Uma revolução silenciosa, que teve início em meados da década de 90 numa área antes protegida pela força do corporativismo, começa finalmente a mostrar a sua cara no início do século 21. Trata-se do julgamento de casos de erros médicos.
Um levantamento inédito, divulgado pelo Superior Tribunal de Justiça no início desta semana, revelou a ponta do iceberg: entre 2002 e 2008, o número de recursos judiciais recebidos pelo órgão tendo como tema erros médicos saltou de 120 para 306 – um aumento de 200%.
(*dados até outubro de 2008)/ Fonte: STJ |
Os dados do STJ são ainda mais impressionantes quando se compara o número de processos recebidos em 2001 – apenas 23 – com o número de 2008. Mas esse número não é considerado confiável, pois houve uma mudança na maneira de autuação de palavras-chave dos processos neste período, o que pode ter gerado uma distorção. Não há nada na lei de processo que explique o aumento de 2001 (23) para 2002 (120), explica o STJ.
Tema quase tabu no Brasil em função da notória falta de transparência dos órgãos de auto-regulamentação profissionais, o julgamento de casos de erros médicos encontrou uma brecha para sair da toca com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), em 1990
O STJ entende que o Código de Defesa do Consumidor deve ser aplicado aos serviços prestados por profissionais liberais, incluindo médicos. Mas ressalta uma peculiaridade neles: “a responsabilidade do médico, ao contrário do que ocorre no restante das leis consumeristas, continua sendo subjetiva, ou seja, depende da prova da culpa do médico”, diz a ministra Nancy Andrighi, presidente da Segunda Seção do STJ.
Ato e prejuízo
Por esse motivo, advogados como Célia Destri tem optado por outra abordagem: “com o Código, você não precisa mais provar a culpa do médico. Basta provar que houve o ato (uma cirurgia, por exemplo), o dano e o nexo de causalidade entre uma coisa e outra”, diz
Pioneira da causa, Destri é presidente da Associação das Vítimas de Erros Médicos, baseada no Rio de Janeiro. Ela cita o exemplo de um jovem, filho de uma faxineira, que entrou em um hospital do SUS para fazer uma operação de apendicite e saiu de lá em estado vegetativo, em função de problemas ocorridos na anestesia.
Em vez de acionar o médico na Justiça, Destri acionou o Estado, responsável pela manutenção do hospital onde ocorreu a cirurgia. “Usei o Código de Defesa do Consumidor. Não aleguei que houve erro médico, mas uma má prestação de serviço”, explica a advogada, vitoriosa nesta ação, que resultou numa indenização para a família do jovem.
A aplicação do Código facilita muito a defesa dos direitos do consumidor. “Com ele, o juiz dispõe de meios mais eficazes para detectar práticas comerciais e cláusulas contratuais abusivas. Isso certamente é um avanço em relação à legislação comum”, disse a ministra Nancy Andrighi ao site do próprio STJ.
Graças a esta interpretação, “o número de processos tem aumentado assustadoramente”, diz Celia Destri. “Tenho entrado com ações contra planos de saúde, contra hospitais, contra os mantenedores dos hospitais”, relata.
Cerca de 5 mil pessoas já foram atendidas pela Associação de Vítimas de Erros Médicos desde a sua criação, em 1991. “Hoje, tenho 1.200 ações na Justiça”, diz Destri. “Mais de 500 ações já foram julgadas, com 70% de vitórias”, estima.
Como outros ativistas da causa do erro médico, Celia Destri envolveu-se com o assunto por conta de um problema pessoal. Uma cirurgia no ovário mal feita resultou na perda de um rim da advogada. Acionado, o Conselho Regional de Medicina, depois de um longo processo, deu uma “censura reservada” à médica. “O que quer dizer isso?”, pergunta Destri. “Acionar o conselho só dá cansaço, estresse”, diz ela.
A advogada, então, entrou com quatro ações na Justiça, todas vitoriosas. Uma delas, contra o plano de saúde, que teve como resultado o descredenciamento da médica.
A advogada informa que há inúmeras associações de apoio a vítimas de erros médicos, em diferentes cidades do país. Também se pode recorrer, sempre, em ações indenizatórias, às defensorias públicas. “As pessoas estão mais conscientes dos seus direitos”, acredita.
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