Novo referendo para decidir sobre desarmamento seria uma forma de brincar com a sociedade brasileira, que, ao contrário do que parecem pensar José Sarney, o PT e a TV Globo, não precisa de tutela porque é suficientemente madura
José Sarney com quatro militares (veja a “felicidade” de suas mãos): o passado do ex-presidente da República e presidente do Senado sempre retorna — como farsa, a sua, e tragédia, a dos outros
Jornalismo só é independente quando quer. O problema é que raramente quer. Por isso, em alguns países, os jornais assumem publicamente candidaturas e mostram-se fortemente posicionados em relação a alguns temas (guerras, por exemplo, que avaliam como “justas” ou “injustas”), com a ressalva de que se trata de uma adesão no plano da opinião, não das reportagens, como se fosse possível dissociar, inteiramente, as duas coisas. Ora, quem mais influencia as reportagens são aqueles que dirigem jornais e revistas. Quase sempre as reportagens, a matéria-prima de qualquer jornal, são pautadas a partir da opinião dos proprietários e de seus funcionários mais graduados, os editores. Não é a reportagem que determina a opinião de um veículo de comunicação. Jornalistas que refletem sinceramente sobre seu ofício possivelmente admitem que objetividade e imparcialidade 100% são quimeras, mas também devem saber que, quando escrevem artigos e reportagens, retratando a sociedade em que vivem, dão sua cota de responsabilidade. Não são vítimas, portanto, de um “sistema fechado” e “cruel”. São corresponsáveis por aquilo que produzem e reproduzem.
Na semana passada, Eduardo Grillo e outros jornalistas entrevistaram a competente atriz Rosamaria Murtinho com a elegância e a frivolidade típicas do Globo News. Há um clima de assepsia (todos parecem ter acabado de sair do banho, deixando na banheira as ideias), de bom-mocismo, de politicamente correto no jornalismo global, notadamente no circuito fechado. Eduardo Grillo e seus colegas mostravam-se animados, até animadíssimos, com as informações de que a visita da presidente Dilma Rousseff à China foi um sucesso diplomático e comercial. Mulher de posições fortes, Rosamaria decidiu não comungar o coro dos contentes e ressalvou que a China usa “trabalho escravo”. Lá, como não querem saber comunistas, petistas e jornalistas “globais”, os salários e as escalas de trabalho são aviltantes. Greves? Nem pensar. O grevista vai para a cadeia e, depois, não consegue mais emprego. Legislação trabalhista? Nem pensar.
Não é à toa que grupos empresariais, do Japão, dos Estados Unidos e até do Brasil, decidiram instalar algumas de suas fábricas no território chinês. A mão-de-obra é baratíssima e o governo não permite que o operário crie “problemas”. Pois os jornalistas, que em geral adoram denúncias, não se interessaram pela “interpretação” da atriz e ignoraram, agora sem nenhuma elegância, o que, de modo pertinente, dizia. Os jornalistas do maior grupo de comunicação do país aderiram à diplomacia do governo Dilma. Os diplomatas do Itamaraty, adeptos da realpolitik, orientaram a presidente a não falar de direitos humanos. Para não prejudicar os negócios com os vorazes chineses. O Brasil, afinal, quer o trem-bala, e com dinheiro chinês, não importa como a China organiza e reproduz seu capital — lembrando os velhos tempos da Revolução Industrial na Inglaterra. Uma geração de chineses será destroçada para permitir que a China recupere o tempo perdido — Mao Tsé-tung e aliados isolaram e retardaram o desenvolvimento do país em algumas décadas — e se torne, em poucos anos, uma nação industrial e financeiramente competitiva. Já se tornou, aliás. É um engano pensar que se faz crescimento vertiginoso, sobretudo no momento da chamada acumulação primitiva de capitais, sem sacrificar vidas humanas.
