ASSIM É UM LÍDER
Nelson Rodrigues
O líder é um canalha. Dirá alguém que estou generalizando. Exato: estou generalizando. Vejam, por exemplo, Stalin. Ninguém mais líder. Lenin pode ser esquecido, Stalin, não. Um dia, os camponeses insinuaram uma resistência. Stalin não teve nem dúvida, nem pena. Matou, de forma punitiva, 12 milhões de camponeses. Nem mais, nem menos: – 12 milhões. Era uma maravilhoso canalha e, portanto, o líder opuro.
E não foi traído. Aí está o mistério que, realmente, não é mistério. É uma verdade historicamente demonstrada: – o canalha, quando investido de liderança, faz, inventa, aglutina e dinamiza as massas de canalhas. Façam a seguinte experiência: – ponham um santo na primeira esquina. Trepado num caixote, ele fala ao povo. Mas não convencerá ninguém, e repito: – ninguém o seguirá. Invertam a experiência e coloquem na mesma esquina, e em cima do mesmo caixote, um pulha indubitável. Instantaneamente, outros pulhas, legiões de pulhas, sairão atrás do chefe abjeto.
Mas, dizia eu que Stalin não foi traído, nem Hitler. O Führer, para morrer, teve de se matar. (Nem me falem do atentado dos generais grã-finos. Há uma só verdade: – nem o soldado alemão, nem o operário, nem o jovem, nem o velho, traíram Hitler.) E, quanto a Stalin, ninguém mais amado. Só Hitler foi tão amado. Aqui mesmo, no Brasil. Bem me lembro, durante a guerra, dos nossos stalinistas. Na queda de Paris, um deles veio-me dizer, de olho rútilo e lábio trêmulo: – “Hitler é muito mais revolucionário que a Inglaterra”.
Sim, o que se sentia, aqui, por Stalin, era uma dessas admirações hediondas. Eu via homens de voz grossa, barba cerrada, ênfase viril. Em cada um dos seus gestos, a masculinidade explodia. E, quando falavam de Stalin, eles se tornavam melífluos, como qualquer “travesti” do João Caetano ou do Teatro República. O que se sentia, por trás desse arrebatamento stalinista, era um amor quase físico, uma espécie de pederastia idealizada, utópica, sagrada. Com as mandíbulas trêmulas, uma salivação efervescente, os fanáticos chamavam o Guia de “o Velho”. E essa paixão era de um sublime ignóbil.
Já o Czar foi o antilíder. Há um quadro russo da matança da Família Imperial. (A pintura de lá, tanto a czarista, como a soviética, é puro Osvaldo Teixeira.) Eis o que nos mostra a tela: empilhados, numa bacanal de defuntos, o Czar, a Czarina, as princesinhas, etc., etc. Uns por cima dos outros, e cravejados de bala. Os soldados receberam a ordem e estouraram a cara dos velhos, das mocinhas, dos meninos. Mas não vamos assumir, aqui, nenhuma postura sentimental. Eis o que importa diser.
Na véspera de morrer, o nosso Nicolau entretinha-se na redação do seu diário. Fazia diário como qualquer heroína da Coleção das Moças. Reparem no antilíder, no anti-rei, no antitudo. No dia seguinte estariam à mostra os intestinos dele mesmo, as tripas da mulher, dos filhos, dos sobrinhos, dos netos. Mas ele não teve nenhum sentimento da morte. No jardim havia um “lago azul” como o da nossa canção naval. E, lá, dois ou três cisnes deslizavam mansamente. Um mundo já morria e outro ia nascer. E o Czar estava fascinado pelos cisnes, e a última página do diário era a eles dedicada. Um homem assim teria de ser exterminado a bala ou a pauladas, como uma ratazana.
