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quinta-feira, 29 de julho de 2010

LENDO DOM QUIXOTE

NIVALDO CORDEIRO



LENDO DOM QUIXOTE
29 de julho de 2010

 
São quatro os caminhos possíveis para abordar o livro de Miguel de Cervantes, DOM QUIXOTE. O primeiro deles é o estritamente literário, incluindo seu aspecto lingüístico; o segundo o histórico/biográfico; o terceiro o ângulo da filosofia política; por fim, o ângulo da psicologia analítica. Apenas esta última pode dar uma visão de conjunto definitiva sobre a obra.

A abordagem literária sobre o Dom Quixote é a mais prolixa e foi objeto de praticamente a totalidade dos grandes escritores de todos os tempos. Um exemplo recente, feito com muita competência, é a introdução de Vargas Llosa à edição comemorativa do Quarto Centenário, publicada sob o patrocínio da Casa Real espanhola. O peruano desvenda os tempos, as técnicas narrativas e a genialidade daquele que criou o romance moderno. Temos ensaios como o de Thomas Mann, escrito a bordo de um navio, em 1934, quando partia para o exílio nos EUA. Mann fez a sensacional descoberta de que a negação do Dom Quixote é o Zaratustra de Nietzsche e bem se vê que sua futura obra prima, DOUTOR FAUSTO, resultou dessas meditações.

Outro exemplo é o que escreveu Vladimir Nabokov (LECTURES ON DON QUIXOTE), um trabalho exaustivo para o qual faço restrições, especificamente à afirmação de que a obra cervantina contém um traço de crueldade e mistificação. Nada mais falso. Nabokov deveria ter visto o contrário, que a trindade Verdade, Beleza e Bondade são os traços predominantes do Cavaleiro da Triste Figura. Talvez o tom cômico genialmente utilizado tenha obnubilado a leitura do russo. A paródia e o non sense em Dom Quixote são os instrumentos pelos quais Cervantes pode dizer o que bem quis, analisar, profetizar e discorrer sobre as mazelas do seu tempo sem ser importunado pela censura e nem torturado pela prisão. Ele fez os poderosos rirem de si mesmos, sem se dar conta.

Quem melhor o compreendeu, sob o ponto de vista literário, foi Miguel de Unamuno no livro A VIDA DE DOM QUIXOTE E SANCHO PANÇA, obra escrita em 1905 e comemorativa do seu terceiro centenário. Corretamente Unamuno viu no Quixote o espírito cristão que vagava desencarnado sobre a terra, depois da emergência do humanismo renascentista. Cervantes deu vida a esse espírito.  Eu sou o que sou”, um homem a procura de si mesmo, o oposto do revolucionário moderno, que quer ser aquilo que deseja ser e transformar o mundo ao seu talante. Por isso Unamuno sugere que a criação literária é maior do que seu autor, visão diametralmente oposta à de Ortega y Gasset. Viu também corretamente que o modelo usado para a construção do personagem foi a biografia de Santo Inácio de Loyola. Unamuno se aproxima, de maneira formidável, do método da psicologia analítica antes mesmo dele ter sido inventado. Um exemplo é o tratamento dado ao feminino na personagem DulcinéiaUnamuno a equipara à entronização do feminino na corte celeste, na figura da Virgem Maria. Até sugere que dessa forma a Trindade se tornaria umaquaternidade, tema tão caro a Jung e a sua psicologia analítica.

A segunda abordagem é a histórico/biográfica. Todas as biografias escritas sobre Cervantes fizeram isso, de maneira melhor ou pior. Particularmente tenho preferido usar a obra de Jean Canavaggio (CERVANTES, Editora 34, São Paulo, 2005), que situou a vida de Cervantes dentro do contexto da vida política e literária da Europa do seu tempo.  A lição mais importante é compreender que Dom Quixote só faz sentido tendo-se em conta a rica e aventureira vida de seu criador.

