Por Tiago Duque* em 10/11/2011 às 19h25
Depois de muitos ativistas não perderem as esperanças e perseverarem nos últimos anos na insistência sobre a importância do assunto, o aborto foi escolhido como tema da próxima Parada do Orgulho Gay!
Muitos devem se perguntar em que a causa gay se relaciona com a discussão sobre o aborto. O que parece óbvio para alguns é absolutamente (estrategicamente) não compreensível para outros. Eis a primeira justificativa para a eleição do tema: dar visibilidade às causas que estejam focadas mais na busca por direitos do que na conservadora reivindicação por respeito. Mais esta mudança na lógica de visibilidade das questões de gênero e sexualidade no Brasil tem muito a ensinar para o mundo. Afinal, sabemos que historicamente a longa luta contra as injustiças e violências calcadas sobre a moralidade e os bons costumes foram vencidos com muita imoralidade. Vocês já imaginaram se os movimentos sociais ficassem focados apenas em causas reconhecidas como moralmente respeitáveis? Hoje estaríamos vivendo em uma realidade ainda mais violenta.
A respeitabilidade foi colocada na berlinda na hora da escolha deste tema. Alguns insistiam que este assunto é polêmico e poderá alocar os gays em uma realidade ainda mais estigmatizante do que a de "comedores de criancinhas", como a de "matadores de criancinhas". Outros se defenderam dizendo que o problema não é o estigma, mas a norma que o inventa. Então, ao invés de acabar com o que a sociedade acha que é menos valioso, é preciso denunciar a construção perversa das legislações que alocam determinadas pessoas em situações de vidas inabitáveis. Isso é absolutamente claro quando olhamos para os dados das mulheres que morrem por tentativas de aborto na ilegalidade neste país: pobre, negras e jovens.
Críticas identitárias também foram usadas na disputa para que outro tema ganhasse força e não o do abortamento mais seguro para os casos em que são solicitados ou necessariamente aplicados. "Aborto não é um tema pra viado se meter", "Temos coisas mais específicas para lutar", "Eu nunca vou me engravidar", estas fora algumas das frases ouvidas na discussão antes da votação do tema. Todas elas também foram criticadas porque ficou claro que o aborto não é um tema anti-identitário, pelo contrário. Assim o é a ponto de muitos o temerem. O problema não está no uso das identidades, mas na forma estratégica que a empregamos. Neste processo, foi defendido que o aborto, de um ponto de vista estruturante, é mais forte identitariamente do que outros de menor impacto transformador.
A aposta é que com essa decisão, o Movimento Social TTBLG (Travestis, Transexuais, Bissexuais, Lésbicas e Gays), além de rever seus próprios preconceitos, tente minimizar a dívida histórica com as mulheres, não somente dando maior visibilidade a uma luta anteriormente erroneamente identificada como sendo só delas, mas porque foi inteligente o suficiente para compreender que ajudar a garantir uma discussão de qualidade sobre o aborto é promover mudanças e direitos aos mais diversos usos dos corpos, autonomia dos desejos, laicidade da legislação e enfrentamento da violência contra as múltiplas formas de vivenciar as feminilidades. Alguém acha que isso não tem relação alguma com as experiências de sofrimento dos gays? Quem fez a defesa procurou justificar que, se a resistência em vencer a homofobia é alimentada por questões morais, o aborto também.
Com o fato de este movimento levar o tema da descriminalização do aborto para as ruas no dia da Parada, vários setores governamentais estão preocupados. Isso tem ocorrido porque este tema é um daqueles proibidos em campanha eleitoral. Como os nossos representantes vão se posicionar abertamente diante do apelo de milhões no domingo de manhã da Parada sem colocar em risco as articulações com os setores católicos e evangélicos do legislativo?
Na área televisiva esta questão também tem sido um problemão. Uma emissora já ordenou em seus bastidores que está vetada qualquer cobertura a esta "pouca vergonha". As ruas ocupadas em prol da descriminalização do aborto ganharam status perigoso como o vetado beijo novelesco entre dois homens jovens másculos bonitinhos em horário nobre. Por isso, mais uma vez, fica claro que quase tudo, aos olhos da censura, pode parecer revolucionário demais. O medo é o de que, se hoje querem descriminalizar, amanhã vão querer legalizar. Mas, e daí?
Enquanto os organizadores não mudam de idéia, porque tem sido forte a pressão de milhares de pessoas (via redes sociais) para que o tema seja outro, eu já estou garantido a minha passagem pra Pasárgada, onde esta Parada vai ser realizada! Não quero perder mais esta festa! Pelo menos neste dia, "Vou-me embora pra Pasárgada. Vou-me embora pra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz. Lá a existência é uma aventura." Quem quiser sonhar comigo, pode vir. Aos mais aflitos com a escolha do tema, não se preocupem, vocês acabaram de ler uma falsa notícia. Como Manuel Bandeira sonhou com a sua cidade perfeita e imaginária, eu também sonho com a minha.
*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade - Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível*.