É óbvio que o governo da China quer incorporar o maior número de chineses ao mercado consumidor interno, mas, como o poder de consumo dos chineses ainda é baixo (e, no momento da acumulação primitiva, não há como elevá-lo rapidamente sem sacrificar a margem de lucro almejada; salários baixos, em alguns nichos, fazem parte desta acumulação primitiva), o país precisa conquistar mercados com uma classe média consumidora mais estruturada — daí o ataque direto a mercados como o brasileiro (que tem consumidores consolidados e, ao mesmo tempo, matérias-primas essenciais, como soja e ferro) e ao americano (este exige, porém, produtos de melhor qualidade, mas os chineses entenderam à perfeição que o mercado americano é extremamente diversificado, pois conta com um país tipicamente de terceiro mundo dentro de um país de primeiro mundo. Desculpe-nos, leitor, pela terminologia retrô).
Voltemos, porém, ao tema do jornalismo, antes de discutir a questão do desarmamento. Num de seus mais poderosos dramas históricos, “Henrique VIII” (Editora Nova Aguilar, tradução algo preciosista de Oscar Mendes, página 692), Shakespeare reproduz um diálogo entre o cardeal Wolsey, um conspirador, e o rei Henrique VIII, mais conhecido, hoje, por ter se casado com Ana Bolena (uma mistura azeitada de Marta Suplicy com Zélia Cardoso de Mello). Wolsey tenta se proteger, alegando que foi “atacado e injuriado” pelos inimigos. Inspirado, o rei replica: “Não é necessário que sejais avisado de que possuís muitos inimigos, os quais não sabem o motivo pelo qual o são, mas que, semelhantes aos cães de uma aldeia, ladram quando ouvem seus companheiros fazer o mesmo”. Longe de nós chamar jornalistas de “cães”, porque seria uma ofensa grave, mas é possível dizer que, em alguns temas, comportam-se como cães de aldeia — reproduzindo exatamente aquilo que os outros dizem como se fosse a “verdade suprema”, sem qualquer reflexão crítica e o mínimo de autonomia mental que se deve exigir de quem ao menos sentou-se durante quatro anos numa cadeira de universidade (o problema da universidade é que, no lugar de arejar as cabeças para a sociedade aberta, da qual fala Karl Popper, às vezes contribui para dogmatizar a mente dos jovens. Eles saem de lá como robôs ideológicos, frequentemente esquerdistas). É o caso da polêmica estéril, em grande medida, sobre o desarmamento. O diálogo é de surdos, sobretudo da parte dos jornais e do governo lulo-dilmista.
Na ditadura, quando planejavam segurar a oposição e o avanço da sociedade, os governantes militares criavam leis, em geral passando por cima do Legislativo e do Judiciário. Para endurecer o regime, e supostamente combater “terroristas”, o governo editou o Ato Institucional nº 5, criando uma ditadura dentro da ditadura (o sistema gerou pequenos golpes por intermédio de atos institucionais, para fortalecer o mando militar), com o objetivo de fossilizar a sociedade civil e a sociedade política, e conter ou retardar mudanças. Ao perceber que a sociedade estava se movimentando e ouvindo o discurso da oposição emedebista com mais interesse, os ideólogos militares ficaram preocupados, porque avaliavam que o país ainda “não” estava preparado para a Abertura. Num certo momento, para impedir que a oposição dominasse o Senado e, assim, empurrasse o país para a democracia, a ditadura criou a figura do senador biônico. Dos três senadores dos Estados um seria biônico, ou seja, não seria eleito pelo voto popular, e sim indicado pela estrutura do governo. Assim, o governo militar manteve a maioria no Senado, impedindo a expansão legal da oposição e prorrogando a ditadura. Entretanto, o país vivia sob ditadura e, sob regimes de exceção, os gestores cometem toda sorte de desatinos institucionais. As regras são feitas para serem quebradas por seus criadores. Mas na democracia, não nos seus simulacros, as coisas não funcionam ou não devem funcionar assim. A sociedade, na democracia, não pode ficar à mercê dos governantes e líderes políticos como José Sarney.
