STATO FERINO
Publicado por Stato Ferino em maio 15, 2012
O episódio recente envolvendo o cantor Alexandre Pires, o futebolista Neymar, o funkeiro Mc Catra e a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, despido do ridículo e do absurdo que o envolvem quase por inteiro, guarda um fundo tenebroso, aqui já denunciado à exaustão: a tendência ideológica patentemente totalitária (e agora mais que nunca coativa) que certos conjuntos de entes, grupos de pessoas e malhas de valores ostentam cada vez mais em nosso País. A respeito, vai aqui notícia veiculada pela grande mídia eletrônica.
Um brevíssimo relatório do ocorrido: a dita Secretaria (certamente imprescindível ao bem comum da nação) ofereceu denúncia ao Ministério Público Estadual mineiro contra o cantor Alexandre Pires, autor de vídeo comercial supostamente racista e machista.
Antes de adentrarmos no problema, façamos brevíssimas reflexões genéricas a respeito de alguns valores dos quais qualquer estado democrático de direito se arroga defensor. Trata-se de um simples estabelecimento de parâmetros para aferir o cabimento ou não de tal atitude do órgão estatal.
O falecido Norberto Bobbio, pensador honesto e homem declaradamente de esquerda, pontuou que “Nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de democracia.” O jurista torinense chega a essa conclusão em sua obra o “O Futuro da Democracia”, (o excerto está na pg. 26, 6a Ed., Paz e Terra), coletênea de ensaios cujo tema central é autoevidente, a partir do próprio título que leva.
Referindo-se às “promessas não cumpridas” pela democracia, feitas por seus pioneiros fautores modernos, o professor atinge outra conclusão inafastável: a de que muitas das tais promessas são e sempre serão simplesmente impraticáveis diante da (sempre ela) complexidade do real. Simplesmente não cabem logicamente na “matéria bruta” da realidade, oposta aos ideais reiteradamente ventilados pela fluidez que permeia mesmo a mais rigorosa das teorias. São, em síntese, eternas promessas desde que vieram ao mundo.
A maior delas, vê-se com facilidade, é a efetivação prática da “vontade geral” idealmente configurada por Rousseau. Tal categoria política, moldada nas bases monocráticas do poder principesco, seria o único estado de coisas que permitiria a qualquer coletividade política, bem como a seus integrantes, que vivessem sob regras autonomamente concebidas e aplicadas. Vale dizer, apenas com o império absoluto da “vontade geral” é que o corpo político organicamente legislaria sobre si mesmo, observado um esquema de poder em que se faz extirpada mesmo a mínima distância entre governantes e governados, e bem assim extintas as facetas ascendente e descendente do poder político.
Logo e bem se nota a razão da frase transcrita acima. Afinal, considerada apenas a esfera política, sempre haverá heteronomia enquanto ainda houver dissenso, por mais exigentemente democrático que se queira um qualquer regime. De outra banda, é ainda mais certo que nem tudo é política. E mais certo ainda que nem deve ser. Não se pode cogitar que algum dia eliminem-se por completo todos os múltiplos centros de poder dispersos (família, escola, igreja, associações, sindicatos, empresas, etc.), que ademais não oferecem quaisquer danos à evolução democrática. Evolução que, afinal, imprescinde do respeito ao plural, seja ele apenas disperso, seja, além disso, explicitamente divergente.
Pouco mais à frente, na mesma obra, Bobbio pondera que (pg. 42), “(…) o cidadão total nada mais é que a outra face igualmente ameaçadora do estado total. Não por acaso a democracia rousseauniana foi frequentemente interpretada como democracia totalitária, em polêmica com a democracia liberal. O cidadão total e o estado total são faces da mesma moeda (…) têm em comum o mesmo princípio: que tudo é política”.
(Parêntese para grifar como é, já a esta altura, evidente que os doutíssimos aspones da tal Secretaria concordam plenamente com isso; respeito ao não-estatal, à pluralidade, à heteronomia, ao não-totalitarismo, e enfim… alguns dos valores que eles cultivam com zelo maternal.)
Genericamente, portanto, podemos dizer que o extrato desses raciocínos, tomados em conjunto, é algo como o seguinte: o sucesso da democracia, embora trate-se ela de um regime essencialmente procedimental, não diz respeito somente ao “como” (procedimento) e ao “quem” (competência) governa, mas também ao “que” e, principalmente, ao “quanto” se governa.
No que atine ao caso, é o que tínhamos de dizer a respeito da política (e da não-polótica) em sua generalidade. Ponhamos em conta agora, despidos de qualquer juízo de valor, os fatos que geraram a polêmica mencionada acima.
Pois bem. Três homens, todos indiscutivelmente vitoriosos naquilo que fazem, participam de um comercial. Este comercial é um pequeno vídeo em que, parodiando o filme King Kong, os três personagens invadem uma mansão, todos fantasiados de gorila. Na mansão tem curso uma festa repleta mulheres muito atraentes, todas em trajes de banho. Os invasores aproveitam a algazarra, enfim, dançam com as garotas, cantam uma música, etc. Fim do videocomercial, e ponto.
