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quinta-feira, 13 de maio de 2010

O que sobrou da religião

DIÁRIO DO COMÉRCIO




Tanto quanto o ateu, o homem religioso de hoje acredita piamente na existência de uma esfera material autônoma, regida por leis próprias que a ciência enuncia.

Olavo de Carvalho 
- 11/5/2010 - 19h46


Se há neste mundo um fato bem comprovado, é a percepção extra-sensorial durante o estado de morte clínica. Um corpo inerte, sem batimentos cardíacos ou atividade cerebral, desperta de repente e descreve, com riqueza de detalhes, o que se passava durante o seu transe, não só no quarto onde jazia, mas nos outros aposentos da casa ou do hospital.



Isso já se repetiu tantas vezes, e foi atestado por tantas autoridades científicas idôneas, que só um completo ignorante na matéria pode permanecer incrédulo. Mas mesmo alguns daqueles que reconhecem a impossibilidade de negar o fato relutam em tirar a conclusão que ele impõe necessariamente: os limites da consciência humana estendem-se para além do horizonte da atividade corporal, inclusive a do cérebro. 


A relutância em aceitar isso mostra que o “homem moderno!" – o produto da cultura que herdamos do iluminismo – se identificou com seu corpo a ponto de sentir-se amedrontado e ofendido ante a mera sugestão de que sua pessoa é algo mais. É evidente que aí não se trata só de uma convicção, de uma idéia, mas de um transe auto-hipnótico incapacitante, de um bloqueio efetivo da percepção.



Esse estado é implantado nas almas pela  pressão anônima da coletividade, que as mantém em estado de atrofia espiritual mediante a ameaça do escárnio e o temor – imaginário, mas nem por isso menos eficiente – da exclusão. Infinitamente multiplicado e potencializado pelo sistema educacional e pela a mídia, o que um dia foi mera idéia filosófica, ou pseudofilosófica, incorpora-se nas personalidades individuais como reflexo de autodefesa e, na mesma medida, restringe a autopercepção de cada qual ao mínimo necessário para o desempenho nas tarefas imediatas da vida socio-econômica.



É tudo uma profecia auto-realizável: se a evidência avassaladora da percepção extracorporal é negada, não é só porque as pessoas não acreditam nela, mas porque se tornaram incapazes de vivenciá-la de modo consciente. Vivem alienadas da sua experiência psíquica mais profunda e constante, encerradas num círculo de banalidades no qual o triunfalismo "cultural" e "científico" da mídia popular infunde uma ilusão de riqueza e variedade.



O "mundo real" no qual essas pessoas acreditam viver é o dualismo galilaico-cartesiano, já desmoralizado pela física de Einstein e Planck, mas que a mídia e o sistema escolar continuam impondo à alma das multidões como verdade definitiva: tudo o que existe nesse mundo são as "coisas físicas" e, em cima delas, o "pensamento humano", as "criações culturais". De um lado, a realidade dura da matéria regida por leis supostamente inflexíveis, nas quais se fundamenta a autoridade universal e inquestionável da "ciência"; de outro, a pasta mole e dúctil do "subjetivo", do arbitrário, onde toda opinião vale o mesmo.



Dessa esfera "subjetiva" faz parte a "religião", que é o direito de crer no que bem se entenda, com a condição de não proclamá-lo jamais verdade objetiva ou valor universal.



Essas condições, o próprio exercício da religião torna-se caricatura grotesca. Tanto quanto o ateu, o homem religioso de hoje acredita piamente na existência de uma esfera material autônoma, regida por leis próprias que a ciência enuncia, só de vez em quando rompidas pela interferência do "milagre", do "inexplicável", do "divino". Por mais que a filosofia esculhambe com o "Deus dos hiatos" (aquele que só age por entre as brechas do conhecimento científico), ele é o único que restou no altar das multidões de crentes.



