REVISTA VILA NOVA
11 jan 2012, às 12:20
Postado por Taiguara Fernandes de Sousa
Por RAFAEL VITOLA BRODBECK.
A finalidade do homem é a contemplação e a posse do bem. É para isto que ele está ordenado. A ordem, portanto, no homem, é o caminhar para esse bem, contemplando-o e, enfim, o possuindo.
E para que atinja essa sublime finalidade, conta o homem, ser social que é, com a ajuda do próximo, mormente da família em que está naturalmente inserido, bem como de estruturas também naturalmente escalonadas, de modo hierárquico e orgânico: a comunidade em que se insere, sua cidade, o Estado. Reside aí também o que se chamou princípio da subsidiariedade. A sociedade em que o homem se insere está disposta para que o ajude na contemplação e na posse do bem, e tanto mais o auxiliará quanto mais próxima dele estiver, de modo que os corpos sociais intermédios, por conta disso, lhe prestarão a ajuda necessária, e, não o podendo, vindo o Estado em seu socorro.
O homem, para atingir a finalidade para a qual existe, deve continuamente fazer opções, deve eleger, com isso usando sua liberdade. A liberdade lhe é ontológica. Não se pode pensar o homem, naturalmente disposto à contemplação e à posse do bem, se lhe reconhecer que, para isso, deva trilhar caminhos que não estão dispostos de modo fatalista. Todavia, nem sempre o homem opta corretamente, nem sempre faz bom uso de sua liberdade, e isso porque se encontra em seu próprio interior uma tendência ao mal. Não é o homem absolutamente mau, como sustentava Calvino e lhe seguiram os puritanos. Sem embargo, não o é total e absolutamente bom, como na teoria de Rousseau. Não é a sociedade que lhe pressiona ao mal, sendo ele, em si e somente, bom. A sociedade não pode ser abstratamente considerada, pois é formada não por etéreos corpos voadores, e sim por pessoas concretas, as quais, se fossem total e absolutamente boas, sem nenhuma maldade ou tendência ao mal, não poderiam gerar uma sociedade, do contrário, má e influenciadora do mal no homem. Se há maldade na sociedade, como pretendia Rousseau, então é porque reside o mal ou uma tendência a ele no próprio homem, o que põe por terra a filosofia do francês.
Uma das formas dos entes sociais – família, comunidade, Estado – ajudarem o homem a atingir sua finalidade, qual seja, a contemplação e a posse do bem, é justamente lhe fornecendo instrumentos para que o descubra e o deseje. Não podem esses entes, por um lado, se substituírem uns aos outros, o maior absorvendo o menor, nem, por outro, obrigarem o homem ao bem. Se a sua finalidade só se atinge pelo uso da liberdade, o Estado, ao minar a mesma pela coerção ao bem, não atinge o resultado esperado. Poderá o homem, nessas condições, obrigado pela força social, dar uma adesão exterior ao bem, porém não de modo livre, o que, em última instância, não será a contemplação e a posse do bem.
Os corpos sociais devem fazer reinar a ordem, mas esta se coaduna com a liberdade ontológica do ser humano, a fim de que este atinja sua finalidade. A ordem sem liberdade não é verdadeira ordem, assim como a liberdade sem ordem não é legítima liberdade.
Auxiliando o homem para que alcance, com o reto uso de sua liberdade, a contemplação e a posse do bem, vigiarão o próximo, sua família, sua comunidade, o Estado, para que outro homem, no mau uso da mesma liberdade, não lhe ponha óbice. Noutros termos, a função judicial dos corpos sociais, mormente daqueles com condições de resolver as situações, o que, em muitos casos é o Estado, está em defender o homem para que este cumpra sua vocação em direção ao bem a ser contemplado e possuído, defesa essa diante de outro homem que, sem deixar de tender ao bem, elege mal, faz uso distorcido de sua liberdade e, com isso, impede ou obstrui o primeiro. A justiça, gerando a paz, e sendo esta a tranqüilidade na ordem, está em auxiliar o homem obstruído em sua vocação à contemplação e posse do bem, fazendo cessar, pela coerção moderada, a ação injusta daquele que lhe obstrui, e também em fornecer ao primeiro, pelo malefício sofrido, instrumentos compensatórios.
Quando, todavia, a obstrução de um homem sobre outro é tal que a realização de sua finalidade ontológica fica seriamente perturbada, entra em cena a justiça eminentemente penal. A essa obstrução mais gravosa corresponde o crime, o delito, a qual espera reprimenda mais dura da parte da sociedade. Não apenas uma coerção moderada ou instrumentos compensatórios para fazer cessar o óbice, e sim uma admoestação proporcional, que tire o poder, mormente de locomoção, do injusto agressor. O Estado, assim, protege o homem agredido, moral ou fisicamente, para que este cumpra com sua vocação primeva e possa continuar apto a eleições livres rumo à contemplação e posse do bem.
Mas não tira o Estado a liberdade do homem que pune? Não. A liberdade cerceada é apenas aparente. Atrás das grades ou sentenciado à morte, continua o homem punido com capacidade de fazer escolhas, boas e más, e, tendo feito mau uso da liberdade para prejudicar o próximo, sempre pode tornar a fazer um uso desta vez benéfico daquela.
Aliás, é para proteger a própria liberdade, inclusive do injusto agressor, que, por vezes, a sociedade o defende de si próprio. Não cabe, já o dissemos, ao Estado substituir-se ao indivíduo e escolher por ele, nem forçá-lo a eleições que lhe são pessoais. Se o homem faz mau uso de sua liberdade, o Estado e os corpos intermédios só teriam legitimidade de aplicar sua sanção – criminal ou não – quando essa corrupção da liberdade atingir a do próximo, i.e., quando a escolha de um indivíduo rumo à sua finalidade perturbar o caminho do próximo na realização de sua vocação.
O Estado, como dissemos na primeira linha do parágrafo acima, todavia, não se substitui ao homem quando o defende de si próprio. Em situações ordinárias, deve a sociedade defender um homem de outro. Há, porém, circunstâncias em que o homem, no mau uso de sua liberdade, deve ser protegido de si mesmo, e também aqui age o Direito.
Não em todas as situações, é forçoso dizer, mas naquelas, excepcionalíssimas, em que a corrupção da liberdade é tal que atinge sua própria noção. Ou seja, quando o mau uso da liberdade é justamente a tentativa de abdicar da mesma pelo amortecimento da sua consciência ou pela renúncia absoluta à busca pelo bem – ainda que não corresponda a idéia que tem de bem à realidade dos fatos.
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