O filósofo do humor Millôr Fernandes diz que, quando José Sir Ney (é assim que nomina o canastrão literário) escreve, a língua portuguesa grita... de dor. O problema é que a graça às vezes não nos deixa perceber a essência do percurso que Sarney está traçando. Aos 81 anos, o ex-presidente está pavimentando uma operação para, sutilmente, ficar com uma imagem positiva na história. Primeiro, ganhou do amigo Octavio Frias Oliveira, já falecido, uma coluna na “Folha de S. Paulo”, na página 2, tida como “nobre”, para posar de homem culto, da velha República das Letras, que raramente deixa de citar pensadores de primeira e até de segunda categoria. A “moralidade” de Rui Barbosa, aquele que queimou os arquivos da escravidão, está sempre na primeira fila. Segundo, aproximou-se da esquerda — ele que sempre disse, na ditadura, que não podia ser marxista por conta de ser muito religioso — e se tornou conselheiro do ex-presidente Lula e, agora, da presidente Dilma Rousseff. (Para entender tal percurso, a recomendação é a leitura do esplêndido “Os Donos do Poder”, do sociólogo e jurista Raymundo Faoro. É a verdadeira “biografia” de Sarney — sem tirar nem pôr. A conciliação pelo alto das elites é o retrato da jogada do movimento sarnaico-petista.) Terceiro, encomendou uma biografia à jornalista Regina Echeverria, da qual se sai, depois de uma longa travessia pelo deserto das ideias, com a impressão de que o papa Bento XVI tem a obrigação de canonizar Sarney. O “duce” do Maranhão, “rei” do Amapá e “capo” da sesmaria chamada Brasil — teme-se que, no futuro, o PT proponha mudar o nome para Sarneysil — merece o título de “santo”, ou, exagerando, até de bendito o fruto entre os petistas.
Para reforçar a biografia, que não alcançou os objetivos esperados, o senador vai publicar, no fim do ano, suas memórias — uma espécie de prolongamento do livro da hagiógrafa Echeverria. Quarto, atendendo aos aliados da presidente Dilma, como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo — de quem a imprensa “compra” e “vende” a imagem de democrata persistente —, o presidente do Senado propõe novo referendo para discutir o desarmamento da população civil. A medida é vista, pelo marketing de Sarney, como politicamente correta, especialmente depois que Wellington de Oliveira matou 12 estudantes numa escola do Realengo, no Rio de Janeiro.
Por ter construído seu poder, e sua fortuna, durante a ditadura, a qual traiu em 1985, passando para o lado de Tancredo Neves, Sarney está acostumado a golpes e golpinhos. Em 2005, convocada, a população brasileira compareceu em massa e votou contra a proposta patrocinada pelo governo Lula, TV Globo e Ongs. As urnas revelaram o Brasil real, aquele que não aparecia na Globo: 59,1 milhões de eleitores (63,94%) votaram contra o desarmamento da população. Apenas 33,3 milhões (36,06%) ficaram com o governo. Detalhe: se não fosse a pressão do governo, a divulgação maciça da Globo — que praticamente obrigou alguns de seus principais atores a aderirem à campanha pró-desarmamento —, a votação pelo “não” poderia ter sido muito maior. Chegaram a manipular pesquisas. O Serpes e “O Popular” publicaram dados falsos. Pois agora, seis anos depois, como se a população não tivesse tomado uma decisão, a ser acatada pelos políticos e pela sociedade, José Sarney, amparado em pedido do governo Dilma, volta a sugerir outro referendo para discutir o desarmamento. Ora, apenas meia década depois, um novo referendo é um golpe contra a decisão popular, contra a sociedade. É como se, por conta de um acontecimento grave, mas acidental, o governo dissesse aos brasileiros, tratados como bebês sem vontade própria, que as leis do país não têm valor algum.
De um veterano oportunista, como Sarney, não se esperava outra coisa. Entretanto, o PT, desde seu nascimento em 1980, e embora tenha ranços autoritários — resultantes de suas origens esquerdistas —, se pretende um partido democrático, avesso a golpes. Porém, como Sarney é camaleão, sempre aderindo às circunstâncias, mimetizando as cabeças coroadas do País e adaptando-se à perfeição ao novo ambiente, é possível que a ideia do novo referendo não tenha saído inteiramente de sua cabeça de alpinista político-social, e sim do PT e do batalhão de Ongs que, direta ou indiretamente, controla. O PT parece duvidar da democracia que, sólida, deu-lhe três mandatos presidenciais consecutivos e quer tratar os brasileiros como tutelados.
