Denis Lerrer Rosenfield, segunda-Feira, 13 de Outubro de 2008
A crise nos EUA tem suscitado as mais contraditórias manifestações, não apenas no que diz respeito às medidas adotadas, mas também às suas conseqüências propriamente ideológicas, políticas. Formadores de opinião que eram contra as medidas "capitalistas" de Lula passam a defendê-las, criticando o mesmo capitalismo. Em particular, no Brasil, os efeitos ideológicos têm sido importantes, pois os setores de esquerda mais atrasados parecem ter ganho maior vigor nestas últimas semanas. E a crise tende a se prolongar por vários meses.
O presidente Lula não primou pela responsabilidade em suas primeiras manifestações, ao colocar o Brasil como uma ilha de tranqüilidade num oceano de tormentas. As críticas ao presidente Bush e ao capitalismo têm sido acompanhadas do elogio às políticas adotadas no País, como se estas tivessem sido uma opção ao capitalismo. A contradição é flagrante. O País está atravessando a crise mundial graças ao fato de ter adotado uma política capitalista responsável. Deu autonomia operacional ao Banco Central, manteve o câmbio flutuante, conservou o superávit fiscal (mesmo que o tenha feito via aumento dos impostos), teve uma gestão rigorosa da taxa de juros e conservou as metas de inflação. Ou seja, o êxito atual se deve, precisamente, ao abandono de importantes bandeiras socialistas do PT. O êxito se deve à adoção de uma política "neoliberal". Paradoxalmente, isso está servindo ao propósito de uma reanimação de propostas esquerdizantes, quando estas, se praticadas, teriam levado o Brasil a uma crise de dimensões incomensuráveis.
Temos algo do seguinte tipo: capitalistas aqui e acolá, como se uns devessem abandonar sua denominação própria, passando a se chamar socialistas ou outro nome equivalente. A razão que tem sido avançada é a de que se torna necessária uma maior regulação do Estado, como se isso significasse retorno ao socialismo. Pulula nos meios de comunicação a expressão "fim do capitalismo". Ora, regulações e instituições sempre fizeram parte de uma economia de mercado. Na sua ausência, crises foram criadas ou potencializadas. Mesmo historicamente, o mercado só começou a se desenvolver quando instituições - a saber, normas, regras e contratos por todos respeitados - passaram a vigorar. O problema, contudo, é que no Brasil a leitura do papel do Estado e de suas instituições pode ser outra, a de que convém aparelhar ainda mais partidariamente a máquina estatal e aumentar o número de funcionários públicos.
Essa leitura da crise pode ter como desfecho uma ainda maior hipertrofia do Estado brasileiro, com aumento da burocracia, de regulações e, mais preocupante, maior aparelhamento partidário e ideológico das agências reguladoras. O mote pode ser: a crise americana nos ensina que devemos aumentar as regulações. E isso se traduziria pelo seguinte: mais companheiros nas agências reguladoras e nos órgãos do Estado. Pior ainda, aplicação de medidas ditas "socializantes" para contra-restar os efeitos perniciosos do capitalismo. Pragmaticamente, o governo reconhece a obrigação de reduzir os gastos correntes, aumentar as linhas de crédito para as empresas exportadoras e o agronegócio, manter o Banco Central independente, mas, por outro lado, pende igualmente para aumentar os seus gastos, ingerir nas agências reguladoras e relativizar a propriedade privada.
Talvez o conceito mais adequado para caracterizar a atual situação seja o de "destruição criadora", elaborado por Joseph Schumpeter, em seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia. O capitalismo, ciclicamente, produz crises, que geram grandes perdas para alguns setores e ganhos para outros. Alguns estão efetivamente perdendo e outros estão ganhando, por exemplo, comprando ações de empresas desvalorizadas pela queda de suas cotações. O papel dos bancos de investimento será certamente reavaliado no seu modo atual de funcionamento, sobretudo nos EUA. Criam-se novas oportunidades e novas formas de desenvolvimento futuro, por maior que seja o impacto presente. Nada disso, no entanto, significa o fim do capitalismo nem a emergência do socialismo. O capitalismo e o Estado em que este se dá aprendem com suas crises e avançam em novos patamares. Claro que há um espaço, e grande, para que erros sejam cometidos. Isso não significa, porém, que a economia de mercado estaria com seus dias contados.
O que mais se lê nos jornais, no entanto, é que o capitalismo estaria exibindo o seu fracasso. É curioso. A cada crise, Marx dizia a mesma coisa no século 19 e morreu no seu sofá pensando que, infelizmente, não teria tempo para presenciar a crise final. O que Marx pensou corretamente é que as crises fazem parte do desenvolvimento do capitalismo, sendo, por assim dizer, estruturais ao seu processo. Equivocou-se, porém, ao considerar que haveria uma crise terminal, na qual soariam as trombetas do juízo final, com a salvação socialista da humanidade. Nada disso, no entanto, aconteceu e o capitalismo soube se renovar, contrariando todos esses prognósticos.
Não se devem confundir novas regulações necessárias de um mercado financeiro que passou a operar sem regras com a necessidade de anulação do próprio mercado. Ou, ainda, o problema pode ser colocado em termos de necessidade de maior transparência e fiscalização de operações financeiras, para que estas passem a atuar segundo princípios que deveriam reger uma economia de mercado e foram parcialmente abandonados.