Oficializada pelo establishment governamental, universitário e midiático, a rígida separação kantiana de "conhecimento" e "fé" tornou-se verdade de evangelho para a maioria das almas religiosas, embora ela seja, em si, perfeitamente herética à luz da doutrina católica, interpondo um abismo infranqueável entre dimensões cuja interpenetração, ao contrário, é a própria essência da concepção cristã do cosmos. É de novo a profecia auto-realizável em ação: à percepção mutilada do eu individual corresponde uma religião mutilada, e vice-versa. Quando digo percepção mutilada, afirmo, taxativamente, que a imagem do "eu" como algo que reside no corpo ou se identifica com ele é fantástica, ilusória, doente. Ela impõe à consciência limitações que não são naturais, muito menos necessárias. Todas as tradições espirituais do mundo, todas as disciplinas sapienciais começam pela constatação óbvia de que o eu não é o corpo, não "está" no corpo, mas de certo modo o abrange como o supra-espacial transcende e abrange o espacial. Mas uma coisa é compreender isso por pura lógica, outra  é poder constatá-lo no fato vivo da percepção extra-sensorial em casos de morte clínica.



Bastaria, a rigor, um só episódio do tipo para dar por terra com a balela de que o cérebro, isto é, o corpo, "cria" a cognição, o pensamento, a consciência. Mas os episódios são milhares, e o desinteresse dos crentes por esse tipo de fenômenos (mais estudados por ateus, adeptos da New Age e budistas do que por católicos, protestantes, ou mesmo judeus crentes) denota que a mente religiosa já se conformou com um estado de existência diminuída, em que a alma supracorporal, condição fundamental do acesso a Deus, só passará a existir no outro mundo, por alguma transmutação mágica da psique corporal, em vez de constituir já nesta vida a nossa realidade pessoal mais concreta, mais substantiva e mais verdadeira, presente e atuante nos nossos atos mais mínimos como nas nossas vivências mais elevadas e sublimes.


Durante milênios, cada ser humano, ao pronunciar a palavra "eu", referia-se de maneira imediata e automática à sua alma imortal, a única que podia orar e responder por seus próprios atos ante o altar da divindade. Dessa alma, a psique corporal era uma parte e função menor, voltada só ao meio material e social, alheia a todo senso do eterno e, a rigor, incapaz de pecado ou santidade, apenas de delitos e virtudes socialmente reconhecidos.

A partir do momento em que a psique corporal foi assumida como realidade autônoma, o indivíduo só vê a si mesmo como membro de uma espécie animal e como   "cidadão", amputado da dimensão que fundamenta o senso último de responsabilidade e cultivando, em seu  lugar ,  o mero instinto da adequação social, adornado ou não de "moral religiosa". Imaginem a diferença que isso faz, por exemplo, na compreensão da Bíblia: se você não a lê com sua alma imortal, talvez fosse melhor não lê-la de modo algum, porque a lê com a carne e não com o espírito.


Olavo de Carvalho é ensaista, jornalista e professor de Filosofia

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A teoria marxista da “ideologia de classe” não tem pé nem cabeça. Ou a ideologia do sujeito traduz necessariamente os interesses da classe a que ele pertence, ou ele está livre para tornar-se advogado de alguma outra classe. Na primeira hipótese, jamais surgiria um comunista entre os burgueses e Karl Marx jamais teria sido Karl Marx. Na segunda, não há vínculo entre a ideologia e a condição social do indivíduo e não há portanto ideologia de classe: há apenas a ideologia pessoal que cada um atribui à classe com que simpatiza, construindo depois, por mera inversão dessa fantasia, a suposta ideologia da classe adversária. Uma teoria que pode ser demolida em sete linhas não vale cinco, mas com base nela já se matou tanta gente, já se destruiu tanto patrimônio da humanidade e sobretudo já se gastou tanto dinheiro em subsídios universitários, que é preciso continuar a fingir que se acredita nela, para não admitir o vexame. Olavo de Carvalho, íntegra aqui.
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A perversão da retórica, que falseia a lógica e os fatos para vencer o adversário em luta desleal, denomina-se erística. Se a retórica apenas simplifica e embeleza os argumentos para torná-los atraentes, a erística vai além: embeleza com falsos atrativos a falta de argumentos.
‎"O que me leva ao conservadorismo é a pesquisa e a investigação da realidade. Como eu não gosto de futebol, não gosto de pagode, não gosto de axé music, não gosto de carnaval, não fumo maconha e considero o PT ilegal, posso dizer que não me considero brasileiro - ao contrário da maioria desses estúpidos que conheço, que afirma ter orgulho disso". (José Octavio Dettmann)
" Platão já observava que a degradação moral da sociedade não chega ao seu ponto mais abjeto quando as virtudes desapareceram do cenário público, mas quando a própria capacidade de concebê-las se extinguiu nas almas da geração mais nova. " Citação de Olavo de Carvalho em "Virtudes nacionais".