Tanto quanto o ateu, o homem religioso de hoje acredita piamente na existência de uma esfera material autônoma, regida por leis próprias que a ciência enuncia.
Olavo de Carvalho - 11/5/2010 - 19h46
Se há neste mundo um fato bem comprovado, é a percepção extra-sensorial durante o estado de morte clínica. Um corpo inerte, sem batimentos cardíacos ou atividade cerebral, desperta de repente e descreve, com riqueza de detalhes, o que se passava durante o seu transe, não só no quarto onde jazia, mas nos outros aposentos da casa ou do hospital.
Isso já se repetiu tantas vezes, e foi atestado por tantas autoridades científicas idôneas, que só um completo ignorante na matéria pode permanecer incrédulo. Mas mesmo alguns daqueles que reconhecem a impossibilidade de negar o fato relutam em tirar a conclusão que ele impõe necessariamente: os limites da consciência humana estendem-se para além do horizonte da atividade corporal, inclusive a do cérebro.
A relutância em aceitar isso mostra que o “homem moderno!" – o produto da cultura que herdamos do iluminismo – se identificou com seu corpo a ponto de sentir-se amedrontado e ofendido ante a mera sugestão de que sua pessoa é algo mais. É evidente que aí não se trata só de uma convicção, de uma idéia, mas de um transe auto-hipnótico incapacitante, de um bloqueio efetivo da percepção.
Esse estado é implantado nas almas pela pressão anônima da coletividade, que as mantém em estado de atrofia espiritual mediante a ameaça do escárnio e o temor – imaginário, mas nem por isso menos eficiente – da exclusão. Infinitamente multiplicado e potencializado pelo sistema educacional e pela a mídia, o que um dia foi mera idéia filosófica, ou pseudofilosófica, incorpora-se nas personalidades individuais como reflexo de autodefesa e, na mesma medida, restringe a autopercepção de cada qual ao mínimo necessário para o desempenho nas tarefas imediatas da vida socio-econômica.
É tudo uma profecia auto-realizável: se a evidência avassaladora da percepção extracorporal é negada, não é só porque as pessoas não acreditam nela, mas porque se tornaram incapazes de vivenciá-la de modo consciente. Vivem alienadas da sua experiência psíquica mais profunda e constante, encerradas num círculo de banalidades no qual o triunfalismo "cultural" e "científico" da mídia popular infunde uma ilusão de riqueza e variedade.
O "mundo real" no qual essas pessoas acreditam viver é o dualismo galilaico-cartesiano, já desmoralizado pela física de Einstein e Planck, mas que a mídia e o sistema escolar continuam impondo à alma das multidões como verdade definitiva: tudo o que existe nesse mundo são as "coisas físicas" e, em cima delas, o "pensamento humano", as "criações culturais". De um lado, a realidade dura da matéria regida por leis supostamente inflexíveis, nas quais se fundamenta a autoridade universal e inquestionável da "ciência"; de outro, a pasta mole e dúctil do "subjetivo", do arbitrário, onde toda opinião vale o mesmo.
Dessa esfera "subjetiva" faz parte a "religião", que é o direito de crer no que bem se entenda, com a condição de não proclamá-lo jamais verdade objetiva ou valor universal.
Essas condições, o próprio exercício da religião torna-se caricatura grotesca. Tanto quanto o ateu, o homem religioso de hoje acredita piamente na existência de uma esfera material autônoma, regida por leis próprias que a ciência enuncia, só de vez em quando rompidas pela interferência do "milagre", do "inexplicável", do "divino". Por mais que a filosofia esculhambe com o "Deus dos hiatos" (aquele que só age por entre as brechas do conhecimento científico), ele é o único que restou no altar das multidões de crentes.
Oficializada pelo establishment governamental, universitário e midiático, a rígida separação kantiana de "conhecimento" e "fé" tornou-se verdade de evangelho para a maioria das almas religiosas, embora ela seja, em si, perfeitamente herética à luz da doutrina católica, interpondo um abismo infranqueável entre dimensões cuja interpenetração, ao contrário, é a própria essência da concepção cristã do cosmos. É de novo a profecia auto-realizável em ação: à percepção mutilada do eu individual corresponde uma religião mutilada, e vice-versa. Quando digo percepção mutilada, afirmo, taxativamente, que a imagem do "eu" como algo que reside no corpo ou se identifica com ele é fantástica, ilusória, doente. Ela impõe à consciência limitações que não são naturais, muito menos necessárias. Todas as tradições espirituais do mundo, todas as disciplinas sapienciais começam pela constatação óbvia de que o eu não é o corpo, não "está" no corpo, mas de certo modo o abrange como o supra-espacial transcende e abrange o espacial. Mas uma coisa é compreender isso por pura lógica, outra é poder constatá-lo no fato vivo da percepção extra-sensorial em casos de morte clínica.
Bastaria, a rigor, um só episódio do tipo para dar por terra com a balela de que o cérebro, isto é, o corpo, "cria" a cognição, o pensamento, a consciência. Mas os episódios são milhares, e o desinteresse dos crentes por esse tipo de fenômenos (mais estudados por ateus, adeptos da New Age e budistas do que por católicos, protestantes, ou mesmo judeus crentes) denota que a mente religiosa já se conformou com um estado de existência diminuída, em que a alma supracorporal, condição fundamental do acesso a Deus, só passará a existir no outro mundo, por alguma transmutação mágica da psique corporal, em vez de constituir já nesta vida a nossa realidade pessoal mais concreta, mais substantiva e mais verdadeira, presente e atuante nos nossos atos mais mínimos como nas nossas vivências mais elevadas e sublimes.
Durante milênios, cada ser humano, ao pronunciar a palavra "eu", referia-se de maneira imediata e automática à sua alma imortal, a única que podia orar e responder por seus próprios atos ante o altar da divindade. Dessa alma, a psique corporal era uma parte e função menor, voltada só ao meio material e social, alheia a todo senso do eterno e, a rigor, incapaz de pecado ou santidade, apenas de delitos e virtudes socialmente reconhecidos.
A partir do momento em que a psique corporal foi assumida como realidade autônoma, o indivíduo só vê a si mesmo como membro de uma espécie animal e como "cidadão", amputado da dimensão que fundamenta o senso último de responsabilidade e cultivando, em seu lugar , o mero instinto da adequação social, adornado ou não de "moral religiosa". Imaginem a diferença que isso faz, por exemplo, na compreensão da Bíblia: se você não a lê com sua alma imortal, talvez fosse melhor não lê-la de modo algum, porque a lê com a carne e não com o espírito.
Olavo de Carvalho é ensaista, jornalista e professor de Filosofia
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