REINALDO AZEVEDO
06/03/2012 às 19:06
Eu não vou desistir, por maior que seja a gritaria à minha volta, de tratar as coisas segundo o que elas são. Sim, posso, e o faço, emitir opiniões a respeito. Podem gostar delas ou não. Mas jamais me desgrudo dos fatos. Essa é uma razão, dentre muitas outras, por que não sou o outro lado do JEG (Jornalismo da Esgotosfera Governista). Eles mandam os fatos às favas. Estão cumprindo uma tarefa.
Vocês já leram, por acaso, a íntegra da lei que criou a Comissão Nacional da Verdade? Quando quiserem, o texto está aqui. Vocês verão por que é importante fazê-lo caso queiram formar um juízo conseqüente da realidade e identificar quem são as pessoas que hoje, de fato, investem em crise institucional.
Não se esqueçam. Uma das causas da atual crise que já alcança centenas de militares da reserva são declarações feitas pela ministra Maria do Rosário (Direitos Humanos), segundo quem a Comissão da Verdade poderia resultar em processos criminais. Os clubes militares emitiram uma nota de protesto; Dilma Rousseff e Celso Amorim os pressionaram a retirar o texto, o que gerou o abaixo-assinado. Sigamos.
Há quatro dias, no jornal O Globo, era possível ler o seguinte (prestem muita atenção!):
O secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, que também é presidente da Comissão de Anistia, considera que a Comissão da Verdade terá, como primeira missão, justamente a localização de desaparecidos e a identificação dos responsáveis. Depois, vai investigar as demais violações, como mortes e torturas. Numa outra etapa, vai identificar as estruturas da repressão, a cadeia de comando e a colaboração do setor privado com a ditadura.
“Não cabe investigar as ações da resistência. Estavam no direito legítimo de lutar contra a ordem ilegítima e a opressão. A Comissão da Verdade serve para investigar os crimes de Estado. Aqueles cometidos pelo ente que deveria proteger os cidadãos e não persegui-los”, disse Abrão.
Voltei
Errado! Não é o que está no texto que cria a Comissão da Verdade, e este é o problema das pessoas que estão lidando com esse assunto: aprovar uma coisa e tentar fazer outra. À diferença do que faz certo jornalismo, não escondo documentos; mostro-os. O que diz a lei?
“Art. 1o É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.”
Muito bem! Ao remeter para o Artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a lei estabelece que serão investigados casos de 1946 a 1988. Abrão deixa claro que isso é conversa mole. A comissão vai mesmo é se interessar pelo aconteceu a partir de 1964. Vejamos mais.
No Inciso III do Artigo 3º, consta um dos objetivos da comissão, a saber:
“III - identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos mencionadas no caput do art. 1o e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade;”
Atenção! A versão de que os crimes cometidos pela esquerda não podem ser investigados é mentirosa! A íntegra da lei está disponível. Não está no texto. Poderiam e deveriam ser investigadas as transgressões aos direitos humanos cometidas nos “diversos aparelhos estatais e na sociedade“. Mas isso também será ignorado.
Notem como Paulo Abrão não precisa nem mesmo de uma comissão para decretar uma verdade falsa como nota de R$ 13!
“Não cabe investigar as ações da resistência. Estavam no direito legítimo de lutar contra a ordem ilegítima e a opressão. A Comissão da Verdade serve para investigar os crimes de Estado. Aqueles cometidos pelo ente que deveria proteger os cidadãos e não persegui-los”.
Há aí mentiras várias e de várias naturezas. A lei, como visto, não limita a apuração aos crimes do estado. As ações terroristas que mataram quase 120 pessoas não eram “meras ações de resistência” nem objetivavam apenas “combater a ordem ilegítima”. Ora, com que isenção se vai estabelecer a “verdade” se o próprio texto da lei é distorcido com uma mentira escandalosa?
Volto à matéria do Globo. Lá também se lê:
Sobre as declarações do general Luiz Eduardo Rocha Paiva, de que deveriam ser julgados supostos crimes cometidos pela esquerda - onde cita a presidente Dilma - Gilney Viana afirmou que o objetivo da Comissão da Verdade não é esse:
“A comissão terá a finalidade de apurar os crimes cometidos pelos agentes do Estado. Os outros (dos grupos de esquerda) já foram apurados, objetos de inquérito e de processos judiciais. As pessoas cumpriram pena.”
Gilney é coordenador-geral do Projeto Direito à Memória e à Verdade da Secretaria de Direitos Humanos. Rocha Paiva, como sabem, fez tais declarações numa entrevista concedida à jornalista Miriam Leitão, excelente e isenta quando trata de economia.
Só para esclarecer: “julgado” não será ninguém, de lado nenhum. O general defendeu que os casos envolvendo a esquerda também fossem apurados. Não! Não é verdade que todas as pessoas envolvidas com os atos terroristas foram punidas. De todo modo, essa é uma falsa questão, que trai uma intenção: LEVAR AO BANCO DOS RÉUS as “pessoas do lado de lá”, e não apenas restabelecer “a verdade”.
Lei da Anistia
Então vejam:
1- Não é verdade que a lei que criou a Comissão da Verdade limite a apuração aos crimes cometidos a partir de 1964, mas assim será feito - contra o texto;
2- não é verdade que a lei que criou a Comissão da Verdade limite a apuração a crimes cometidos pelo estado, mas assim será feito - contra o texto;
3- não é verdade que a lei que criou a Comissão da Verdade abra brechas para a responsabilização criminal de quem quer que seja, mas é esse o espírito da coisa - contra o texto.
Sobre esse terceiro item, está lá na lei:
“Art. 6o Observadas as disposições da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, a Comissão Nacional da Verdade poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos, especialmente com o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia, criada pela Lei no 10.559, de 13 de novembro de 2002, e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, criada pela Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995.”
A Lei nº 6.683 é justamente a Lei da Anistia, cuja plena validade foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal.
Concluindo
Eu e muita gente lutamos contra a ditadura para viver num estado democrático e de direito. Os delírios totalitários todos foram derrotados pela democracia. Autoridades do estado, como Maria do Rosário, Paulo Abrão e Gilney Viana não têm o direito, em nome de suas escolhas ideológicas, passadas ou presentes, de aplicar a lei conforme lhes der na telha.
A atual crise com os militares da reserva, à diferença do que quer certo jornalismo engajado, não reproduz um confronto entre representantes das trevas e amantes da democracia, mas entre pessoas que estão pedindo o respeito às leis aprovadas e aqueles que reivindicam o direito, porque se consideram ideologicamente mais puros, de fraudá-las.
Na entrevista que Miriam Leitão fez com o general Paiva, esses aspectos não ficaram claros. A seqüência do diálogo acabou empurrando o militar para a defesa de 1964, ficando reservado a Miriam o papel de defensora da democracia — um embate que qualquer um ganha com facilidade —, como se fosse esse o confronto de hoje. Não é! Trata-se de saber se a Lei da Anistia e a lei que criou a Comissão da Verdade serão ou não respeitadas.
Eu, de maneira inequívoca, defendo que sejam. Não acho que 200 milhões de brasileiros devam pagar o preço de delírios autoritários de extremistas, pouco importa a sua cor.
Por Reinaldo Azevedo
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