dezinformatsya, contaminou todo o debate político.
Mas há um ponto que fica em aberto: massificar a Internet, abrir uma Escola de Negócios ("virada para a capacitação do sector privado"), legislar sobre a "flexisegurança" ou certificar as profissões, providências indiscutivelmente acertadas, fazem parte da "engenharia econômica".
Com um simples Decreto, um burocrata dedicado, um Colbert high tech, pode criar tudo isso.
E a Etica Econômica, tão essencial à formação do capitalismo e à "vocação para o desenvolvimento"? Como se cria? Como se mantém? Pelos votos da maioria?
Abordaremos isso num próximo artigo, tentando explorar algumas facetas da nossa Psicologia Coletiva (o nosso temperamento e a nossa índole) e das relações entre a Economia, a Moral, a Cultura e a Religião.
O tema é difícil e, por isso, não se promete qualquer panacéia. Mas é preciso abrir o debate, tocando, aliás, no ponto-chave do desenvolvimento.
"...uma sociedade é a combinação, em graus diversos, de uma multidão de elementos heterogêneos: políticos uns, econômicos outros, e religiosos, artísticos, filosóficos, morais, que sei eu? Um todo um conjunto, uma articulação prodigiosamente complicada...". No entanto, algumas criaturas insistem no erro elementar.
Não se pode equacionar problemas econômicos, como a "competitividade" ou a "eficiência", sem ter em atenção a concreta sociedade dos homens.
O "homo oeconomicus" é um clichê, uma caricatura, e uma caricatura marxista. A história, ao contrário da doce ilusão socialista, não é a história da "luta de classes" ditada unicamente, ou sobretudo, pelo fator econômico.
Na Idade Média, organizaram-se "cruzadas" que lutavam pela Fé, tentando impor, pela espada, certas concepções aos povos "infiéis". A religião guiava a sociedade. A "respublica christiana" não era governada pelo dinheiro, mas pela força do Evangelho. Alguém, no seu perfeito juízo, acredita que é possível criar algo como os Beatles ou Dire Straits sem ser por uma paixão louca pela Arte e pela Música? Claro que não.
Os integrantes desses grupos fabulosos ganharam muito dinheiro e receberam royalties, mas havia, sem dúvida, uma força espiritual por detrás do êxito estrondoso. Eles buscavam o Belo! Tentaram interpretar a grandeza da alma humana.
Caso contrário, não teriam feito, como fizeram, grandes canções, melodias de rara beleza capazes de encantar várias gerações de ouvintes. Até hoje.
Marx estava equivocado. O "economismo" é uma teoria inservível e um erro metodológico grave. Peca pelo cinismo. A realidade é muito mais complicada. Ou complexa, se se quiser.
Um grande historiador francês contemporâneo, Lucien Febvre, co-fundador dos Annales d'Histoire Économique et Sociale, escreveu um parágrafo notável a esse respeito.
Disse ele: "...uma sociedade é a combinação, em graus diversos, de uma multidão de elementos heterogêneos: políticos uns, econômicos outros, e religiosos, artísticos, filosóficos, morais, que sei eu? Um todo um conjunto, uma articulação prodigiosamente complicada...". No entanto, algumas criaturas insistem no erro elementar.
Há uns anos atrás, eu próprio pude verificar a tremenda força da mentalidade marxista em Cabo Verde, quando uns "cientistas" sociais de carteirinha, com um rendilhado mais ou menos oco, tentaram "explicar" o aumento da criminalidade em função do aumento da pobreza.
A ideia é simples: o dinheiro, a economia, é o fator dominante, a chave mágica da história e dos problemas sociais. Ora, trata-se, como mostrei na altura, de uma "explicação" aberrante e manifestamente absurda. Uma falácia, em suma.
Épocas houve em que Cabo Verde era um país muito mais pobre, mas a criminalidade era, todavia, baixíssima. Por quê? Porque as pessoas tinham uma outra educação e, sobretudo, outros valores.
Havia uma doçura, uma simpatia tão agradável, que, ainda hoje, podemos apreciar nos nossos pais e avós. A cultura cívica degradou-se a olhos vistos, apesar do aumento do PIB e do crescimento econômico.
Nos Estados Unidos da América, a criminalidade atingiu o seu pico mais alto precisamente nos anos 60 do séc. XX, em plena época de prosperidade. Evitemos o simplismo e os cacoetes economicistas. O dinheiro é meramente instrumental.
