12 de outubro de 2008
O desafio de reaparelhar as Forças Armadas para proteger nossas riquezas – como o petróleo do pré-sal – de vizinhos cada vez mais problemáticos |
Por Roberto Lopes e Maria Helena Passos (*)
Segunda semana de fevereiro de 2008. O italiano Pietro Borgo, tipo baixo, pálido, cabelos grisalhos, de aparência não muito simpática, entra no gabinete do comandante da Marinha, almirante Júlio Moura Neto, em Brasília. A Iveco Defense, empresa que o executivo dirige em Bolzano, norte da Itália, acabara de ganhar, em consórcio com parceiros brasileiros, um atraente contrato do Exército para fornecer os protótipos da nova família de veículos blindados leves. Sobre rodas, eles substituirão os já cansados e obsoletos Cascavéis e Urutus, fabricados em São Paulo três décadas atrás.
O Exército requer 1.970 desses veículos, e Borgo tinha a informação de que os fuzileiros navais também precisariam de, ao menos, algumas dezenas deles. Basta saber que os Urutus que os fuzileiros levaram para patrulhar as ruas de Porto Príncipe, na missão de paz patrocinada pela ONU no Haiti, exibiram tamanhas deficiências que a Marinha teve de importar, em 2007, uma dúzia de carros suíços para levar seu trabalho a bom termo.
No catálogo multicolorido exibido por Borgo a Moura Neto, saltitavam os últimos modelos de blindados anfíbios, que, levados de barco até perto da praia, navegam lépidos em meio à arrebentação das ondas. Eles já equipam tropas de fuzileiros de diferentes Marinhas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e, volta e meia, aparecem no Iraque e no Afeganistão.
Moura Neto olha curioso, mas sem interesse objetivo. Num inglês direto, diz:
– Poderemos comprar os mesmos carros que os senhores vão fabricar para o Exército.
Os olhos claros do visitante piscam rápidos, num gesto automático para se refazer da surpresa. Então não é de blindados aptos ao desembarque nas praias que a infantaria da Marinha do Brasil precisa? Como se adivinhasse a confusão instalada na cabeça do italiano, o almirante brasileiro afirma:
– Queremos esses carros para cruzar rios.
NOVO DESAFIO |
Dessa forma, o comandante da Marinha do Brasil sintetizou há oito meses a realidade estratégica que hoje orienta a defesa do país: os fuzileiros, infantaria de elite dessa força armada em qualquer país, cuja missão é lutar nas praias oceânicas durante o desembarque, terão de se deslocar, de forma protegida, a bordo de viaturas blindadas, no emaranhado de rios da Amazônia. Essa região brasileira, que por séculos viveu ao abrigo de quaisquer intervenções – locais ou estrangeiras –, é o atual centro dos acontecimentos.
Esta edição de ÉPOCA Debate trata dos desafios que essa mudança de prioridades impõe às Forças Armadas brasileiras. Espera-se, para as próximas semanas, o anúncio de um novo Plano Estratégico da Defesa Nacional, cujas linhas gerais são reveladas em primeira mão nesta edição pelo ministro Roberto Mangabeira Unger. Ao longo destas páginas, analisamos ainda a nova conjuntura a que os militares têm de responder, quão defasada está nossa estrutura em relação às necessidades e o tamanho do desafio de vigiar uma Amazônia tão vasta e despovoada. Também mostramos, num quadro histórico, como as Forças Armadas atuaram na vida dos brasileiros – com ações que vão da Proclamação da República à instauração da ditadura, do pioneiro esforço de proteção aos indígenas pelo marechal Cândido Rondon à ocupação do Rio de Janeiro para garantir a segurança das últimas eleições municipais.