Muitos devem se perguntar em que a causa gay se relaciona com a discussão sobre o aborto. O que parece óbvio para alguns é absolutamente (estrategicamente) não compreensível para outros. Eis a primeira justificativa para a eleição do tema: dar visibilidade às causas que estejam focadas mais na busca por direitos do que na conservadora reivindicação por respeito. Mais esta mudança na lógica de visibilidade das questões de gênero e sexualidade no Brasil tem muito a ensinar para o mundo. Afinal, sabemos que historicamente a longa luta contra as injustiças e violências calcadas sobre a moralidade e os bons costumes foram vencidos com muita imoralidade. Vocês já imaginaram se os movimentos sociais ficassem focados apenas em causas reconhecidas como moralmente respeitáveis? Hoje estaríamos vivendo em uma realidade ainda mais violenta.
A respeitabilidade foi colocada na berlinda na hora da escolha deste tema. Alguns insistiam que este assunto é polêmico e poderá alocar os gays em uma realidade ainda mais estigmatizante do que a de "comedores de criancinhas", como a de "matadores de criancinhas". Outros se defenderam dizendo que o problema não é o estigma, mas a norma que o inventa. Então, ao invés de acabar com o que a sociedade acha que é menos valioso, é preciso denunciar a construção perversa das legislações que alocam determinadas pessoas em situações de vidas inabitáveis. Isso é absolutamente claro quando olhamos para os dados das mulheres que morrem por tentativas de aborto na ilegalidade neste país: pobre, negras e jovens.
Críticas identitárias também foram usadas na disputa para que outro tema ganhasse força e não o do abortamento mais seguro para os casos em que são solicitados ou necessariamente aplicados. "Aborto não é um tema pra viado se meter", "Temos coisas mais específicas para lutar", "Eu nunca vou me engravidar", estas fora algumas das frases ouvidas na discussão antes da votação do tema. Todas elas também foram criticadas porque ficou claro que o aborto não é um tema anti-identitário, pelo contrário. Assim o é a ponto de muitos o temerem. O problema não está no uso das identidades, mas na forma estratégica que a empregamos. Neste processo, foi defendido que o aborto, de um ponto de vista estruturante, é mais forte identitariamente do que outros de menor impacto transformador.
A aposta é que com essa decisão, o Movimento Social TTBLG (Travestis, Transexuais, Bissexuais, Lésbicas e Gays), além de rever seus próprios preconceitos, tente minimizar a dívida histórica com as mulheres, não somente dando maior visibilidade a uma luta anteriormente erroneamente identificada como sendo só delas, mas porque foi inteligente o suficiente para compreender que ajudar a garantir uma discussão de qualidade sobre o aborto é promover mudanças e direitos aos mais diversos usos dos corpos, autonomia dos desejos, laicidade da legislação e enfrentamento da violência contra as múltiplas formas de vivenciar as feminilidades. Alguém acha que isso não tem relação alguma com as experiências de sofrimento dos gays? Quem fez a defesa procurou justificar que, se a resistência em vencer a homofobia é alimentada por questões morais, o aborto também.
Com o fato de este movimento levar o tema da descriminalização do aborto para as ruas no dia da Parada, vários setores governamentais estão preocupados. Isso tem ocorrido porque este tema é um daqueles proibidos em campanha eleitoral. Como os nossos representantes vão se posicionar abertamente diante do apelo de milhões no domingo de manhã da Parada sem colocar em risco as articulações com os setores católicos e evangélicos do legislativo?
Na área televisiva esta questão também tem sido um problemão. Uma emissora já ordenou em seus bastidores que está vetada qualquer cobertura a esta "pouca vergonha". As ruas ocupadas em prol da descriminalização do aborto ganharam status perigoso como o vetado beijo novelesco entre dois homens jovens másculos bonitinhos em horário nobre. Por isso, mais uma vez, fica claro que quase tudo, aos olhos da censura, pode parecer revolucionário demais. O medo é o de que, se hoje querem descriminalizar, amanhã vão querer legalizar. Mas, e daí?
Enquanto os organizadores não mudam de idéia, porque tem sido forte a pressão de milhares de pessoas (via redes sociais) para que o tema seja outro, eu já estou garantido a minha passagem pra Pasárgada, onde esta Parada vai ser realizada! Não quero perder mais esta festa! Pelo menos neste dia, "Vou-me embora pra Pasárgada. Vou-me embora pra Pasárgada. Aqui eu não sou feliz. Lá a existência é uma aventura." Quem quiser sonhar comigo, pode vir. Aos mais aflitos com a escolha do tema, não se preocupem, vocês acabaram de ler uma falsa notícia. Como Manuel Bandeira sonhou com a sua cidade perfeita e imaginária, eu também sonho com a minha.
*Tiago Duque é sociólogo e tem experiência como educador em diferentes áreas, desde a formação de professores à educação social de rua. Milita no Identidade - Grupo de Luta Pela Diversidade Sexual. Gosta de pensar e agir com quem quer fazer algo de novo, em busca de um outro mundo possível*.
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