por João Luiz Mauad em 09 de setembro de 2008
Resumo: Algumas das respostas do ministro Marco Aurélio Cunha durante uma entrevista para a revista Veja revelam incongruência com a lógica e o descompasso com os princípios mais elementares do Estado Democrático de Direito.
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Excelentíssimo Ministro Marco Aurélio Mello
Perdoe por iniciar esta missiva de forma tão direta, mas preciso dizer-lhe que fiquei absolutamente embasbacado ao ler a entrevista de Vossa Excelência sobre o tema do aborto, concedida à revista Veja desta semana. (Semana retrasada)
Antes de quaisquer outras considerações, esclareço que meu espanto foi diretamente proporcional ao apreço e respeito que tenho por Vossa Excelência, especialmente pela independência que sempre demonstrou perante o Poder Executivo, bem como pela conduta exemplar de respeito à lei e, principalmente, aos direitos e garantias individuais que sempre manteve.
Não pretendo aqui entrar no mérito da questão do aborto de fetos anencéfalos, nem tampouco do aborto em geral, temas já exaustivamente tratados, nos autos do processo em que V. Ex.ª é relator, por gente muito mais gabaritada e preparada do que eu. Meu interesse é apenas apontar a incongruência de algumas de suas respostas com a lógica mais elementar, bem como o descompasso de outras com os princípios mais básicos do Estado Democrático de Direito, fato que, partindo de um homem indubitavelmente inteligente e preparado, só pode ser creditado, a meu juízo, à excessiva ideologização em que essa questão encontra-se mergulhada.
Eis as perguntas e respostas, com os respectivos comentários:
“Em 2004, o plenário do STF derrubou uma liminar concedida pelo senhor que autorizava a interrupção da gestação de anencéfalos. Por que o senhor decidiu trazer o assunto à tona novamente?
“Tomei como base o resultado da recente votação na corte do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. Se esse debate tivesse ocorrido em 2004, muito provavelmente o resultado não teria sido o mesmo. Embora a decisão a favor do uso de células-tronco tenha sido apertadíssima (6 votos contra 5), representou uma abertura do Supremo. Por isso, acredito que agora a Casa aprovará a interrupção da gestação de anencéfalos. Desta vez, a votação será menos apertada do que foi no caso das células-tronco. Diria que teremos um 7 a 4 ou um 8 a 3. E, depois que o Supremo bater o martelo, não adiantará recorrer ao Santo Padre.”
O que primeiro chama a atenção nesta resposta são as inferências sobre o possível resultado do julgamento. Em assim agindo, V. Ex.ª deixa transparecer que o resultado do mesmo já seria previamente conhecido, de acordo com convicções anteriormente firmadas, independentemente dos debates, das provas e dos argumentos jurídicos trazidos aos autos – os quais, por dedução lógica, seriam somente parte de um grande teatro.
Também não entendi por que, ao final de sua resposta, V. Ex.ª traz o Santo Padre para o meio da pendenga, como se alguém o estivesse tentando colocar em posição hierárquica superior à do STF, o que não era o caso. Enfim, V. Ex.ª deve ter lá as suas razões.
“O senhor acredita que a maior flexibilização do STF abre a possibilidade para a discussão do aborto em geral?
“Sem dúvida. O debate atual é um passo importante para que nós, os ministros do Supremo, selecionemos elementos que, no futuro, possam respaldar o julgamento do aborto de forma mais ampla. O sistema atual está capenga. Por que a prática de aborto de fetos potencialmente saudáveis no caso de estupro é permitida? Esse tema é cercado por incongruências. Temos 1 milhão de abortos clandestinos por ano no Brasil. Isso implica um risco enorme de vida para a mulher. Na maioria das vezes, o aborto é feito em condições inexistentes de assepsia, sem um apoio médico de primeira grandeza. Há uma hipocrisia aí. O aborto é punido por normas penais, mas é feito de forma escamoteada. Nosso sistema é laico. Não somos regidos pelo sistema canônico, mas por leis. A sociedade precisa deixar em segundo plano as paixões condenáveis.”