Alguém lembrará a figura de Kennedy. Era um líder que preservava um mínimo de humanidade. Mas não era líder. Lembro-me da babá portuguesa da minha garotinha. Ao ver o retrato de Kennedy, gemeu com sotaque: – “Bonito como uma virgem”. Era um líder de luxo, isto é, um antilíder. Ao entrar na política, o pai, outro aristocrata, deu-lhe um cheque de um milhão de dólares. E mais: – Johnny casou-se com Jacqueline. E a mulher bonita é própria do falso líder. Nem Stalin, nem Hitler, fariam essa dupla concessão ao sentimento e ao sexo. Reexaminem toda a vida de Kennedy: – não foi, em momento nenhum de sua história e de sua lenda, um canalha. E não soube fazer pulhas para juntá-los em torno de sua liderança.
Pensem no pacto germano-soviético. Todos os que o aceitaram ou que ainda hoje o justificam eram e são perfeitos, irretocáveis canalhas. De um só lance, Stalin e Hitler degradaram toda uma época. Eis o que desejo ressaltar: – faltava a Kannedy essa capacidade de aviltar um povo. Ao passo que Stalin fez seu povo à imagem e semelhança da própria abjeção. Mas foi na morte que Kennedy demonstrou a ineficácia e falsidade de sua liderança.
O líder não morre antes, nem depois. O derrame escolheu a hora certa para matar Stalin. Hitler meteu uma bala na cabeça no momento justo em que precisava estourar os miolos. Waterloo aconteceu quando se esgotou a vitalidade histórica da era napoleônica. Se Lenin vivesse mais quinze dias, seria outro Trotski. E Kennedy caiu antes do tempo, morreu quando não tinha que morrer. Imaginem um cristo morto de coqueloche aos três anos. Não seria Cristo, não seria nada. Kennedy morreu ao lado da mulher bonita. E, de repente, veio a bala e arrancou-lhe o queixo, forte, crispado, vital. Restava tudo por fazer o horizonte da reeleição abria-se diante dele. Esta morte antes do tempo mostrou que Kennedy não era Kennedy. O amor que lhe consagramos é um equívoco.
Falo, falo, e não sei bem por que estou dizendo tudo isso. Agora me lembro, Eu disse algo parecido ontem, num sarau de grã-finos. Não achem graça. Aprende-se muito no grã-finismo, e repito: certos grã-finos têm um sutil faro histórico, diria melhor, profético. Sentem, por vezes, antes dos outros, o que eu chamaria “odor da História”. E um desses estava-me dizendo, num canto, com uma convicção forte: – “Vai haver o diabo neste país”. Disse e fez um “suspense”. Instiguei-o: – “O diabo, como?” E ele, misterioso: – “Você não sente que vem por aí não sei o quê?” Esse “não sei o quê” era pouco para a minha fome. O grã-fino punha mais gelo no copo. Insinuou: – “”Há muita insatisfação”. Ainda era pouco. E eu queria saber, concretamente, o que vinha por aí. Perguntei: – “Sangue?” E o outro: cara a cara comigo e um ar de quem promete hemorragia nacional inédita: – “Sangue”.
Todavia, o “suspense” continuava. “Sangue”, dissera ele. Mas, quem ia derramar o sangue, e que sangue? Ainda olhei para os lados, como a procurar, entre os convidados, um possível Drácula. Quando, porém, o grã-fino falou em “esquerda”, a minha perplexidade não teve mais tamanho. Recuei dois passos avancei outros tantos e perguntei: – “Você acredita na nossa esquerda? Nessa que está aí?”
Ele acreditava. Então perdi a paciência e falei sem parar, Quem ia mudar qualquer coisa neste País? A esquerda tem um canalha para exercer uma liderança concreta e proveitosa? Senhoras entraram no debate. Fez-se, ali, uma alegre pesquisa de pulhas. Mas os canalhas lembrados eram, ao mesmo tempo, imbecis. E o que a história pedia era um crápula com seu toque de gênio. Em suma: não ocorria aos presentes um nome válido. A última palavra foi minha. Disse eu mais ou menos o seguinte: – enquanto a esquerda que aí está não for substituída até seu último idiota, não vai acontecer nada, rigorosamente nada.
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Crônica publicada no Jornal O Globo em 9 de janeiro de 1968. Retirato da Coluna de Augusto Nunes
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