Do portal BRASIL ACIMA DE TUDO
21 de julho de 2008
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Editorial, Estadão (*)
Não é incomum um chefe de governo cometer gafes no estrangeiro, em razão de distrações - como a de Reagan, em visita a Brasília, confundindo o Brasil com a Bolívia -, de estudada deliberação, com propósitos políticos - como de De Gaulle, no Canadá, referindo-se ao 'Quebec Livre' -, e até do descuido preconceituoso, como o que levou o presidente Lula a dizer, numa cidade africana, que esta 'era tão limpa que nem parecia África'. Mas o que sucedeu na visita do presidente Lula ao Vietnã foi uma gafe absolutamente extemporânea, um remexer gratuito de ferida, constrangedor para as autoridades vietnamitas e desconfortável para a diplomacia norte-americana.
Ao visitar o general Vo Nguyen Giap (de 98 anos), estrategista militar que levou às vitórias contra a França e os Estados Unidos, o presidente Lula lhe disse que 'todos aqueles que amam a democracia' o tinham 'como referência'. Certamente, entre todos os elogios que já ouviu em sua vida, o provecto militar jamais fora brindado com uma referência a serviços prestados à causa da democracia - e é improvável até que quem sempre pertenceu aos quadros de um partido totalitário e fez parte de um governo despótico entendesse a referência. Mas nosso presidente não se contentou com apenas esta exibição de desinformação histórica, política e cultural.
Numa entrevista coletiva, depois de dizer que no começo dos anos 60 era despolitizado, mas, como corintiano (já que 'o Corinthians vivia uma época difícil'), aprendera a 'ficar do lado dos fracos e oprimidos', deu a sua versão da Guerra do Vietnã: 'Os vietnamitas eram baixinhos, magrinhos, contra os americanos, fortes, alimentados com hambúrguer.' Os desavisados poderiam até pensar que o governante brasileiro estaria a propagar os méritos da tão criticada junk food norte-americana ou fazendo o elogio disfarçado do principal produto da odiada McDonald's. Mas o que causa estranheza maior do que a atribuição de características de 'força' ou 'fraqueza' de povos em guerra, em razão do peso e do tamanho das pessoas - e isso diante de um homem que não deve passar muito do metro e meio de altura -, é a impressão de tratar uma grande tragédia, como foi a Guerra do Vietnã (na qual morreram 58 mil norte-americanos e cerca de 3 milhões de vietnamitas do sul e do norte), como se fosse uma disputa entre seleções de futebol, nos termos: 'Não é pouco para um povo derrotar franceses e norte-americanos no mesmo século.'
É claro que nem o presidente do Vietnã nem qualquer outra autoridade vietnamita fizeram qualquer referência a 'vitórias' passadas contra países com os quais, já há muito tempo, procuram intensificar suas relações comerciais - e nisso o Vietnã trilha o caminho do desenvolvimento, aberto pela China, pela via do relacionamento com o mundo capitalista. Observe-se que há um entendimento tácito, entre as diplomacias dos Estados contemporâneos, de que referências a conflitos passados só têm sentido quando destes ficaram questões por resolver. Entre EUA e Vietnã inexistem tais pendências - ao contrário, há um acordo comercial bilateral desde 2000 - e muito menos sentido haveria em o Brasil intrometer-se nessa história. País algum aprecia que se rememorem suas derrotas - especialmente a maior potência militar do mundo, que teve na Guerra do Vietnã o período mais constrangedor de sua história.
É fundamental que um chefe de governo só se pronuncie sobre assuntos que envolvam outros povos quando essa referência sirva a um objetivo - político ou comercial - de estreitamento da relação bilateral. Não se admite, entre governantes, a conversa gratuita, tal como os bate-papos entre amigos que não precisam ter escopo ou conseqüência. O que será dito por um governante no exterior necessita de um acurado preparo prévio, com assessoramento diplomático, para que não derive apenas de suas recordações pessoais ou velhas idiossincrasias. Isso quer dizer que não é o fato de Bush ter beijado a face barbuda de Lula na véspera, no encontro do G-8 no Japão, que eliminaria o mal-estar da diplomacia norte-americana ante o que disse o presidente no Vietnã.
(*) Fonte: http://www.estado.com.br/editorias/2008/07/13/edi-1.93.5.20080713.1.1.xml
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