É o que se deu, e qualquer pessoa com o mínimo de saúde moral e política, ou que ao menos tenha aprendido a respeitar os outros, pararia por aí. Não há mais nada que dizer, nada mais natural: três celebridades participam de um comercial bem-humorado que se refere a um filme clássico do cinema. É o quanto, respectivamente, têm em comum os personagens do anúncio, e o motivo do enredo escolhido para o mesmo. A idéia do político, bem como qualquer intenção ou sentimento de ódio a ele relacionável, sequer resvalam a situação.
Como dissemos, todavia, isto é óbvio apenas para “qualquer pessoa com o mínimo de saúde moral e política, ou que, ao menos, tenha aprendido a respeitar os outros (…)”. Não é o caso dos agentes da Secretaria da Igualdade Racial. Os funcionários (se é que podem ser designados assim) de dito órgão rotularam como “racista” e “sexista” o videocomercial. Com ares de quem passa pito, dizem eles, do alto de suas próprias intranquilidades morais e de suas mentalidades apodrecidas, que as fantasias de gorila aludem à etnia dos personagens envolvidos (os três são negros), e não ao filme. E dizem que as mulheres, ali em trajes de banho, são tratadas como “objetos”, feitas “submissas”.
Ao invés de um comercial bem-humorado, ali viram uma questão de resguardo da paz pública: enfiaram o estado (pra variar) onde ele não cabe. Ao invés de identificarem os personagens do vídeo pelo sucesso que fazem (ou mesmo, e mais importante, por serem todos seres humanos), nivelaram-nos pela cor de suas peles. Ao invés de aceitarem que a mulher é sim, entre outras tantas coisas, objeto de desejo, ostentaram essa condição natural como se do fim dos tempos se tratasse um comercial em que algumas modelos dançam de biquíni.
Dizem que o palavrão não é adequado em textos deste jaez, mas não há outra via para designar os membros da tal Secretaria com o mínimo de fidelidade. São, obviamente, imbecis, criminosos, (já que falsamente imputaram crime a outrem, crime esse aliás imprescritível), doentes políticos, morais e mentais..
Nenhuma pessoa que se creia igual às demais e que viva em paz com o que escapa à política da maioria, isto é (e especificamente no caso), qualquer pessoa que não seja racista como (eles sim) racistas são os membros da tal Secretaria, e que encare o natural e o não-político como se deve, ou seja, com naturalidade e sem politicicade, enfim, esta pessoa normal, ética e politicamente sã, jamais sequer teria sua mente tangenciada por ideias odientas, segregacionistas, racistas e sexistas, que prontamente permearam os gigantescos vácuos das cabeças de nossos doutos aspones.
Não descartamos, é claro, que possa ser também um simples caso de falta do que fazer. Hipótese aliás em nada incompreensível já que falamos dessa quase-pasta, tão inútil e absurda quanto tantas outras que inflam a máquina do partidão e esvaem o bolso do contribuinte.
Por fim, já começamos com Bobbio, terminaremos com ele.
Na mesma obra supracitada, pg. 62, diz o jurista e politólogo que “(…) para que exista um regime democrático não é necessário um consenso unânime, como pretendem que exista pelo amor ou pela força os regimes de democracia totalitária, os quais (…), ao invés de deixarem aos que pensam diversamente o direito de oposição, querem reeducá-los para que se tornem súditos fiéis.” Inquirindo logo à frente: “Mas que coisa fazemos destes dissentâneos? (…) Devemos suprimi-los ou os deixamos sobreviver? e se os deixamos sobreviver, os aprisionamos ou deixamos circular, os amordaçamos ou os deixamos falar, os expulsamos como réprobos ou os mantemos entre nós?”
Em bom português, para os perturbados chancelatários da tal Secretaria: nós, que graças a Deus nada temos que ver com vocês para a quase total maioria dos assuntos, gostamos de preto e de branco, e achamos que não só devem ser tratados como iguais, mas que de fato são iguais; achamos graça em gente (gente, entenderam?) que se veste de macaco, e que dança vestida de macaco; gostamos de mulher de biquíni, e não achamos que dê pra fazer com que não gostemos.
Em suma: nosso “quanto” de democracia não é “tudo”, e sim “uma coisa ou outra”. E se até nas situações mais despretenciosas, como num comercial desse tipo, a mentalidade desses doentes se volta para figurasa como racismo e machismo (ou para qualquer um desses “ismos” que querem enfiar a política em tudo), a nossa não é assim.
Pobre Alexandre Pires, que tem de dar explicações quase suplicantes a esses digníssimos bandidos. Se vivêssemos em tempos e/ou lugares mais justos, eles sim é que veriam bem mais que de perto a longa trolha da equidade, e não ostentariam como armas exclusivamente suas estas imundícies de nosso porco direito.
O núcleo desse texto é o seguinte: racistas eles, machistas eles, totalitaristas eles. Mesmo por que, de resto, sabemos muito bem de que gente se trata, e de onde é que ela vem.
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