Observações finais
Expondo em conferências as idéias que depois viria a registrar neste livro, muitas vezes recebi dos ouvintes a exigência de uma "definição política". Sentiam-se desconfortáveis ante um interlocutor sem filiação identificável, algo assim como um UFO ideológico, e desejavam saber com quem estavam falando.
Minha resposta, invariavelmente, tem sido a seguinte:
O pressuposto dessa exigência é que não se pode criticar uma ideologia senão em nome de uma outra ideologia, dentre as reconhecidas no catálogo do momento. Esse pressuposto, por sua vez, funda-se num preconceito meio historicista, meio sociologista, segundo o qual todo pensamento individual é apenas "expressão" de algum anseio coletivo, e deve a este sua validade. Em oposição a este preconceito e àquele pressuposto, estou profundamente convicto de que somente o pensamento do indivíduo como tal pode ter validade objetiva, pois não há verdade senão para a consciência reflexiva, que só existe no indivíduo. As correntes de pensamento coletivas apenas manifestam desejos, anseios, temores, e jamais se levantam ao nível de autoconsciência crítica no qual a distinção entre verdade e falsidade pode ter algum sentido. Somente a autoconsciência do indivíduo pode captar essa distinção, ascender à esfera dos juízos universalmente válidos e da veracidade objetiva. Logo, é ela quem é juiz do pensamento coletivo.
A monstruosa inversão que submete o juízo da consciência individual ao critério das ideologias coletivas provém de uma mutilação da mente moderna, incapaz de atinar com alguma "universalidade" que não seja meramente quantitativa, reduzida portanto à "generalidade" e, em última análise, à validação puramente estatística. Como, de outro lado, toda prova estatística pressupõe a validade universal das leis da aritmética elementar, cujo fundamento é a evidência apodíctica somente acessível à consciência individual, o primado do pensamento coletivo repousa numa autocontradição pela qual nega sua própria validade.
Para piorar ainda mais as coisas, o pensamento coletivista, não tendo acesso à esfera da validade objetiva, logo perde toda referência ao "objeto" como tal e se fecha num subjetivismo coletivo: da estatística dos "fatos" caímos para a estatística das "opiniões", e a contagem dos votos se torna o supremo critério da veracidade. Este processo, que se inicia na esfera da política, termina por contaminar a ciência mesma, onde hoje em dia ouvimos apelos generalizados em favor da aceitação de critérios puramente retóricos de argumentação como fundamentos legítimos da credibilidade cientítica. Omarketing, em suma, é elevado a ciência suprema, modelo e juiz de todas as outras ciências.
Ou aceitamos esse resultado, ou devemos negar pela raiz o primado do pensamento coletivo, restaurando a consciência individual no posto de dignidade que lhe cabe. E, neste caso, deveremos admitir que o indivíduo humano possa elevar-se acima das ideologias e julgá-las, contanto que não o faça em nome de um protesto pessoal e subjetivo, mas em nome da veracidade universal e apodíctica, da qual ele, com todas as suas fraquezas, com todos os seus condicionamentos limitantes, continua, afinal, o único representante sobre a Terra.
No século XX, a consciência individual sofreu, das pseudociências emergentes, os mais violentos ataques, que pretenderam negá-la, reduzi-la a um epifenômeno dos papéis sociais introjetados, a uma projeção do instinto de sobrevivência, a uma ficção gramatical, a mil e uma formas do falso e do ilusório. De outro lado, no campo das técnicas psicológicas, nunca se investiu tanto na busca de meios para subjugar a consciência individual, quebrar sua autonomia, forçá-la a repetir mecanicamente o discurso coletivo. Se o nosso é o século do marxismo, da psicanálise, do estruturalismo, é também o da hipnose, o das técnicas de influência subliminar, o da lavagem cerebral, o da "modificação de comportamento" e o da Programação Neurolinguística. Se, por um lado, tudo se faz para demonstrar teoricamente a inanidade da consciência individual, de outro lado não se poupam esforços para reprimi-la e subjugá-la. Ora, estas duas séries de fatos, quando confrontadas, sugerem uma pergunta: para que tanto empenho em derrotar na prática algo que, em teoria, não existe? Se o cavalo está morto, para que açoitá-lo com tanta fúria?
Este é alíás o tema de um livro que estou preparando, A Alienação da Consciência. É uma resenha dos ataques teóricos e práticos dirigidos pelas doutrinas pseudocientíficas, em aliança com os governos totalitários ou com o establishmenttecnocrático, contra a autonomia da consciência individual. Foi este estudo, precisamente, que me levou à rejeição completa e taxativa de todo pensamento ideológico. Não me perguntem, portanto, em nome de que ideologia combato esta ou aquela ideologia.
Combato-a desde um plano que não é acessível ao pensamento ideológico, e que só existe para a autoconsciência individual, quando firmemente decidida a não abdicar de seu direito — e de seu dever — à verdade e à universalidade. Em consequência, também não me dirijo a ouvintes e leitores enquanto representantes desta ou daquela facção ou grupo, mas enquanto portadores de uma inteligência universalmente válida, capaz de sobrepor-se ao discurso de facções e grupos e julgá-lo objetivamente. Não converso com fantoches coletivos, mas com seres humanos, investidos da dignidade suprema da autoconsciência, que os torna imagens de Deus. Se, enquanto apegada à identidade biológica e sujeita portanto à ilusão passional, a consciência do indivíduo é pura Maya, por outro lado é somente o indivíduo, e não o aglomerado estatístico das coletividades, que pode ascender ao plano da universalidade onde é lícito dizer: Eu sou Brahman.
Rio, março de 1994.
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