21/09/2009
Encontrado no Incra, diário mostra o pensamento dos sem-terra sobre morte de companheiro
Humberto Trezzi e Maicon Bock
No dia em que a morte do sem-terra Elton Brum da Silva completa um mês, Zero Hora revela trechos de mais um caderno com anotações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que mostram as estratégias adotadas pela organização após o episódio.
Um novo caderno com anotações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), encontrado na sede desocupada do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na semana passada, revela o pensamento dos sem-terra sobre a morte de um companheiro. Em um dos trecho das anotações, o movimento pondera a necessidade de afastar o superintendente do Incra no Estado, Mozar Dietrich.
Jogado em uma lata de lixo no estacionamento do Incra, o caderno escolar com 26 páginas escritas à mão também permite que a sociedade conheça o que o movimento pensa sobre assuntos estratégicos. Pelo conteúdo revelado, percebe-se que o MST buscou capitalizar politicamente a morte do seu militante Elton Brum da Silva. O sem-terra foi morto há exatamente um mês com um tiro de espingarda disparado por um PM, na desocupação da Fazenda Southall, em São Gabriel. Embora lamente o episódio, pela dificuldade que o trauma acarretará no recrutamento de militantes, o autor comemora a repercussão.
— Assunto é o morto e ponto. Demos uma boa aquecida agora — escreveu o integrante do MST responsável pelos registros, encontrados por Zero Hora logo após a saída dos mais de 600 sem-terra do prédio invadido no dia 8 de setembro.
As anotações são tão claras que deixam margem para a suspeita de que o MST manda recados via cadernos abandonados. As anotações são metódicas e dogmáticas. O caderno mostra como os líderes planejam as estratégias de enfrentamento com as autoridades, como avaliam os saldos positivo e negativo da morte do acampado de Canguçu.
Ex-ouvidor agrário não acredita que escritos sejam abandonados de propósito
O achado detalha a invasão do Incra, que teria como principal objetivo desgastar e provocar a demissão do superintendente regional, Mozar Dietrich — um antigo aliado do MST — por posição contrária à criação de novos assentamentos no Rio Grande do Sul. Os escritos evidenciam ainda que a organização teme ficar isolada na sociedade. Em 15 páginas, os sem-terra constatam que sofrem “grande isolamento na sociedade e na esquerda”, mas que a morte do companheiro possibilitou a reabertura de diálogo com as autoridades ao dar nova visibilidade ao movimento.
Desde 2002, esta é pela menos a quarta vez que escritos do movimento vêm à tona. Em 8 de maio de 2008, por exemplo, logo após depredar a Southall, militantes deixaram para trás quatro cadernos preenchidos a caneta. Eram atas que revelavam o cotidiano na invasão. Em revistas nas escolas itinerantes do MST, promotores também encontraram manuais nos quais as crianças recebem uma noção positiva das invasões e aprendem que fazendeiros e policiais são inimigos.
Um dos que não se surpreende com o teor do caderno encontrado esta semana é o ex-ouvidor agrário do governo estadual Adão Paiani. Ele testemunhou em 2008 a apreensão de diários semelhantes, logo após o MST deixar a fazenda Southall. O então ouvidor denunciou atrocidades cometidas pelos sem-terra contra animais da fazenda, mas nem por isso caiu em desgraça junto ao MST, já que foi um dos primeiros a protestar contra a morte a tiro do sem-terra Elton Brum, no que qualificou de “ação desastrosa” da BM. Paiani acha pouco provável que tais cadernos sejam abandonados de propósito ou que sejam plantados por inimigos dos sem-terra.
— Cadernos como esses fazem parte do cotidiano do MST. É assim que eles enxergam a sociedade. O uso político da morte do sem-terra é uma barbaridade, mas não me surpreende — pondera.
Investigadores mantêm em sigilo o nome de PM que atirou em sem-terra
Procurador-geral de Justiça na época em que cadernos foram encontrados na fazenda Southall, Mauro Renner se diz espantado com o teor dos manuscritos achados no Incra:
— Por outro lado, não podemos afastar a hipótese da contra-informação, para prejudicar o movimento.
