Os bafokeng deram um nó no apartheid e ficaram conhecidos como a 'tribo dos advogados' depois de comprar terras coalhadas de platina e erguer um império capitalista no meio da África do Sul
06 de julho de 2010 | 0h 00
- O Estado de S.Paulo
Hábeis. Paul Kuger (E), ex-presidente do Transvaal, e o ex-rei Kgosi Mokgatle (sentado à direita)
Com a mesma serenidade com que se serve de uma xícara de chá com leite, à inglesa, Joseph Rapetsana, ancião da tribo Bafokeng, diz sobre o regime segregacionista que aprisionou os negros sul-africanos a uma condição de não-cidadãos por 46 anos: "O apartheid teve coisas boas. Meu povo foi obrigado a aprender africâner, o que mais tarde se tornou útil para nós. Não se negocia direito se você não fala a língua do outro lado." Negociação parece ser a palavra-chave para entender a nação Bafokeng, considerada a mais rica do continente por ser dona de 40% da platina mundial e de ativos de US$ 4 bilhões ? entre eles o Royal Bafokeng Stadium, em Phokeng, único estádio particular a receber jogos da Copa, e do Bafokeng Sports Campus, onde treinou a seleção da Inglaterra.
Ancestrais criadores de gado e agricultores, com raízes fincadas no norte da África do Sul há quase um milênio, os Bafokeng hoje somam 300 mil membros que habitam 29 aldeias na empoeirada província de North West. Eles têm as suas próprias terras: um quinhão pouco menor que a cidade de São Paulo, a 150 km de Johannesburgo, na interminável planície a caminho do resort Sun City, a Las Vegas local. E são governados por uma inquebrantável monarquia hereditária que está no seu 36º monarca: o rei Leruo Tshekedi Molotlegi, de 42 anos. Arquiteto e piloto de avião, ele ascendeu ao trono em 2000 com a proposta de usar a riqueza do subsolo da Royal Bafokeng Nation (Real Nação Bafokeng) para criar um bolsão de primeiro mundo dentro da África do Sul. O estilo é o americano de fazer as coisas: uma conjunção de ensino forte, esportes e meritocracia.
Na última quarta-feira, nada de entrevistas. "Ele é um homem de negócios, ocupado, não estará disponível hoje", explicou Martin Bekker, seu escritor particular de discursos transformado em assessor de imprensa durante a Copa. Bekker é um sul-africano loiro de olhos azuis que às vezes usa o "nós" quando se refere aos Bafokeng. Como outros funcionários da Royal Bafokeng Holdings (RBH), a firma criada em 2006 para administrar os diversificados investimentos da tribo, ele trabalha no Centro Cívico Bafokeng, um prédio de tijolinhos vermelhos erguido no alto de uma colina em Phokeng, a capital do reino. Ali, de pé diante da fileira de painéis que ilustram o planejamento do rei até 2035, ele é capaz de contar mil anos de história em apenas 7 minutos.
Diplomacia tribal. Tudo tem a ver com a posse da terra e a capacidade dos Bafokeng de usar palavras ? e não lanças ? para brigar por seus direitos, o que lhes rendeu a alcunha de "tribo de advogados". No século 19, alertado pelo líder bôer Paul Kruger sobre o risco de perder suas fazendas comunais para a marcha migratória dos colonos holandeses e ingleses, o rei Bafokeng de então, Mokgatle, entendeu que precisava adquirir os títulos da terra. Reuniu seus melhores homens e mandou que eles trabalhassem no garimpo de diamante em Kimberley, ao sul. Muitos morreram, mas os que voltaram trouxeram dinheiro para comprar algumas propriedades. A partir de 1913, com a lei que proibiu os negros de possuir terras, Mokgatle confiou o dinheiro e os títulos a missionários alemães que atuavam na região. Por causa dos mesmos missionários, boa parte dos Bafokeng são luteranos atualmente. O rei morreu 33 anos antes da descoberta que mudaria o destino de seu povo. Nos anos 20, um geólogo alemão encontrou platina nas terras Bafokeng, e agora aí estão eles, ricos como nenhuma outra comunidade nativa africana. A platina é o principal componente dos catalisadores de automóveis.
Sob o apartheid, os Bafokeng apenas recebiam royalties da venda do mineral retirado de seu subsolo. "Com o fim do regime (em 1994) pudemos ir às companhias privadas e estatais que exploravam a área e dizer: "Escuta aqui, a platina está nas nossas terras, portanto ela é nossa. Vocês não vão mais decidir quanto nós devemos ganhar. Queremos dividir os lucros"", conta o ancião Rapetsana.
Por trás do plano de desenvolvimento traçado pelo Rei Leruo Tshekedi Molotlegi está a antropóloga americana Susan Cook, executiva de pesquisa e planejamento da Real Nação Bafokeng. "Nosso plano se apoia em quatro bases, educação, esportes, saúde e infraestrutura, e vamos a todas as partes do mundo buscar exemplos de excelência em cada uma delas", diz Susan. Isso explica, por exemplo, a presença de quatro professores brasileiros ensinando futebol a crianças e jovens da tribo.
"Na Copa de 2014 teremos pelo menos dois jogadores Bafokeng entre os Bafana Bafana (a seleção sul-africana de futebol)", diz Rapetsana. Os Bafokeng são donos de um time de futebol e um de rúgbi, chamados Platinum Stars e Platinum Leopards, ambos da primeira divisão.
Mas é a educação a menina dos olhos de Molotlegi. Mais precisamente a Lebone II, escola que ele mandou construir e aparelhar com o que houvesse de melhor. Setenta por cento de suas vagas são destinadas a crianças da tribo, e o restante é disputado por moradores da região. Todos vão às aulas em impecáveis uniformes de camisa branca, gravata azul-marinho e pulôver azul-claro. Além da Lebone II, os Bafokeng assistem outras escolas públicas. Eles as constroem e as equipam, assim como fazem com hospitais, e o governo traz os funcionários e os salários. No ano passado, os três melhores alunos em matemática se beneficiavam de programas educacionais do Royal Bafokeng Institute (RBI). O objetivo não é só ajudar o seu povo. "É identificar e nutrir os jovens que serão os agentes da mudança na África do Sul", disse o rei.
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