* A. C. Portinari Greggio
Este é o sexto artigo sobre democracia. No último, falamos sobre a democracia representativa, mostrando a aberração desse regime no caso brasileiro. Vejamos agora um modelo alternativo.
Atenas foi, desde o século V até 322 AC, uma estável e próspera democracia, tão autêntica que operava mediante a participação dos cidadãos em todos os escalões do governo, sem intermediação de representantes ou deputados. A democracia ateniense é até hoje o modelo universal mais admirado como ideal em matéria de governo.
A democracia ateniense era exercida diretamente pelos cidadãos de Atenas, e somente por eles. Todos os demais – estrangeiros residentes e escravos – eram excluídos. E a exclusão era para valer, porque a coisa mais difícil na Grécia clássica era tornar-se cidadão de qualquer das cidades-Estados nas quais a nação se dividia. Em Atenas, por exemplo, o estrangeiro só obtinha a cidadania mediante aprovação da assembléia popular; e ainda assim, a decisão podia ser contestada judicialmente, caso houvesse suspeita quanto ao mérito da concessão. O naturalizado podia participar da política, mas o exercício de cargos públicos só seria permitido aos seus descendentes, se fossem filhos de mãe ateniense.
Note que na Grécia o conceito de estrangeiro não se referia apenas a gente estranha, vinda de longe. Qualquer oriundo de outra cidade da própria Grécia era estrangeiro nas demais. Testemunho desse fato é a célebre oração de Sócrates no Crito, de Platão. Tendo Sócrates sido condenado à morte pelo tribunal popular de Atenas, seus discípulos tramam plano de fuga, mediante o qual poderia asilar-se noutra cidade grega. Sócrates recusa, demonstrando que, embora injustamente condenado, era melhor morrer dignamente como cidadão na sua pátria, do que viver de favor, como estrangeiro, noutro lugar.
Pergunta: era especificamente grego esse arraigado sentimento de apego à comunidade? Não. Os gregos, convém lembrar, eram povo jovem, recém-saído do estágio tribal; e cada cidade-Estado era habitada por clã cujos membros se consideravam descendentes de antepassado comum. O sangue determinava a identidade do grupo; e a sua sobrevivência começava pela defesa e preservação dessa identidade. O apego às tradições, o culto dos antepassados, o arraigado patriotismo – afinal, pátria é termo de origem grega - eram os fundamentos da ordem social. Ora, traços semelhantes podem ser observados em todos os povos no mesmo estágio histórico, desde as doze tribos de Israel aos povos nórdicos da Europa, os indígenas brasileiros, as tribos africanas, etc. Trata-se de característica universal, indelevelmente determinada pelo fato de que a Humanidade viveu a sua longa pré-história – mais de 150 mil anos – nessa condição.
Outra pergunta: a exclusão política em Atenas não era incompatível com democracia? Muito ao contrário, a exclusão era essencial à democracia ateniense. Para entender, é preciso relacionar exclusão com identidade e igualdade.
Em artigo anterior, comentando o conceito de democracia de Aristóteles, vimos que esta só é praticável no caso de comunidade em que todos os membros sejam naturalmente iguais. Ou seja, a igualdade não é estabelecida por lei, nem imposta de cima para baixo: é algo preexistente, a partir de que se institui a democracia. É o que ocorre no exemplo do condomínio residencial brasileiro, nosso modelo de mini-democracia: todos são iguais na condição de proprietários. Da mesma forma, na democracia ateniense todos eram iguais na de cidadãos. Não é o condomínio que faz o proprietário, nem é a democracia que nomeia o cidadão; ao contrário, é o proprietário que estabelece o condomínio, e é o cidadão que institui a democracia.
Igualdade, em democracias como a de Atenas, não passa de outro nome para identidade, a qual consiste abraçar os interesses do seu grupo, os quais existem em permanente confronto com interesses antagônicos. É preciso que todos se sintam do mesmo lado. E, naturalmente, para que exista um lado, é necessário que exista o outro. Democracias não existem no vácuo: são Estados nacionais. E toda a nação, com seus próprios interesses, só existe em contraposição a outras nações, com seus respectivos e simétricos interesses nacionais. Nesse universo, nações sem identidade condenam-se a desaparecer. Daí a essencial importância da identidade nacional, a qual, nas democracias, se materializa na coletividade de cidadãos, por ela, e somente por ela, unidos no interesse comum. É, portanto, na identidade nacional que reside a igualdade natural com a qual se constróem as democracias.
Esses conceitos nos permitem considerar sob nova luz a questão crucial das democracias: a sua irresistível tendência a degenerar em tiranias populistas. O principal fator de degeneração das democracias é a contínua ameaça da maioria contra a minoria, impossível de evitar, por mais “freios e contrapesos” que as Constituições inventem para impedir a ditadura da maioria. Como se explica, então, a estabilidade da democracia em Atenas?
A democracia ateniense não degenerava porque todos estavam do mesmo lado, ligados pela condição exclusiva de cidadãos. Na Grécia, onde cada cidade-Estado só cuidava de si, ser cidadão implicava acima de tudo ser incondicionalmente patriota, ou seja, estar do lado da sua pátria com relação às dos outros. Nesse contexto, o domínio da maioria nunca chegava a ser opressivo para a minoria porque todos tinham idêntico interesse comum.
Se isso for verdade, duas questões pairam no ar. Primeira: sendo a participação na democracia ateniense exclusiva dos cidadãos, qual a sorte dos estrangeiros e dos escravos nesse regime? Segunda: sendo Atenas tão diferente do Brasil, que utilidade tem para nós o seu modelo de democracia? Não dá para responder neste espaço, mas já podemos adiantar algumas conclusões.
O leitor atento terá notado que as características da democracia ateniense – espírito de identidade, patriotismo, culto às tradições, reverência pelo passado, supremacia do interesse nacional – são requisitos essenciais de cidadania, bastante familiares aos nossos militares. E são também – não é estranho? – completamente opostos ao projeto dos apátridas e ongueiros que nos governam.
Essa gente, que fala em nome da “democracia”, é visceralmente contrária a tudo isso. Para chegar ao poder, exploram a desunião nacional e o ódio de classes e de raças. Uma vez no governo, empenham-se absurdamente em construir, sempre em nome da sua “democracia”, utopias universais, sem limites ou fronteiras, nas quais só haverá “minorias” sem maioria, a conviver num mundo “multicultural” e sem antagonismos, no qual sequer haverá lados a escolher. É óbvio que há algo errado nessa história.
Quem são, então, os verdadeiros defensores da democracia?
* Economista, ex-aluno da
Escola Preparatória de Cadetes
de São Paulo
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