Olavo de Carvalho - 22/6/2010 - 20h37
Contei recentemente o caso de um de meus amigos mais inteligentes, anticomunista e católico fervoroso, líder de uma valente campanha antiaborto no Brasil, que me recomendou um livro William F. Engdahl, o qual, dizia ele, rastreava com muita exatidão a origem do movimento abortista no projeto global de controle da natalidade concebido e financiado pelos Rockefellers e outros banqueiros internacionais.
Lendo o livro, notei que Engdahl se aproveitava de uma denúncia verídica para jogar sobre a elite americana todas as culpas dos males do mundo, ocultando a ação dos comunistas e dos muçulmanos.
O que ele omitia era tão importante quanto o que mostrava, mas meu amigo, com toda a sua experiência de décadas na militância católica, não se dera conta de nada. Só começou a desconfiar de alguma coisa quando lhe mostrei os vídeos de propaganda antiamericana que Engdahl fizera para a televisão estatal russa.
Quase na mesma época, outro amigo meu, igualmente talentoso e brilhante, e tão anticomunista quanto o primeiro, apareceu defendendo com ardor a liberação das drogas, com base na concepção liberal de que o Estado não deve se meter na conduta privada dos cidadãos. Nem de longe lhe ocorria que a aplicação direta e rasa desse preceito abstrato nas condições históricas presentes da América Latina resultaria na imediata consagração das Farc como empresa capitalista normal e partido político legítimo, entregando-lhes de mão beijada tudo o que elas não haviam logrado obter pela violência.
Um terceiro amigo, americano, militante conservador, lutava pela destruição de todas as lideranças republicanas que se acomodassem, por motivos de mera tática eleitoral, a alianças mesmo temporárias com a elite esquerdista. Para ele, toda política que não seguisse literalmente os preceitos da moral bíblica era coisa do diabo. Em vão tentei mostrar-lhe que a implantação forçada do cristianismo como regra da política exigiria uma concentração formidável do poder estatal, estrangulando a democracia a pretexto de defendê-la e, em última instância, realizando por meios extraeconômicos a profecia enunciada por Friedrich Hayek em O Caminho da Servidão. Afinal, o primeiro regime totalitário da modernidade e a organização da massa militante requerida para implantá-lo não foram invenções –nem de comunistas nem de fascistas, mas de João Calvino na Suíça protestante.
Em Washington D.C. , o Hudson Institute, o mais prestigioso think tank americano, realizou uma sessão em homenagem à tradição espiritual sufi, enaltecendo-a como alternativa ao radicalismo islâmico. Não apareceu ali um único expert para lembrar à plateia que a ocupação cultural e física do Ocidente pelo Islã não surgiu com os atentados terroristas nem com a imigração em massa, mas é um antigo projeto das taríqas, as organizações esotéricas sufis.
Na Colômbia, o presidente Uribe combateu bravamente as guerrilhas, ao mesmo tempo que, no afã de levar às suas últimas consequências o princípio abstrato da igualdade democrática, não só apoia todas as iniciativas da revolução cultural esquerdista mas oferece cargos públicos e proteção militar aos amigos e cúmplices das Farc, ajudando-os a obter pela via pacífica da sedução e do engodo o que não puderam conquistar pelo terror.
Política análoga segue no Brasil o candidato presidencial José Serra: reprime eficazmente a criminalidade no Estado que governa, mas se recusa a falar ou agir contra a aliança PT-Farc que a fomenta e protege.
Em todos os países da Europa Ocidental, os entusiastas da democracia moderna tentam fechar as portas à invasão islâmica ao mesmo tempo que buscam destruir os últimos valores civilizacionais cristãos que poderiam protegê-los do invasor.
Em suma, do ponto de vista de liberais e conservadores, tudo parece constituir-se de processos isolados, de fatores inconexos, de elementos separados. As guerrilhas não têm nada a ver com a mídia internacional que as apoia; a mídia é totalmente isolada dos organismos internacionais cujo discurso ela repete ipsis litteris; as ONGs ativistas alimentadas por dinheiro do narcotráfico não têm nenhum envolvimento com o narcotráfico; o narcotráfico por sua vez não tem nenhuma conexão com os serviços secretos russos e chineses que já o controlam desde a década de 60; a política e o crime são entidades estanques; a invasão islâmica não tem nada a ver com o esquema globalista euroamericano que a protege descaradamente, os banqueiros internacionais que financiam movimentos subversivos não são jamais subversivos em si mesmos.
Nada tem nada a ver com nada, e a História, no fim das contas,se constitui da somatória fortuita de curiosas coincidências. Qualquer tentativa de juntar os pontos parece a essas delicadas criaturas um sinal de paranóia conspirativa e, sobretudo, uma tremenda falta de educação.
Em contrapartida, qualquer militante esquerdista, ainda que sem experiência, apreende intuitivamente a unidade por trás de todos esses processos, mesmo os mais heterogêneos em aparência, pelo simples fato de que diariamente os vê convergir com a harmonia de esquadrões bem disciplinados no ataque geral ao inimigo comum, a civilização do Ocidente.
À articulação mundial da esquerda corresponde a completa desarticulação e fragmentação das direitas, não só no plano da ação estratégica, mas da simples percepção dos fatos.
Os marxistas sempre acusaram seu inimigo burguês de ter uma visão abstratista e mecanizada das coisas, incapaz de apreender a unidade do processo histórico. Se no passado essa acusação foi injusta, hoje em dia ela é a correta e fidedigna expressão dos fatos.
Por preguiça mental, covardia e inépcia presunçosa, os liberais e conservadores tornaram-se aquilo que os marxistas queriam que eles fossem. Cedendo ao inimigo, permitiram que ele os moldasse conforme bem lhe convinha.
Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia
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