SEXTA-FEIRA, JANEIRO 14, 2011
Um chavão comum reverberado por muitos juristas e advogados espalhados em nosso país é a de que a expansão da advocacia é uma consagração da democracia e do Estado de Direito. Faculdades pipocam por toda a nação para atender à procura desenfreada do direito e as escolas preparatórias de concursos pagam relativamente bem a professores, que ora são bacharéis, advogados, juízes, promotores, funcionários públicos. A crença comum se generaliza na hipótese de que a busca de conhecimentos jurídicos forma cidadãos mais conscientes de seus direitos, enquanto o aumento do número de advogados no mercado implicaria um amadurecimento da sociedade e do judiciário no quesito da resolução de problemas através da legalidade. A própria OAB(Ordem dos Advogados do Brasil) quase sempre se arroga a fiel defensora da democracia e das leis! A “democracia”, a“cidadania”, os “direitos humanos”, a “luta pelo direito”,enfim, o “direito”, são figuras de linguagem que dominam o palavrório vazio e pomposo, tanto dos acadêmicos de direito, como dos seus operadores.
No entanto, alguém deveria lembrar aos deslumbrados causídicos: o direito, como expressão jurídica do Estado, é coerção, é obrigatoriedade, é compulsoriedade. E fundamentalmente, a expansão da advocacia no Brasil tem menos a ver com a democratização do país do que com a própria expansão do Estado em vários setores da vida privada. De fato, é um paradoxo da democracia moderna: quanto mais esse sistema promete direitos, regalias, prerrogativas e “segurança” para a sociedade, mais cria ministérios, repartições, seções, secretarias e burocratas para controlá-la, fiscalizá-la e podá-la. E, naturalmente, quanto mais burocracia e leis, mais coerção e menos liberdade para a sociedade civil. E como entraria a advocacia, uma “profissão liberal”, no agigantamento do Estado democrático? É uma razão simples de entender: o advogado existe justamente em função das leis e quanto maior a complexidade, a incompreensão ou mesmo a incomensurabilidade caótica da legislação, mais o cidadão comum leigo precisará dessa classe iluminada de intermediários para resolver seus problemas com o Estado ou com o particular.
A expansão da advocacia e da legalidade não significa melhoras significativas das relações sociais: pelo contrário, o aumento cada vez maior de intermediários e de regras nas relações privadas acaba por destruir a sua espontaneidade, a sua voluntariedade e mesmo a sua resolução e eficácia. Cada prática civil que poderia ser resolvida diretamente pelas partes envolvidas acaba por ter vários elementos estranhos ou mesmo nocivos à resolução dessas atividades, ainda que tais intermediários se prestem a resolvê-los.
É claro que a coerção mínima é necessária ao cumprimento dos contratos e das leis, para coibir abusos, fraudes e trapaças e pacificar a vida social. É ingênuo acreditar numa mentalidade anárquica, em que sempre haverá voluntariedade ou honestidade nas ações privadas. A lei e a justiça devem ser coercitivas justamente para reprimir estes tipos desonestos ou criminosos. No entanto, o excesso de leis inúteis e de burocratas em nada ajuda nessa pacificação. Pelo contrário, tende a piorar os conflitos.
A perversidade da tão alardeada expansão da legalidade democrática gera uma alienação cada vez maior dos cidadãos comuns no que diz respeito à resolução de seus próprios problemas e das leis que regem suas vidas. E a advocacia acaba por ser um instrumento cada vez maior de intervenção do Estado na sociedade, uma vez que cada ação privada, cada atividade civil, torna-se aos olhos da legislação algo potencialmente irregular e delituoso, passível de processo. A militância jurídica dos advogados, por assim dizer, muitos antes de uma profissão liberal, acaba por ser uma atividade paraestatal, em que a legiferança complexa vigia, sufoca, sob o olhar inseguro da clientela amedrontada.
Mesmo assim, se os leigos desconhecem o calhamaço de leis que os governam, os advogados também não dão conta de toda a legislação do país. Cada lei, portaria, burocracia ou repartição pública motiva uma série de técnicos jurídicos, “especialistas”, em funções fragmentárias do direito. E com todo o exército de funcionários e causídicos, o direito e o judiciário não conseguem resolver uma boa parte dos conflitos da sociedade.
Os fóruns e tribunais acumulam pilhas e mais pilhas de processos inúteis, morosos, que duram anos e anos. A grande maioria custa caro aos cofres públicos e desespera àqueles que buscam a justiça. Quem poderá cobrar um crédito em processos que emperram cinco, dez ou até quinze anos? Quem poderá esperar segurança e proteção do Estado contra o crime, quando a impunidade domina a segurança pública e o judiciário?