Se Sarney cita Rui Barbosa, numa volta ao passado bacharelesco, com frases de efeito que são panaceias, mencionemos um professor e advogado menos conhecido — Benedito Barbosa. O paulista Bené, como é mais conhecido, é um intelectual poderoso, mas naturalmente ignorado pelos veículos da TV Globo. O objetivo é exclui-lo dos debates, porque diz verdades inconvenientes. Numa entrevista brilhante ao Jornal Opção, desmonta, com dados e argumentos convincentes, as teses do sarnaico-petismo.
A campanha pró-desarmamento parece sugerir que cada civil que tem uma arma em casa é um bandido ou assassino em potencial e, por isso, precisa ser desarmado urgentemente, num processo que um psiquiatra não hesitaria em qualificar de “histérico”. “Bandido não quer saber de arma de pequeno calibre, como revolver 38, que o cidadão comum adquire legalmente. Bandido quer é arma pesada que entra contrabandeada no País”, contrapõe Bené. O bandido, precisa o advogado, “tem quase sempre armamento muito mais moderno à disposição dele, vez que não segue a lei”. O professor enfatiza: “As armas continuam entrando pelas nossas fronteiras. Já foram identificados mais de 140 pontos vulneráveis em nossas regiões fronteiriças. Os armamentos também estão entrando pelos portos, pois a fiscalização dos contêineres é muito pequena e feita praticamente por amostragem. Em uma média de 100 contêineres apenas oito são vistoriados”.
Controlar as fronteiras é uma “arma” muito mais eficaz que o desarmamento puro e simples da população. O professor Bené revela que o principal ponto de entrada de armas no Brasil é a Bolívia. Depois, entram armas pelas fronteiras do Paraguai e da Venezuela. Entram armas e drogas.
Paralelo ao controle das fronteiras, o governo federal precisa ter, afirma o especialista Bené, “uma política continuada de integração nacional de segurança pública”. Os criminosos devem ser mantidos presos, pois o fim da impunidade é decisivo para reduzir a criminalidade.
Baseado num levantamento do coronel Jairo Paes de Lira, ex-comandante do Policiamento Metropolitano de São Paulo (maior cidade do Brasil), Bené afirma que “existem pouquíssimos casos de homicídios cometidos com armas legalizadas. Quase sempre a pessoa que comete um crime já tem um histórico de violência, tem passagens pela polícia, tem esse ânimo de fazer o mal, de cometer um assassinato. Esse tipo de pessoa não vai ser desarmada”. O advogado apresenta uma argumentação heterodoxa, quase nunca exposta no debate unilateral da mídia televisual: “Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos demonstra que os criminosos tinham mais medo de encontrar um cidadão armado do que encontrar um policial. Quando se dá ao bandido a certeza de que a população está desarmada, ele agirá com mais coragem ou crueldade. Se considerarmos as estatísticas dos Estados, o número de invasão de domicílios com os moradores dentro cresceu assustadoramente nos últimos anos. Isto ocorre porque o criminoso tem certeza de que nenhum tipo de reação irá existir”.
O professor afirma que países que optaram pelo desarmamento, como a Inglaterra, Austrália e Canadá, longe de verificarem índices menores de criminalidade, assistiram a certo aumento de atos violentos. “Não houve nenhum país que conseguiu algum tipo de redução palpável (da criminalidade), mensurável, por meio do desarmamento da população ou de mais restrições às armas de fogo legais.” Bené diz que, apesar das campanhas em defesa do desarmamento, “os números da violência no Brasil continuaram crescendo. Tivemos em 2003 o Estatuto do Desarmamento aprovado. Ele foi apresentado à sociedade brasileira como um verdadeiro remédio contra a criminalidade. Um remédio que também não fez efeito”. A Suíça, seguindo o Brasil, também rejeitou o desarmamento. Bené diz que são milhões de armas nas mãos de civis. No entanto, só 24 homicídios foram cometidos na Suíça em 2009. Portanto, não é a quantidade de armas nas mãos dos civis que contribui para a violência na cidade e no campo. O que reduz a criminalidade é uma política de segurança pública eficiente, com investimento planejado, e com punição rigorosa dos criminosos. “No Brasil há mais de 350 mil mandados de prisão expedidos e não cumpridos. São 350 mil criminosos condenados, que deveriam estar presos e não estão. E aí vai dizer que o problema é o 38 do cidadão ou a cartucheira do sitiante?”, questiona Bené.