O Brasil é um dos três únicos países do planeta que fazem fronteira com dez ou mais vizinhos terrestres – os outros dois são a Rússia, com 14, e a China, com dez. Por isso, precisa ter tato diplomático para lidar com países com todo tipo de orientação político-ideológica. O arco de 15.700 quilômetros que vai da Tríplice Fronteira, na foz do Rio Iguaçu, em pleno Sudeste, até o Oiapoque, limite setentrional com a Guiana Francesa, reúne, pela primeira vez, governos irrequietos e até instáveis, cujas atitudes não podem ser para sempre tratadas com bonomia e condescendência.
Se a Amazônia subiu ao topo das prioridades para as Três Armas, a proteção a riquezas emergentes no Atlântico tende a mudar radicalmente o perfil modorrento que a Defesa assumiu em décadas recentes. Daí a preocupação do almirante Moura Neto, também, com a vigilância das águas, cuja exploração econômica é reconhecida como de direito do Brasil. São 4,4 milhões de quilômetros quadrados, ou metade do território brasileiro. "Amazônia Azul", eis como seus colegas de farda a chamam.
Nela, figuram as jazidas submarinas que, entre os litorais do Espírito Santo e de São Paulo, prometem transformar o Brasil em exportador de petróleo. E, também, as rotas dos que atacam as tripulações de barcos mercantes, dos contrabandistas de armas e dos traficantes de tóxicos, sob vigilância dramaticamente precária. Por falta de recursos, o controle por radar do tráfego marítimo na área da bacia fluminense de Campos inexiste. Para monitorar a extensa costa do Amapá, onde é desovado o contrabando oriundo das Guianas, a Marinha dispõe apenas de um navio-patrulha de 200 toneladas. Seu canhão atira, no máximo, a 12 quilômetros.
Em 2007, cinco meses antes do diálogo entre o executivo italiano Pietro Borgo e o almirante Moura Neto, o general Enzo Peri, comandante do Exército, disse a congressistas em Brasília que, antes de pensar em instalar mais quartéis na Amazônia, é preciso "dar condições de operacionalidade às instalações que existem na fronteira". Elas somam 71 e convivem com um terror: a inclemência do tempo, quentíssimo e de alto índice de umidade. Não faltam canhões, balas ou rádios de campanha, mas, sim, ar-condicionado ou geladeiras para que soldados nas fronteiras com a Venezuela, Colômbia e Bolívia possam guardar alimentos. E para que o comando da Aeronáutica abrigue suas modernas aeronaves, como os caça-bombardeiros AMX, verdadeiros computadores voadores.
Para uma sociedade que, há três gerações, vive ao abrigo de conflitos armados internacionais, essa conversa soa enigmática. No Brasil, há dois militares profissionais na ativa por mil habitantes. Nos Estados Unidos e na Colômbia, ambos metidos em conflitos quentes, essa proporção é cinco vezes maior. O solo brasileiro não é invadido desde 1865, quando pelo Rio Grande do Sul começou a Guerra do Paraguai, o maior conflito sul-americano da História, em que 10 milhões de brasileiros alocaram 200 mil soldados. Quando o governo fala em reativar a indústria de defesa e comprar equipamentos modernos, disposto a aplicar no setor 1% adicional do Produto Interno Bruto (PIB), é como se houvesse um pacto de solidariedade nacional para proteger a Amazônia ou as recém-descobertas jazidas submarinas de petróleo.
Por quase todo o século XX, o esforço com a defesa se justificou pela rivalidade temerosa com o maior poder econômico da Argentina. Hoje, o desafio está em outro lugar, em querelas localizadas. Algumas nada têm a ver com o Brasil – caso da insatisfação regional nas províncias limítrofes da Bolívia ou da guerrilha histórica que ocupa partes da selva colombiana e cujos protagonistas usam a porosidade da fronteira como retaguarda para abastecimento e descanso. A intuição reza que a inércia diante desse barulho pode ser inaceitável.
