fevereiro 1, 2011
Autor: João Antonio Wiegerinck
As reportagens sobre as calamidades trazidas pelas chuvas torrenciais provocam variados sentimentos, tais como indignação, raiva, tristeza e até um pouco de dó e pena, ainda que sem o caráter prepotente e paternalista dos comunas ultrapassados. É um dó e uma pena dirigidos à situação, e não à pessoa.
Dentre as diversas imagens, saltam aos olhos as vias asfaltadas que ainda circundam os morros, sejam as que foram levadas pelas enxurradas ou aquelas que se mantêm aos pedaços. O asfalto chegou até ali e por ali continua. Ou seja, um número considerável de famílias foi assentado naquela região.
São indivíduos conhecidos das autoridades. Por certo, são eleitores. Muitos receberam tijolos e material de construção para eleger os políticos locais. A partir do ponto em que existe um logradouro, existe um bem imóvel e um endereço para se cobrar IPTU e outros tributos. Percebe-se que o Estado assenta contribuintes, não famílias. O pensamento do Estado é algo como “contribuinte é um dado matemático arrecadatório. Família é sempre prejuízo.”
A diferença entre pessoa e cidadão no Direito se estabelece a partir do exercício da cidadania, ou seja, da condição de eleger. No exercício de poder estatal, o que se leva em conta é a capacidade contributiva do indivíduo, eterno devedor dos cofres públicos sem fundo ou transparência.
A imprensa mostrou que a cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul, é sujeita a pancadas de chuva e tempestades quase o ano inteiro. Lá, não se tem notícia de calamidades similares. Assim como a Região Serrana do Rio, ela vive do turismo voltado ao clima montanhês. A diferença? Maturidade social. Maturidade social significa um entendimento eficaz entre eleitores e eleitos. Pode não ser em todos os pontos, mas, minimamente, nos aspectos considerados fundamentais para que aquela comunidade continue a existir dentro de padrões básicos de dignidade.
Uma vez que os representantes conservem suas origens nas localidades ou na região estadual na qual angariam seus votos, é de se entender que compreendam melhor os anseios e necessidades do eleitorado, defendendo os interesses daqueles que os elegeram e angariando novos votos por merecimento. Quando um candidato procura votos em região na qual não é conhecido, demonstra suspeição e falta de conexão com seus eleitores, tal como Collor e Sarney.
Em termos de maturidade social, é possível afirmar, resumidamente, que os pensamentos se encontram quando o candidato pergunta a si mesmo: “O que é preciso realizar para que a comunidade prospere?”, ao mesmo tempo em que o cidadão se pergunta “qual candidato entende melhor e tem conhecimento para realizar o que é preciso para a comunidade?”
Parece primário? Não é. Tanto não é que são raríssimos os exemplos das ocorrências positivas como no caso de Gramado.
O desencontro em que se vive nas esferas do poder leva ao panorama vislumbrado. O povo finge obedecer às leis e o Estado finge que fiscaliza o cumprir das normas. O que poderia ser chamado de jeitinho brasileiro é uma total falta de jeito. Os que não querem ser cobrados de nada e os que não querem ter trabalho.
E, como o papel do cientista é propor e questionar, em meio à relação desencontrada e descontinuada entre indivíduo e Estado, ainda existem os que se aproveitam da desgraça alheia para saquear, com requintes de crueldade e completo desprezo pela condição humana na vigência do desespero.
Mas qual é o motivo de tanta indignação se, em verdade, no decorrer das últimas décadas é assim que a população é tratada por seus representantes? Não é da falsa seca nordestina que vivem os oligarcas coronéis? Não é do abandono da Região Norte e sua biopirataria, prostituição infantil, que se nutrem os pistoleiros eleitos?
As chuvas torrenciais trazem de forma fluída o que já se conhece faz tempo por aqui: enchentes de hipocrisia e saques repetidos à boa-fé do cidadão. Se nada mudar, será o Brasil uma nação de afogados e despidos.
Fonte: jornal “O Globo”, 31/01/2011
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