edição do dia 21/09/2009
Um lugar onde os níveis de mortalidade infantil são iguais aos dos países mais pobres da África. A reportagem é de Marcelo Canellas e Lúcio Alves.
Um Brasil com cara de índio, do soldado ao prefeito, do padre ao peão.
“Nós somos civilizados também, não é índio demais não”, disse a índia tukuna Cândida Azevedo.
Aculturados, sim: com roupa e computador, mas sob absoluto abandono.
Nem os programas sociais mais abrangentes como o Bolsa Família e o Luz Para Todos chegam à região.
“Já levamos para brincadeira, nós chamamos de ‘luz para alguns’”, disse o diretor de escola Potázio Castro.
A região fica no noroeste do estado do Amazonas. Um município gigante, maior do que Portugal: São Gabriel da Cachoeira. No mapa, parece um cão de perfil, por isso mesmo esse pedaço do país é conhecido como Cabeça do Cachorro.
Não é fácil chegar ao município. O rio não deixa, a estrada acaba. O acesso complicado mantém os 23 povos indígenas da região de maior diversidade étnica do Brasil longe de quase tudo. Sem barco é pior.
É na base do favor que os enfermeiros do Distrito Sanitário Indígena trabalham.
Dezessete lanchas da Fundação Nacional de Saúde estão empilhadas em São Gabriel da Cachoeira por falta de motor.
A taxa de mortalidade infantil já era alta, mas deu um salto em 2009: 98 mortes por mil nascidos vivos. É quase cinco vezes a média brasileira, de 20 por mil. Metade dos pólos de saúde da região foi desativada.
O povo rúpida é o mais isolado da região. Ao contrário dos outros índios, eles não gostam muito de viver nas margens do rios, geralmente preferem o interior da mata, onde a subsistência é sempre mais difícil. É entre os rúpidas que foram detectados os casos mais graves de desidratação.
“Ave Maria cheia de graças, bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre Jesus”, reza uma família diante do túmulo de uma menina de um ano e meio. Seguindo o costume rúpida, as roupinhas foram queimadas.
Sem remédios, o agente de saúde trata a criançada com ervas e benzeduras.
“Também aqui a gente tem uma desnutrição crônica de base. E aí você tem uma alteração de proteínas e acaba tendo uma distensão abdominal também. Então é uma combinação de dois maus fatores”, explica a médica Maria Carolina Batista dos Santos.
A doutora Maria Carolina faz o que pode. Especialista em medicina tropical, já trabalhou na região mais miserável da África, e encontrou na Cabeça do Cachorro as mesmíssimas condições de saúde.
“Se morre muito de diarréia e as complicações da diarréia, desidratação, então se morre dessas causas que se você pegar, são as mesmas causas que você encontra em um campo de refugiados, de deslocados internos de qualquer outro lugar. Eles são bastante semelhantes ao que a gente vê em alguns grupos da Somália ou do Sudão”, disse a médica.
A Funasa diz que vai abrir uma auditoria para saber por que o dinheiro liberado este ano não melhorou o serviço e alega ter tentado contratar mais médicos, só que ninguém quer ir pra lá.
“A coisa mais rara na região Amazônica, não digo nem na aldeia indígena, no município. Lá, se não fosse o Exército não tinha médico”, explicou o diretor de saúde da Funasa, Wanderley Guenka.
Enquanto isso, a doutora Maria Carolina, médica da Funasa, cuida de 23 mil índios, sem meios e sem recursos e com a pior sensação que um médico pode experimentar.
“Saber que você pode, talvez, salvar aquela criança e que naquele momento você está impotente porque você não tem aquele medicamento ou porque você chegou tarde demais”, contou ela.
A Fundação Nacional de Saúde informou que foram investidos mais de R$ 5,6 milhões em materiais e remédios para a região do Alto do Rio Negro.
A auditoria feita pela Funasa constatou que a manutenção das equipes de saúde em campo é dificultada pela falta de motores para os barcos e recomendou que seja feito um estudo técnico para a compra do equipamento.
O Ministério do Desenvolvimento Social reconhece as falhas do programa Bolsa Família no atendimento às aldeias indígenas. Segundo o Ministério, as prefeituras não conseguem cadastrar todos os índios por causa da dificuldade de acesso às regiões isoladas. O ministério informou ainda que já fez um convênio com o Exército e com a Funai para melhorar a situação.
O Ministério de Minas e Energia prometeu que 12 aldeias da Cabeça do Cachorro vão ser beneficiadas pelo programa Luz Para Todos até dezembro.
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