O caderno mostra que o MST programou uma série de protestos pela perda do companheiro. Foram planejadas 11 manifestações em nove municípios, das quais oito teriam sido realizadas.
Após um mês, a morte do sem-terra ainda está sob investigação na BM e na Polícia Civil. A Delegacia de São Gabriel pretende concluir o inquérito esta semana. O autor dos disparos já foi identificado, mas os policiais mantêm o nome em sigilo.
O MST foi procurado por ZH para comentar o achado, mas não respondeu às tentativas.
“O assunto é o morto”
Vítima de um tiro de espingarda calibre 12 desferido por um policial militar em confronto na desocupação da Fazenda Southall, em São Gabriel, o sem-terra Elton Brum da Silva, 44 anos, é o assunto que domina a primeira parte dos registros.
Os sem-terra constatam que sofrem “grande isolamento na sociedade e na esquerda”, mas que a morte do companheiro possibilitou a reabertura de diálogo com as autoridades ao dar nova visibilidade ao movimento.
Eles ponderam que o saldo da morte é positivo para o movimento político, mas ruim para atrair novos militantes. Simpatizantes poderiam deixar de ingressar no MST por receio do risco envolvido nos confrontos.
A tática de invasão
Em pleno feriado da Independência, nova reunião do MST, preparativa para a invasão do Incra, que ocorreria no dia seguinte, e das fazendas Santa Marta e Santa Helena, um dia depois. As propriedades formam um grupo de propriedades da família Antoniazzi, em São Gabriel, que seriam desapropriadas, mas que o Incra voltou atrás.
No caso do prédio do Incra, os invasores dividiram a ação em três momentos. Primeiro ficar no pátio, depois invadir o edifício e, por fim, trancar a entrada dos funcionários.
“Demissão de Mozar”
No caderno, o MST enumera os pontos a serem reivindicados com as ações: a retomada das negociações para a desapropriação de 7 mil hectares das fazendas da família Antoniazzi, onde, segundo eles, podem ser assentadas cerca de 400 famílias. Outro ponto crucial citado nas anotações é cobrar do governo federal nova portaria para alterar os índices de produtividade para avaliação de propriedades para reforma agrária. No caso específico do Incra, o principal objetivo é desgastar e provocar a demissão do seu superintendente regional, Mozar Dietrich, contrário à criação de novos assentamentos no Rio Grande do Sul.
“Despejo: é melhor cenário”
Em um trecho, os sem-terra avaliam que “despejo: é melhor cenário” para a sair do prédio, indicando que o confronto ajudaria a dar mais visibilidade. Entretanto, outra possibilidade cogitada era se “acorrentar nas grades”, em caso de ação de execução de reintegração de posse. No caderno, a segunda alternativa está riscada à caneta, o que pode indicar que a proposta não teria sido acatada pela maioria dos líderes presentes à reunião.
Os protagonistas
Na reunião preparatória de 7 de setembro foram definidos, ainda, o número de integrantes que participariam da invasão e os responsáveis por atividades como falar com a imprensa, formação dos militantes, aulas para crianças, infraestrutura e alimentação. A relação, em que consta pelo menos 17 nomes de integrantes do MST, pode ajudar a Polícia Federal a identificar os responsáveis pela invasão, uma vez que não houve identificação durante a desocupação, ocorrida na terça-feira passada.
“Linha de imprensa”
Além de designar Sílvio dos Santos, da coordenação estadual do MST, como porta-voz da invasão ao Incra, os sem-terra enumeram os temas que não devem ser esquecidos nos contatos com jornalistas. Os temas são a necessidade de assentar 2 mil famílias acampadas pelo Estado, a retomada do processo de desapropriação das terras dos Antoniazzi e a discussão dos índices de produtividade.
ZERO HORA
Confira algumas anotações
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