A terceira abordagem é dada pela filosofia política. Os autores mais salientes são Ortega y Gasset e EricVoegelin, que viram no Dom Quixote o mecanismo de criação da Segunda Realidade, na qual toda a política moderna mergulhará. O reino dos céus é substituído pelo poder da lei estatal na salvação das massas. Será talvez a mais sensacional descoberta de Miguel de Cervantes, trazendo consigo grande poder heurístico. Ortega y Gasset, na sua obra de estréia (MEDITACIONES DEL QUIJOTE) cunhou a famosa fórmula filosófica “Eu sou eu e as minhas circunstâncias e, se não as salvo, não salvo a mim mesmo”. Isso é Dom Quixote falando, como bom cristão. Mas Ortega estava demasiadamente mergulhado no neokantismo deMarburgo  e sua visão errada sobre a formação européia, que excluía o cristianismo de qualquer papel relevante na sua formação cultural. Triste erro, que levará Ortega a um beco sem saída filosófico. Morreu sem saber que Dom Quixote e Kant são inconciliáveis. Ortega, ao contrário de Thomas Mann, tentou usar expressões nietzschianas para analisar o livro, usando especialmente a intuição do alemão sobre a oposição superfície/profundidade (ou consciência como superfície, inconsciente como profundidade) e o tema da floresta. Viu certo, mas não compreendeu por inteiro a sua intuição.  Difícil é saber como Ortega conciliou seu agnosticismo com essa visão francamente ativa da transcendência.

Mas Ortega foi maravilhosamente cervantino ao desenvolver a sua teoria da rebelião das massas. O tema já estava em Dom Quixote. O desaparecimento das elites e a emergência das massas desembestadas são simbolicamente demonstrados pelo episódio do duque, que se rebaixa ao nível de Sancho Pança.  Sancho entroniza-se o duque de Baratária. É a sombra governando o mundo, conforme desenvolvido mais abaixo. O poder foi enlouquecido pelo igualitarismo.

Eric Voegelin foi genial ao escrever sua filosofia política usando o conceito de Segunda Realidade. Ele também analisa a corrupção das elites alemãs, tornadas “ralé” pelo nazismo. Será assim o único filósofo a compreender corretamente o fenômeno do nazismo, pois apenas este conceito cervantino dá conta de explicar o que aconteceu. Ele viu além de Ortega. E diga-se de passagem que Voegelin, no âmbito da filosofia, foi o autor que levou mais longe a descoberta cervantina, tornando-a o fundamento da sua análise. No livro HITLER E OS ALEMÃES ele dedicou um capítulo ao Dom Quixote, único meio de clarear sua análise. Sua filosofia política deve muito ao texto de Miguel de Cervantes. O ponto central é a perda da hierarquia natural, conforme era vista pelos clássicos e pelos filósofos cristãos. A igualdade virou o mantra da rebelião das massas.

Por fim, temos a quarta abordagem, a da psicologia analítica. Basicamente é o método inventado por Carl Jung e empregado brilhantemente por ele para analisar Nietzsche nos famosos seminários sobre o Zaratustra, ocorridos entre 1934 e 1939. Dom Quixote é todo construído por duplos que refletem figuras arquetípicas. A narração é, toda ela, simbólica.

Um exemplo: a saída para a primeira jornada se dá pela porta falsa dos fundos da casa, claramente uma alusão a um mergulho no inconsciente. Ela tem duração de três dias, o tempo de Cristo no túmulo. No capítulo IV é relatado que, na estalagem a que chegou ao fim do dia mais quente do verão (solstício, a primeiro grau de Leão), Dom Quixote se deparou com um antro infernal: prostitutas (negação da puraDulcinéia), criadores e condutores de varas de porcos,  tocando instrumentos musicais (o espírito dionisíaco/demoníaco), e o gordo estalageiro, que prefigura Sancho Pança, vindo em seu auxílio. (Porcos são animais impuros para os quais Jesus expulsou os demônios, animais malditos pelo judaísmo. AlonsoQuijano só comia carnes de boi e ovelha, uma pista da ascendência judaica de Cervantes). Não há lugar na estalagem para ele dormir, no antro infernal. Era um homem bom demais para isso. O solitário Quixote passa por um ritual de iniciação ao ser tornado cavaleiro no local mais imundo e espiritualmente degradado, ao pé de uma fonte, uma pia batismal, uma imagem notável para a Água da Vida.

Desconsiderando as pantomimas da narrativa, temos aqui um momento decisivo da jornada do herói arquetípico, o seu batismo de sangue. Derrota aqueles que querem conspurcar suas armas, os condutores de mulas e porcos. Sagrado cavaleiro andante, ele retorna e busca a sua sombra, que sempre estará de prontidão para ajudá-lo, Sancho Pança.