Afinal, somos ou não somos, nós, jornalistas, cães de aldeia? Nós, do Jornal Opção, lutamos, com as ideias (armas não-letais), para não aceitar a carapuça shakespeariana. Mas muitos jornalistas, talvez porque querem flertar com o politicamente correto, comportam-se como cães de aldeia, reverberando não opiniões autênticas, criadas e robustecidas na sociedade — e sim nos gabinetes confortáveis de governantes, parlamentares e de ongueiros profissionais. A mídia, sobretudo a Globo, pensa como o PT: o Brasil não estaria maduro o suficiente? Se pensa, erra mais uma vez.
Na semana passada, Eduardo Grillo e outros jornalistas entrevistaram a competente atriz Rosamaria Murtinho com a elegância e a frivolidade típicas do Globo News. Há um clima de assepsia (todos parecem ter acabado de sair do banho, deixando na banheira as ideias), de bom-mocismo, de politicamente correto no jornalismo global, notadamente no circuito fechado. Eduardo Grillo e seus colegas mostravam-se animados, até animadíssimos, com as informações de que a visita da presidente Dilma Rousseff à China foi um sucesso diplomático e comercial. Mulher de posições fortes, Rosamaria decidiu não comungar o coro dos contentes e ressalvou que a China usa “trabalho escravo”. Lá, como não querem saber comunistas, petistas e jornalistas “globais”, os salários e as escalas de trabalho são aviltantes. Greves? Nem pensar. O grevista vai para a cadeia e, depois, não consegue mais emprego. Legislação trabalhista? Nem pensar.
Não é à toa que grupos empresariais, do Japão, dos Estados Unidos e até do Brasil, decidiram instalar algumas de suas fábricas no território chinês. A mão-de-obra é baratíssima e o governo não permite que o operário crie “problemas”. Pois os jornalistas, que em geral adoram denúncias, não se interessaram pela “interpretação” da atriz e ignoraram, agora sem nenhuma elegância, o que, de modo pertinente, dizia. Os jornalistas do maior grupo de comunicação do país aderiram à diplomacia do governo Dilma. Os diplomatas do Itamaraty, adeptos da realpolitik, orientaram a presidente a não falar de direitos humanos. Para não prejudicar os negócios com os vorazes chineses. O Brasil, afinal, quer o trem-bala, e com dinheiro chinês, não importa como a China organiza e reproduz seu capital — lembrando os velhos tempos da Revolução Industrial na Inglaterra. Uma geração de chineses será destroçada para permitir que a China recupere o tempo perdido — Mao Tsé-tung e aliados isolaram e retardaram o desenvolvimento do país em algumas décadas — e se torne, em poucos anos, uma nação industrial e financeiramente competitiva. Já se tornou, aliás. É um engano pensar que se faz crescimento vertiginoso, sobretudo no momento da chamada acumulação primitiva de capitais, sem sacrificar vidas humanas.
É óbvio que o governo da China quer incorporar o maior número de chineses ao mercado consumidor interno, mas, como o poder de consumo dos chineses ainda é baixo (e, no momento da acumulação primitiva, não há como elevá-lo rapidamente sem sacrificar a margem de lucro almejada; salários baixos, em alguns nichos, fazem parte desta acumulação primitiva), o país precisa conquistar mercados com uma classe média consumidora mais estruturada — daí o ataque direto a mercados como o brasileiro (que tem consumidores consolidados e, ao mesmo tempo, matérias-primas essenciais, como soja e ferro) e ao americano (este exige, porém, produtos de melhor qualidade, mas os chineses entenderam à perfeição que o mercado americano é extremamente diversificado, pois conta com um país tipicamente de terceiro mundo dentro de um país de primeiro mundo. Desculpe-nos, leitor, pela terminologia retrô).