Apesar de todos esses graves problemas, a solução milagrosa dos advogados, juízes e promotores é simplesmente formar mais advogados, juízes e promotores, além de criar novas leis e tribunais. A especialização dos advogados, como a especialização da própria burocracia estatal, vide o caso da fundação dos chamados “juizados especiais”, é uma tentativa extravagante de resolver o problema alimentando mais o problema. No final das contas, os juizados especiais também foram acumulados de processos lentos e o seu objetivo, que era o de tornar rápidas as questões judiciais, acabou por naufragar.
Alguém poderia afirmar que o acréscimo de advogados no mercado é reflexo do atendimento das necessidades da sociedade. Entretanto, é a mania jurídica do momento achar que cada caso concreto deva engendrar a formação de novas leis. E aí se escuta o jargão das chamadas “demandas sociais” da sociedade, na criação de novas regras. Ou melhor, de mais regras além daquelas que já existem. Paradoxalmente, tais leis são armadilhas para amarrar a sociedade e criar um estado social cada vez maior de ilegalidade. Ninguém se pergunta quem é que cria essas “demandas”. Cria-se uma falácia de que tais manifestações são espontâneas. É a sociedade? Ou são meia dúzia de advogados engajados na militância política, que criam essas manifestações?
Esse fenômeno não é restrito aqui. A expansão da advocacia nos Eua está de mãos dadas com a agigantamento do Estado e da burocracia. Isso ocorre quando os tribunais viram um campo para o ativismo político do advogado e quando juízes querem se tornar verdadeiros legisladores informais, à revelia dos órgãos legislativos. De fato, na tradição americana, onde o judiciário tem plena autonomia para interpretar leis dentro dos casos consagrados pela jurisprudência, a militância política instrumentaliza os tribunais para a expansão cada vez mais do controle estatal sobre a vida privada. Daí os maiores absurdos para a generalização de uma verdadeira indústria de processos. Os olhares dos vizinhos, a cantada de um galanteador para uma mulher mal amada, uma mosca num café de uma lanchonete, a expressão pública da religião ou de um pensamento, tudo isso transforma os cidadãos em reféns da malícia de seus concidadãos. A consequência disso é a destruição das relações espontâneas, voluntárias e a atomização dos indivíduos, medrosos com os olhares alheios, transmutados em verdadeiros braços invisíveis do Estado. O direito se torna instrumento ideológico repressivo, dentro da ditadura da cultura politicamente correta.
Essa tática também se aplica ao Brasil, quando uma militância jurídica, envolvida em ideologias revolucionárias e subversivas, tenta criar precedentes espúrios para forjar regras judiciais inexistentes na própria legalidade. Alguns promotores públicos já tentaram processar cidadãos pelo chamado crime de “homofobia”, ainda que tal tipificação legal nem exista. Outros tentam reconhecer o “casamento gay” na jurisprudência, ainda que a Constituição não reconheça esse tipo de relação como matrimonial. Outras entidades, sob inúmeros pretextos, em nome da saúde, da vigilância sanitária, da ecologia, criam portarias regulamentando o que os cidadãos comuns devem comer, plantar ou produzir. E os advogados e a OAB, ao invés de questionarem essas arbitrariedades contra o direito, na prática, parecem reconhecer e aprovar esse direito opressivo. Há, inclusive, uma teoria sobre essa militância: o chamado “direito alternativo”, onde juízes e principalmente advogados tentam inverter a interpretação da lei, como se fossem legisladores jurídicos, em causa própria. O pior de tudo é que o “direito alternativo” é abertamente totalitário: pretende revogar os direitos individuais ou mesmo deturpar os princípios constitucionais, para promover a causa socialista nos tribunais. No final das contas, os tribunais não são mais um palco da busca imparcial da justiça, mas da disputa política e da luta de classes. A politização do judiciário destrói o sentido de autonomia, isenção, e imparcialidade aplicável à justiça, para se transformar em novo instrumento arbitrário de poder de uma classe política militante. A lei, que serve para proteger o cidadão dos abusos dos particulares e do Estado, acaba por se tornar instrumento abusivo e contrário ao próprio direito.
“Democracia”, “Estado de Direito”, “cidadania”, “defesa dos direitos do cidadão”, simulacros estapafúrdios da política moderna, que geram uma distância cada vez mais infame entre o direito e a lei, entre o indivíduo e a justiça. Enquanto isso, o círculo vicioso da legalidade inútil e burocrática faz dos cidadãos comuns criaturas infantilizadas, eternamente dependentes dos iluminados protetores do direito, incapazes de resolver seus problemas por conta própria, aprisionadas que são pelas estripulias de uma jurisdição cada vez mais complexa e opressiva.
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