Eu e você precisamos de dinheiro para realizarmos, unicamente, os nossos planos de vida. É certo que existem pessoas obcecadas com o vil metal. Todos nós conhecemos, aliás, alguns infelizes dessa estirpe. Mas até o avarento (aparentemente) mais estúpido, esse tio Patinhas cujos olhos brilham, rendidos, perante a maravilhosa moedinha de prata!, procura, no fundo, algo mais que o dinheiro: o prestígio, a consideração social.
Quando a vox populi confirmar que ele é, realmente, "o mais rico", o detentor da maior conta bancária do lugarejo, a sua felicidade será completa! Terá orgasmos intensos e incontroláveis, porque é isso que ele procura, e sempre procurou.
A construção da prosperidade em Cabo Verde não pode abstrair-se dos aspectos morais, religiosos e políticos, os verdadeiros pilares do crescimento econômico.
Temos, à partida, um problema gravíssimo. A confiança é muito baixa em Cabo Verde. O sr. José Maria Neves, visivelmente emocionado, garantiu a Hillary Clinton que o nosso país possui um forte "capital social". É falso. Redondamente falso.
Os estudos mostram que a população cabo-verdiana é, pelo contrário, altamente desconfiada. Tudo isso condiciona, como se sabe, a atividade econômica, aumentando, em grande medida, a burocracia e os chamados custos de transação. (Consulte-se Robert Putnam sobre esta matéria). O Estado e as instituições não ajudam.
Quem confiará, por exemplo, numa Justiça incapaz de responsabilizar um Primeiro-Ministro que cometeu, num só dia, cerca de meia dúzia de crimes?
José Maria Pereira Neves, cultor da impunidade, é a mais eloquente contra-prova daquilo que ele afirma. Não tem credibilidade para falar de "valores" e do primado da lei. Sidónio Monteiro e Marisa Morais, idem aspas. A moral imagination não existe na Neveslândia.
Além disso, a nossa herança cultural é latina e católica (e o catolicismo, após a Contra-Reforma, combateu a iniciativa privada e a liberdade econômica só a partir da Centesimus Annus, de João Paulo II, é que houve uma compreensão equilibrada do papel do mercado e da criação de riqueza).
Portugal e Espanha possuíam colônias ricas em ouro e outros metais preciosos. Territórios vastíssimos. Mesmo assim, ficaram para trás. Foram ultrapassados por países como a Holanda e a Inglaterra.
Não possuíam, na verdade, o mais importante, a ética econômica, tão bem estudada por Max Weber. As virtudes do trabalho (e, logo, da produtividade), da poupança e da honestidade constituem o segredo do desenvolvimento. A chave da prosperidade. Sem isso, não há progresso, nem "crescimento sustentável".
Ora, ainda não possuímos estes pré-requisitos. Vivemos na ilusão da "ajuda" e do dinheiro que vem de fora. Cada empréstimo conseguido é festejado ruidosamente nos telejornais, como se fosse um "feito nacional" de primeira grandeza! O efeito disto é o aumento exponencial da dívida pública e o desequilíbrio da balança de pagamentos.
Paulo Monteiro Jr., analisando o "impasse governativo", com base nas estimativas do Banco de Cabo Verde, põe o dedo na ferida: quanto às contas correntes e de capital, registra-se, para o biênio 2007/2008, "um déficit muito elevado, equivalente a 13% do PIB - uma situação obviamente insustentável, seja qual for o padrão".
Para o primeiro semestre de 2009, o déficit é de 791.683 milhões de CVE. A nossa cultura é desleixada e brincalhona. No limite, assistencialista. Não dispomos, por enquanto, das conditions of liberty ("condições da liberdade"), que tão intensamente preocuparam Gellner.
Um filósofo português, José Gil, trabalhou um conceito bastante instrutivo: a "não-inscrição". É a marca dominante da nossa psicologia coletiva. Sabemos que as regras existem, mas ninguém as cumpre nem possui, tampouco, vontade de as cumprir. Um breve mas significativo exemplo: todos, ou quase todos, possuem, hoje, um relógio. Mas esse instrumento tão decisivo, tão economicamente relevante, só tem, entre nós, um valor lúdico e facial. É um símbolo inútil. Supérfluo.
Não serve, ao que parece, e como se comprova todos os dias, para garantir a pontualidade e o cumprimento do horário! "Não-inscrição", pois. O valor prático de um objeto extraordinário e único (uma das maiores invenções da Humanidade) resulta, assim, completamente desvirtuado...