Voltemos, porém, ao tema do jornalismo, antes de discutir a questão do desarmamento. Num de seus mais poderosos dramas históricos, “Henrique VIII” (Editora Nova Aguilar, tradução algo preciosista de Oscar Mendes, página 692), Shakespeare reproduz um diálogo entre o cardeal Wolsey, um conspirador, e o rei Henrique VIII, mais conhecido, hoje, por ter se casado com Ana Bolena (uma mistura azeitada de Marta Suplicy com Zélia Cardoso de Mello). Wolsey tenta se proteger, alegando que foi “atacado e injuriado” pelos inimigos. Inspirado, o rei replica: “Não é necessário que sejais avisado de que possuís muitos inimigos, os quais não sabem o motivo pelo qual o são, mas que, semelhantes aos cães de uma aldeia, ladram quando ouvem seus companheiros fazer o mesmo”. Longe de nós chamar jornalistas de “cães”, porque seria uma ofensa grave, mas é possível dizer que, em alguns temas, comportam-se como cães de aldeia — reproduzindo exatamente aquilo que os outros dizem como se fosse a “verdade suprema”, sem qualquer reflexão crítica e o mínimo de autonomia mental que se deve exigir de quem ao menos sentou-se durante quatro anos numa cadeira de universidade (o problema da universidade é que, no lugar de arejar as cabeças para a sociedade aberta, da qual fala Karl Popper, às vezes contribui para dogmatizar a mente dos jovens. Eles saem de lá como robôs ideológicos, frequentemente esquerdistas). É o caso da polêmica estéril, em grande medida, sobre o desarmamento. O diálogo é de surdos, sobretudo da parte dos jornais e do governo lulo-dilmista.
Na ditadura, quando planejavam segurar a oposição e o avanço da sociedade, os governantes militares criavam leis, em geral passando por cima do Legislativo e do Judiciário. Para endurecer o regime, e supostamente combater “terroristas”, o governo editou o Ato Institucional nº 5, criando uma ditadura dentro da ditadura (o sistema gerou pequenos golpes por intermédio de atos institucionais, para fortalecer o mando militar), com o objetivo de fossilizar a sociedade civil e a sociedade política, e conter ou retardar mudanças. Ao perceber que a sociedade estava se movimentando e ouvindo o discurso da oposição emedebista com mais interesse, os ideólogos militares ficaram preocupados, porque avaliavam que o país ainda “não” estava preparado para a Abertura. Num certo momento, para impedir que a oposição dominasse o Senado e, assim, empurrasse o país para a democracia, a ditadura criou a figura do senador biônico. Dos três senadores dos Estados um seria biônico, ou seja, não seria eleito pelo voto popular, e sim indicado pela estrutura do governo. Assim, o governo militar manteve a maioria no Senado, impedindo a expansão legal da oposição e prorrogando a ditadura. Entretanto, o país vivia sob ditadura e, sob regimes de exceção, os gestores cometem toda sorte de desatinos institucionais. As regras são feitas para serem quebradas por seus criadores. Mas na democracia, não nos seus simulacros, as coisas não funcionam ou não devem funcionar assim. A sociedade, na democracia, não pode ficar à mercê dos governantes e líderes políticos como José Sarney.
O filósofo do humor Millôr Fernandes diz que, quando José Sir Ney (é assim que nomina o canastrão literário) escreve, a língua portuguesa grita... de dor. O problema é que a graça às vezes não nos deixa perceber a essência do percurso que Sarney está traçando. Aos 81 anos, o ex-presidente está pavimentando uma operação para, sutilmente, ficar com uma imagem positiva na história. Primeiro, ganhou do amigo Octavio Frias Oliveira, já falecido, uma coluna na “Folha de S. Paulo”, na página 2, tida como “nobre”, para posar de homem culto, da velha República das Letras, que raramente deixa de citar pensadores de primeira e até de segunda categoria. A “moralidade” de Rui Barbosa, aquele que queimou os arquivos da escravidão, está sempre na primeira fila. Segundo, aproximou-se da esquerda — ele que sempre disse, na ditadura, que não podia ser marxista por conta de ser muito religioso — e se tornou conselheiro do ex-presidente Lula e, agora, da presidente Dilma Rousseff. (Para entender tal percurso, a recomendação é a leitura do esplêndido “Os Donos do Poder”, do sociólogo e jurista Raymundo Faoro. É a verdadeira “biografia” de Sarney — sem tirar nem pôr. A conciliação pelo alto das elites é o retrato da jogada do movimento sarnaico-petista.) Terceiro, encomendou uma biografia à jornalista Regina Echeverria, da qual se sai, depois de uma longa travessia pelo deserto das ideias, com a impressão de que o papa Bento XVI tem a obrigação de canonizar Sarney. O “duce” do Maranhão, “rei” do Amapá e “capo” da sesmaria chamada Brasil — teme-se que, no futuro, o PT proponha mudar o nome para Sarneysil — merece o título de “santo”, ou, exagerando, até de bendito o fruto entre os petistas.