Outro exemplo: o episódio em que ele “salva” o garoto empregado (Andrés) do fazendeiro (Juan Haldugo) da surra é todo simbolismo. O garoto é o próprio Cervantes que precisa crescer dentro do seu processo de iniciação e a surra simboliza o sofrimento necessário para o crescimento. Ele estava sendo surrado porque falhava como pastor, deixando que ovelhas todos os dias se perdessem. A imagem cristã fala por si. Na seqüência, encontra o caminho que se quadrifurca, em cruz, e encontra os mercadores toledanos. Quemsão? O povo comum, miúdo, os freqüentadores de feira livre. O povo não o reconhece cavaleiro e o mói de pancadas, sua lança é quebrada e ele jaz por terra. A iniciação se completara com todo o sofrimento esperado.
Outro exemplo singular da utilidade do método junguiano está no Prólogo, dedicado ao “Desocupado leitor”. Quem? Está desocupado quem dorme e tem assim acesso aos caminhos da alma ou aquele que está desperto para as coisas do espírito, alheio às coisas enganosas deste mundo. Cervantes se diz apenas opadrasto de Dom Quixote. Quem é o pai? O daimon, o mesmo de Sócrates, o mesmo de Nietzsche, o Virgílio de Dante, o mesmo dos autores de todas as obras primas. A abertura da alma ao elemento transcendente é, de fato, o pai de qualquer grande personagem, de qualquer grande obra. Cervantes não fez literatura apenas, aqui, fez um relato factual. Não é uma simulação de humildade, é a descrição de um fatopsíquico.O um se fez dois...”, como escreveu o próprio Nietzsche sobre o Zaratustra certa vez. Como Cervantes e seu Quixote são profundamente cristãos então podemos dizer que a inspiração nasceu direto do Espírito Santo ou de um anjo do Senhor  e que Dulcinéia é, como ensinou Unamuno, a simples encarnação da Verdade, a mais pura.

Tampouco podemos desprezar o aviso posto no Prólogo:  Eu determino que o senhor Dom Quixote há de permanecer sepultado nos seus arquivos de La Mancha até que o céu proporcione quem o adorne de tantas coisas como lhe faltam, pois eu me acho incapaz de as remendar, por minha insuficiência e poucas letras, e por ser de natureza poltrão e preguiçoso no andar à cata de autores que digam o que eu bem sei dizer sem eles.” Um reconhecimento definitivo de que a obra nasceu maior do que seu autor, obra póstuma, apesar de seu sucesso imediato.  Foi preciso chegar o horrendo século XX e as brilhantes mentes deUnamuno, Ortega, Vargas Llosa, Voegelin, Thomas Mann e Robert Musil, entre outros, mas situar o Cavaleiro da Triste Figura na moldura de sua real grandeza. E o Dr. Jung, o mestre de Zurique, que muito descobriu sobre a alma humana.

Dom Quixote deve ser compreendido assim, da mesma maneira como Jung compreendeu o Zaratustra de Nietzsche. Em minha opinião é a única maneira de se esgotar o oceano de verdades contidas na obra prima de Miguel de Cervantes. Nenhum parágrafo pode ser deixado de lado sem a devida compreensão.

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A teoria marxista da “ideologia de classe” não tem pé nem cabeça. Ou a ideologia do sujeito traduz necessariamente os interesses da classe a que ele pertence, ou ele está livre para tornar-se advogado de alguma outra classe. Na primeira hipótese, jamais surgiria um comunista entre os burgueses e Karl Marx jamais teria sido Karl Marx. Na segunda, não há vínculo entre a ideologia e a condição social do indivíduo e não há portanto ideologia de classe: há apenas a ideologia pessoal que cada um atribui à classe com que simpatiza, construindo depois, por mera inversão dessa fantasia, a suposta ideologia da classe adversária. Uma teoria que pode ser demolida em sete linhas não vale cinco, mas com base nela já se matou tanta gente, já se destruiu tanto patrimônio da humanidade e sobretudo já se gastou tanto dinheiro em subsídios universitários, que é preciso continuar a fingir que se acredita nela, para não admitir o vexame. Olavo de Carvalho, íntegra aqui.
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" Platão já observava que a degradação moral da sociedade não chega ao seu ponto mais abjeto quando as virtudes desapareceram do cenário público, mas quando a própria capacidade de concebê-las se extinguiu nas almas da geração mais nova. " Citação de Olavo de Carvalho em "Virtudes nacionais".