A difícil questão é respondida, no novo Plano Estratégico, com argumentos que defendem o interesse nacional. E superam o conflito ideológico dominante no século XX, que vigiava em nome do discutível "perigo comunista". O Brasil chegou a conquistar, em nome dessa pendenga global, boa dose de autonomia em defesa, com programas de origem militar, como a pesquisa nuclear e espacial, a indústria aeronáutica, a de construção naval, e a aplicação militar da eletrônica e da informática que consumiram farto investimento. Mas tudo ruiu em 1982, quando o Brasil quebrou por causa de suas finanças externas. Denso e magro, um livreto escrito nos anos 1950 pelo então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, cérebro mais bem preparado da então nascente Escola Superior de Guerra, era o manual estratégico de defesa de que dispunha o país. Sob o título de Planejamento Estratégico, o Brasil emergia como potência média, de influência regional, protegida de confrontos "pelo guarda-chuva nuclear" dos Estados Unidos.
Para sair dessa condição subalterna, os militares articularam um projeto de autonomia tecnológica. Seus rebentos são a Embraer ou o sistema de propulsão do submarino nuclear, desenvolvido no Centro Tecnológico da Marinha, em São Paulo. A estabilidade da moeda, conquistada a partir de 1994, e a construção do mercado interno auto-sustentável trouxeram questões de longo prazo. O petróleo do pré-sal renderá dinheiro a partir de 2017. Até lá, o sistema de proteção terá de funcionar. Para coabitar com essa potência brasileira futura, alguns vizinhos falam cada vez mais grosso. Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, do Equador, já testam a paciência do Brasil para melhorar sua imagem no jogo político interno. No manejo dessa provocação, ninguém é mais hábil que Hugo Chávez, presidente desde 1999 da Venezuela, vizinho com que o Brasil tem sua maior fronteira terrestre.
PAZ APARENTE |
Antigo oficial pára-quedista, Chávez gere US$ 60 bilhões recolhidos a cada ano com a venda do petróleo. Ele decidiu substituir seu equipamento americano, hoje carente de peças originais de reposição. Congressistas americanos afirmam que a Venezuela gastou, entre 2003 e 2007, ao menos US$ 4,4 bilhões em equipamento militar russo. Estima-se, entre os gabinetes militares do governo Bush, que o objeto do desejo de Caracas ao negociar com russos é um escudo antimísseis. Não existe – como jamais existiu – nenhum traço concreto de animosidade venezuelana. Mas a tarefa de proteger o espaço nacional começa pela manutenção do equilíbrio regional. A um sistema com esse grau de modernidade, tudo o que o Exército do Brasil tem para contrapor são alguns foguetes SS-60, para atingir alvos terrestres a uma distância máxima de 70 quilômetros, entregues aos quartéis, nos anos 90, pela empresa paulista Avibras.
Daí a fórmula dos blindados com vocação para operar nos rios que os fuzileiros pretendem comprar – desde que a fabricação e o conhecimento dos sistemas de combate estejam em mãos brasileiras. Daí também o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter participado na Helibras, em Itajubá, sul de Minas Gerais, em junho, do lançamento do programa de fabricação dos helicópteros Cougar, que só deverão voar com até 30 soldados equipados a distâncias de até 500 quilômetros pela Amazônia Ocidental em 2010.
A ansiedade dos oficiais da Marinha é grande e transparente. A proteção de reservas exploradas a mais de 350 quilômetros das praias do Sudeste como Tupi, a primeira grande jazida confirmada na Bacia de Santos, requer capacidade para voar até os limites da costa da África, para navegar submerso por um trimestre, para dissuadir eventuais atacantes que venham do Leste e para vigiar o Atlântico Sul inteiro, de modo a obter uma ponte na coordenação da defesa. São meios de alta tecnologia, cujos segredos de concepção e fabricação devem ser dominados por uma sociedade que almeja manter sua independência e requerem investimentos gigantescos e continuados. A decisão de enfrentar o problema é o primeiro passo em busca da solução. O desafio é enorme – como se vê pela reportagem seguinte, que descreve as carências e a defasagem do aparato bélico brasileiro.
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