Para reforçar a biografia, que não alcançou os objetivos esperados, o senador vai publicar, no fim do ano, suas memórias — uma espécie de prolongamento do livro da hagiógrafa Echeverria. Quarto, atendendo aos aliados da presidente Dilma, como o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo — de quem a imprensa “compra” e “vende” a imagem de democrata persistente —, o presidente do Senado propõe novo referendo para discutir o desarmamento da população civil. A medida é vista, pelo marketing de Sarney, como politicamente correta, especialmente depois que Wellington de Oliveira matou 12 estudantes numa escola do Realengo, no Rio de Janeiro.
Por ter construído seu poder, e sua fortuna, durante a ditadura, a qual traiu em 1985, passando para o lado de Tancredo Neves, Sarney está acostumado a golpes e golpinhos. Em 2005, convocada, a população brasileira compareceu em massa e votou contra a proposta patrocinada pelo governo Lula, TV Globo e Ongs. As urnas revelaram o Brasil real, aquele que não aparecia na Globo: 59,1 milhões de eleitores (63,94%) votaram contra o desarmamento da população. Apenas 33,3 milhões (36,06%) ficaram com o governo. Detalhe: se não fosse a pressão do governo, a divulgação maciça da Globo — que praticamente obrigou alguns de seus principais atores a aderirem à campanha pró-desarmamento —, a votação pelo “não” poderia ter sido muito maior. Chegaram a manipular pesquisas. O Serpes e “O Popular” publicaram dados falsos. Pois agora, seis anos depois, como se a população não tivesse tomado uma decisão, a ser acatada pelos políticos e pela sociedade, José Sarney, amparado em pedido do governo Dilma, volta a sugerir outro referendo para discutir o desarmamento. Ora, apenas meia década depois, um novo referendo é um golpe contra a decisão popular, contra a sociedade. É como se, por conta de um acontecimento grave, mas acidental, o governo dissesse aos brasileiros, tratados como bebês sem vontade própria, que as leis do país não têm valor algum.
De um veterano oportunista, como Sarney, não se esperava outra coisa. Entretanto, o PT, desde seu nascimento em 1980, e embora tenha ranços autoritários — resultantes de suas origens esquerdistas —, se pretende um partido democrático, avesso a golpes. Porém, como Sarney é camaleão, sempre aderindo às circunstâncias, mimetizando as cabeças coroadas do País e adaptando-se à perfeição ao novo ambiente, é possível que a ideia do novo referendo não tenha saído inteiramente de sua cabeça de alpinista político-social, e sim do PT e do batalhão de Ongs que, direta ou indiretamente, controla. O PT parece duvidar da democracia que, sólida, deu-lhe três mandatos presidenciais consecutivos e quer tratar os brasileiros como tutelados.
Se Sarney cita Rui Barbosa, numa volta ao passado bacharelesco, com frases de efeito que são panaceias, mencionemos um professor e advogado menos conhecido — Benedito Barbosa. O paulista Bené, como é mais conhecido, é um intelectual poderoso, mas naturalmente ignorado pelos veículos da TV Globo. O objetivo é exclui-lo dos debates, porque diz verdades inconvenientes. Numa entrevista brilhante ao Jornal Opção, desmonta, com dados e argumentos convincentes, as teses do sarnaico-petismo.