Nesta resposta, data máxima vênia, V. Ex.ª agride a lógica mais elementar. Já vi tal argumento na boca de diversas pessoas, mas jamais imaginei que pudesse encontrá-lo na sua, porque absolutamente absurdo. Para prová-lo, não precisamos gastar muitos neurônios ou argumentos. Digamos que, num surto de loucura, eu pretendesse defender a descriminação do assalto a mão armada em nosso país. Então, perguntado sobre o tema, eu responderia exatamente a mesma coisa que V. Ex.ª, tomando o cuidado de trocar a palavra “aborto” por “assalto”. Minha resposta seria, então, a seguinte:
“Esse tema é cercado por incongruências. Temos mais de 1 milhão de assaltos clandestinos por ano no Brasil. Isso implica um risco enorme de vida para o assaltante. Na maioria das vezes, o assalto é feito em condições precárias, sem um apoio de primeira grandeza. Há uma hipocrisia aí. O assalto é punido por normas penais, mas é feito de forma escamoteada. Nosso sistema é laico. Não somos regidos pelo sistema canônico, mas por leis. A sociedade precisa deixar em segundo plano as paixões condenáveis.”
Reparou, Senhor Ministro? O argumento de que um crime deva deixar de sê-lo pelo fato de ser praticado de forma escamoteada e em grande quantidade é absurdo. Quer dizer então que, se um crime é praticado rotineiramente, com risco para o criminoso, ele deve simplesmente deixar de ser considerado crime? Confesso que não entendi o alcance do raciocínio. Se a norma legal vem sendo descumprida, devemos simplesmente acabar com ela? Nesse caso, convenhamos, sobrariam no Brasil muito poucas leis.
Mais à frente, talvez no afã de defender o estado laico, que não está, absolutamente, sob ataque, V. Ex.ª ainda se refere à fé dos crentes como “paixões condenáveis”, o que é, data vênia, lamentável sob o ponto de vista da tolerância. Estado Laico – e peço que me corrija se eu estiver errado – significa “Estado separado da Igreja”, e não que os crentes, porque influenciados em suas subjetividades pelas doutrinas das respectivas religiões, não possam participar dos debates da vida civil ou da política. Uma coisa é querer impor as normas canônicas acima das normas civis; outra, bem diferente, é o debate político e jurídico, onde a validade dos argumentos independe da crença de quem os pronuncia.
“Para os que se opõem ao aborto, no entanto, a mulher não tem direito a essa liberdade. A Igreja Católica, por exemplo, argumenta que a vida deve sempre ser acolhida como um dom.
"É preciso esclarecer que a vida pressupõe o parto. O Código Civil prevê o direito do nascituro, ou seja, daquele que nasceu respirando por esforço próprio. Enquanto o feto está ligado ao cordão umbilical, a responsabilidade é da mulher que o carrega. Quando a vida é totalmente improvável ou indesejada, deve ser discutida."
Como é, Senhor Ministro, que “a vida pressupõe o parto”? O que V. Ex.ª está dizendo aqui é que, até o momento do parto, a mulher teria pleno direito de decidir sobre a vida do feto, mesmo que este já esteja totalmente formado. Então, pergunto: um bebê com um dia de vida é um ser humano, mas um feto, às vésperas do parto, não o é, simplesmente porque ainda não respira espontaneamente? De acordo com este mesmo raciocínio, a lei (o Estado) só deveria proteger a vida após o nascimento e, assim, nada impediria que, por exemplo, em nome da própria liberdade, a mãe – desculpe pela imagem macabra – enterrasse uma chave de fenda no crânio de seu feto, através do canal vaginal, apenas momentos antes do parto? Em face da importância do tema, rogo que V. Ex.ª esclareça este seu ponto de vista com urgência, pois não consigo acreditar que o senhor tenha realmente pretendido dizer o que – pelo menos na minha interpretação – parece ter dito.
Atenciosamente
João Luiz Mauad
O autor é empresário e formado em administração de empresas pela FGV/RJ.
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