Não é demais ressaltar novamente que o fato de o Brasil estar atravessando relativamente bem a tormenta internacional se deve precisamente a ter feito uma gestão capitalista responsável, não seguindo nenhuma aventura. Poder-se-ia mesmo dizer que, nos últimos anos, a gestão dos mercados financeiros no Brasil foi mais responsável do que a americana, por ter seguido melhor os princípios de uma economia capitalista.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia
na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
O presidente Lula não primou pela responsabilidade em suas primeiras manifestações, ao colocar o Brasil como uma ilha de tranqüilidade num oceano de tormentas. As críticas ao presidente Bush e ao capitalismo têm sido acompanhadas do elogio às políticas adotadas no País, como se estas tivessem sido uma opção ao capitalismo. A contradição é flagrante. O País está atravessando a crise mundial graças ao fato de ter adotado uma política capitalista responsável. Deu autonomia operacional ao Banco Central, manteve o câmbio flutuante, conservou o superávit fiscal (mesmo que o tenha feito via aumento dos impostos), teve uma gestão rigorosa da taxa de juros e conservou as metas de inflação. Ou seja, o êxito atual se deve, precisamente, ao abandono de importantes bandeiras socialistas do PT. O êxito se deve à adoção de uma política "neoliberal". Paradoxalmente, isso está servindo ao propósito de uma reanimação de propostas esquerdizantes, quando estas, se praticadas, teriam levado o Brasil a uma crise de dimensões incomensuráveis.
Temos algo do seguinte tipo: capitalistas aqui e acolá, como se uns devessem abandonar sua denominação própria, passando a se chamar socialistas ou outro nome equivalente. A razão que tem sido avançada é a de que se torna necessária uma maior regulação do Estado, como se isso significasse retorno ao socialismo. Pulula nos meios de comunicação a expressão "fim do capitalismo". Ora, regulações e instituições sempre fizeram parte de uma economia de mercado. Na sua ausência, crises foram criadas ou potencializadas. Mesmo historicamente, o mercado só começou a se desenvolver quando instituições - a saber, normas, regras e contratos por todos respeitados - passaram a vigorar. O problema, contudo, é que no Brasil a leitura do papel do Estado e de suas instituições pode ser outra, a de que convém aparelhar ainda mais partidariamente a máquina estatal e aumentar o número de funcionários públicos.
Essa leitura da crise pode ter como desfecho uma ainda maior hipertrofia do Estado brasileiro, com aumento da burocracia, de regulações e, mais preocupante, maior aparelhamento partidário e ideológico das agências reguladoras. O mote pode ser: a crise americana nos ensina que devemos aumentar as regulações. E isso se traduziria pelo seguinte: mais companheiros nas agências reguladoras e nos órgãos do Estado. Pior ainda, aplicação de medidas ditas "socializantes" para contra-restar os efeitos perniciosos do capitalismo. Pragmaticamente, o governo reconhece a obrigação de reduzir os gastos correntes, aumentar as linhas de crédito para as empresas exportadoras e o agronegócio, manter o Banco Central independente, mas, por outro lado, pende igualmente para aumentar os seus gastos, ingerir nas agências reguladoras e relativizar a propriedade privada.
Talvez o conceito mais adequado para caracterizar a atual situação seja o de "destruição criadora", elaborado por Joseph Schumpeter, em seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia. O capitalismo, ciclicamente, produz crises, que geram grandes perdas para alguns setores e ganhos para outros. Alguns estão efetivamente perdendo e outros estão ganhando, por exemplo, comprando ações de empresas desvalorizadas pela queda de suas cotações. O papel dos bancos de investimento será certamente reavaliado no seu modo atual de funcionamento, sobretudo nos EUA. Criam-se novas oportunidades e novas formas de desenvolvimento futuro, por maior que seja o impacto presente. Nada disso, no entanto, significa o fim do capitalismo nem a emergência do socialismo. O capitalismo e o Estado em que este se dá aprendem com suas crises e avançam em novos patamares. Claro que há um espaço, e grande, para que erros sejam cometidos. Isso não significa, porém, que a economia de mercado estaria com seus dias contados.
O que mais se lê nos jornais, no entanto, é que o capitalismo estaria exibindo o seu fracasso. É curioso. A cada crise, Marx dizia a mesma coisa no século 19 e morreu no seu sofá pensando que, infelizmente, não teria tempo para presenciar a crise final. O que Marx pensou corretamente é que as crises fazem parte do desenvolvimento do capitalismo, sendo, por assim dizer, estruturais ao seu processo. Equivocou-se, porém, ao considerar que haveria uma crise terminal, na qual soariam as trombetas do juízo final, com a salvação socialista da humanidade. Nada disso, no entanto, aconteceu e o capitalismo soube se renovar, contrariando todos esses prognósticos.
Não se devem confundir novas regulações necessárias de um mercado financeiro que passou a operar sem regras com a necessidade de anulação do próprio mercado. Ou, ainda, o problema pode ser colocado em termos de necessidade de maior transparência e fiscalização de operações financeiras, para que estas passem a atuar segundo princípios que deveriam reger uma economia de mercado e foram parcialmente abandonados.
Não é demais ressaltar novamente que o fato de o Brasil estar atravessando relativamente bem a tormenta internacional se deve precisamente a ter feito uma gestão capitalista responsável, não seguindo nenhuma aventura. Poder-se-ia mesmo dizer que, nos últimos anos, a gestão dos mercados financeiros no Brasil foi mais responsável do que a americana, por ter seguido melhor os princípios de uma economia capitalista.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia
na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
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