A campanha pró-desarmamento parece sugerir que cada civil que tem uma arma em casa é um bandido ou assassino em potencial e, por isso, precisa ser desarmado urgentemente, num processo que um psiquiatra não hesitaria em qualificar de “histérico”. “Bandido não quer saber de arma de pequeno calibre, como revolver 38, que o cidadão comum adquire legalmente. Bandido quer é arma pesada que entra contrabandeada no País”, contrapõe Bené. O bandido, precisa o advogado, “tem quase sempre armamento muito mais moderno à disposição dele, vez que não segue a lei”. O professor enfatiza: “As armas continuam entrando pelas nossas fronteiras. Já foram identificados mais de 140 pontos vulneráveis em nossas regiões fronteiriças. Os armamentos também estão entrando pelos portos, pois a fiscalização dos contêineres é muito pequena e feita praticamente por amostragem. Em uma média de 100 contêineres apenas oito são vistoriados”.
Controlar as fronteiras é uma “arma” muito mais eficaz que o desarmamento puro e simples da população. O professor Bené revela que o principal ponto de entrada de armas no Brasil é a Bolívia. Depois, entram armas pelas fronteiras do Paraguai e da Venezuela. Entram armas e drogas.
Paralelo ao controle das fronteiras, o governo federal precisa ter, afirma o especialista Bené, “uma política continuada de integração nacional de segurança pública”. Os criminosos devem ser mantidos presos, pois o fim da impunidade é decisivo para reduzir a criminalidade.
Baseado num levantamento do coronel Jairo Paes de Lira, ex-comandante do Policiamento Metropolitano de São Paulo (maior cidade do Brasil), Bené afirma que “existem pouquíssimos casos de homicídios cometidos com armas legalizadas. Quase sempre a pessoa que comete um crime já tem um histórico de violência, tem passagens pela polícia, tem esse ânimo de fazer o mal, de cometer um assassinato. Esse tipo de pessoa não vai ser desarmada”. O advogado apresenta uma argumentação heterodoxa, quase nunca exposta no debate unilateral da mídia televisual: “Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos demonstra que os criminosos tinham mais medo de encontrar um cidadão armado do que encontrar um policial. Quando se dá ao bandido a certeza de que a população está desarmada, ele agirá com mais coragem ou crueldade. Se considerarmos as estatísticas dos Estados, o número de invasão de domicílios com os moradores dentro cresceu assustadoramente nos últimos anos. Isto ocorre porque o criminoso tem certeza de que nenhum tipo de reação irá existir”.
O professor afirma que países que optaram pelo desarmamento, como a Inglaterra, Austrália e Canadá, longe de verificarem índices menores de criminalidade, assistiram a certo aumento de atos violentos. “Não houve nenhum país que conseguiu algum tipo de redução palpável (da criminalidade), mensurável, por meio do desarmamento da população ou de mais restrições às armas de fogo legais.” Bené diz que, apesar das campanhas em defesa do desarmamento, “os números da violência no Brasil continuaram crescendo. Tivemos em 2003 o Estatuto do Desarmamento aprovado. Ele foi apresentado à sociedade brasileira como um verdadeiro remédio contra a criminalidade. Um remédio que também não fez efeito”. A Suíça, seguindo o Brasil, também rejeitou o desarmamento. Bené diz que são milhões de armas nas mãos de civis. No entanto, só 24 homicídios foram cometidos na Suíça em 2009. Portanto, não é a quantidade de armas nas mãos dos civis que contribui para a violência na cidade e no campo. O que reduz a criminalidade é uma política de segurança pública eficiente, com investimento planejado, e com punição rigorosa dos criminosos. “No Brasil há mais de 350 mil mandados de prisão expedidos e não cumpridos. São 350 mil criminosos condenados, que deveriam estar presos e não estão. E aí vai dizer que o problema é o 38 do cidadão ou a cartucheira do sitiante?”, questiona Bené.
Afinal, somos ou não somos, nós, jornalistas, cães de aldeia? Nós, do Jornal Opção, lutamos, com as ideias (armas não-letais), para não aceitar a carapuça shakespeariana. Mas muitos jornalistas, talvez porque querem flertar com o politicamente correto, comportam-se como cães de aldeia, reverberando não opiniões autênticas, criadas e robustecidas na sociedade — e sim nos gabinetes confortáveis de governantes, parlamentares e de ongueiros profissionais. A mídia, sobretudo a Globo, pensa como o PT: o Brasil não estaria maduro o suficiente? Se pensa, erra mais uma vez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário