01 de fevereiro de 2011 | 0h 00
Luiza Nagib Eluf - O Estado de S.Paulo
Há uma cidade no México onde a polícia acabou. Segundo notícias veiculadas pelo jornal The New York Times, todos os membros da corporação pediram demissão do cargo por não terem condições de enfrentar os traficantes locais com um mínimo de segurança e apoio governamental. A cidade chama-se Guadalupe, tinha 9 mil moradores, mas 4 mil já fugiram de lá. Há ruas e bairros abandonados, é quase um lugar fantasma. A última delegada de polícia que aceitou assumir o cargo foi nomeada pelo prefeito, seu tio, em outubro de 2010. Pouco depois do Natal do mesmo ano, a moça, de 28 anos, foi sequestrada de casa por um grupo de homens armados e nunca mais foi vista. O prefeito, ingenuamente, nomeara sua sobrinha na esperança de aplacar a fúria do tráfico com o semblante inocente de uma mulher tão jovem. Evidentemente, a providência não funcionou. Traficante não se comove, não perdoa, não tem pena de ninguém e raramente muda de "profissão". Assim, a moça provavelmente morreu e a cidade continua destroçada.
Depois que o tráfico toma conta de um local, não sobra nada. Aqui, no Brasil, tivemos a experiência da transformação nas favelas do Rio de Janeiro depois que, finalmente, os governos federal e estadual resolveram tomar providências efetivas para desmantelar o tráfico de drogas e seu poder destruidor. O Exército entrou para valer em território dominado pelo crime, juntamente com a polícia, e controlou a situação. É claro que o governo, quando tem vontade política, faz o que precisa ser feito. Tirando os eventuais abusos de autoridade que sempre nos envergonham, ocorreu um processo de libertação da população favelada no Rio.
Por outro lado, recente posição do titular da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) provocou reação contrária do governo federal e gerou uma crise que terminou com a exoneração do secretário do cargo. Ele propôs que se fizesse uma alteração legal para que "pequenos traficantes" pudessem ser beneficiados com as chamadas penas alternativas. Nos termos da Lei n.º 11.343/2006, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), os condenados por tráfico de drogas devem cumprir a pena privativa de liberdade, vedada a substituição da prisão por restrição de direitos, ou seja, prestação de serviços à comunidade, proibição de frequentar determinados lugares ou pagamento de pena pecuniária (artigo 33, § 4.º). No entanto, certas correntes doutrinárias liberalizantes trabalham no sentido de esvaziar penitenciárias propondo penas alternativas até para traficantes de drogas, argumentando que seriam beneficiados apenas os pequenos traficantes.
O que são pequenos traficantes? Será que eles existem?
Na prática, são considerados criminosos que merecem pena menor aqueles flagrados pela polícia na posse de pouca quantidade de droga, que pretendem ceder, gratuitamente ou não, a consumo de terceiros. A lei prevê diminuição de pena para o agente que seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades delituosas nem integre organização criminosa. Esse seria o traficante, digamos, menos pior. No entanto, o fato de alguém ser surpreendido portando pouca quantidade de substância entorpecente não significa que essa pessoa tenha papel secundário na hierarquia do crime. Tampouco é uma garantia de que o sujeito não possua mais drogas armazenadas em outro local, ignorado pela polícia. Por fim, todo traficante, pequeno, médio ou grande, é uma peça importante na engrenagem do crime organizado. Em resumo, traficante é traficante. Deve padecer dos rigores da lei, sem alívio algum, quanto mais ficar em liberdade após condenado, cumprindo pena alternativa, quem sabe prestando serviços em escolas, instituições de caridade ou hospitais... Mais uma vez, muito bem andou a nossa presidente, Dilma Rousseff, ao reprovar a iniciativa de beneficiar traficantes. Não podemos trilhar o caminho da tolerância em relação a delito tão avassalador. Não é preciso lembrar o drama das famílias com parentes engolidos pelas drogas, nem as várias cracolândias que se espalham pelas cidades, em geral abastecidas por pequenos traficantes, sem que o poder público ofereça sequer um estabelecimento gratuito especializado na recuperação de dependentes químicos.
Por fim, é conveniente mencionar o movimento pela legalização da maconha. Há pessoas de grande respeitabilidade abraçando essa causa e é importante que a discussão se instale, mas não acredito que a providência proposta venha a melhorar alguma coisa. A Cannabis sativa L é substância que causa dependência física ou psíquica, consequentemente, é perniciosa. A descriminação só iria incentivar o uso e não acabaria com o tráfico. Seria difícil organizar e controlar a venda lícita da maconha, mas, de qualquer forma, na hipótese remota de a liberação da droga ser aprovada no Congresso Nacional e posteriormente sancionada pela Presidência da República, os consumidores teriam de respeitar uma cota limitada de aquisição. E, além desse limite, haveria tráfico. Para piorar, todos os usuários do mundo fariam turismo no Brasil a fim de usufruir uma liberdade inexistente na maioria esmagadora dos países. Na Holanda, essa experiência não parece ter trazido vantagens. Assim, o melhor caminho ainda é investir em prevenção, seja de drogas ilícitas, seja de álcool ou de tabaco.
Com o tráfico de drogas não se brinca. Como aconteceu na cidade mexicana de Guadalupe, esse comércio espúrio já acabou com as polícias em várias localidades brasileiras, só que não literalmente, mas de outra forma: corrompendo suas estruturas. E pode acabar com governos, instituições, valores morais, dignidade e a vida.
PROCURADORA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE SP, FOI SECRETÁRIA NACIONAL DOS DIREITOS DA CIDADANIA NO GOVERNO FHC E SUBPREFEITA DA LAPA, EM SÃO PAULO. É AUTORA, ENTRE OUTROS LIVROS, DE "A PAIXÃO NO BANCO DOS RÉUS" E "MATAR OU MORRER - O CASO EUCLIDES DA CUNHA"
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