quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
O professor que sucedeu ao fundador da Irmandade Muçulmana, Hasan al-Banna, inspirou vários terroristas, mas as suas obras doutrinais também contribuíram para dividir a organização mais poderosa do Egipto depois do Exército. E a sua Ikhwan já não é o movimento radical que ele liderou.
Em Novembro de 1948, quando o rei Farouk ordenou a sua prisão, forçando-o a uma apressada partida para os Estados Unidos, Sayyid Qutb, o ideólogo da Irmandade Muçulmana, interrogava-se: “Devo ir para a América, como qualquer outro estudante com uma bolsa de estudos, que só come e dorme, ou devo ser especial? Devo manter-me fiel aos meus princípios islâmicos, enfrentando muitas tentações pecaminosas, ou devo ser indulgente com essas tentações à minha volta?”
Nesta viagem de Alexandria para Nova Iorque, descrita por Lawrence Wright emAs Torres do Desassossego, o fervoroso nacionalista e anticomunista Qutb nem sequer se considerava muito religioso. Havia muito de “ocidental” na sua maneira de ser e agir – “o vestuário, o gosto pela música clássica e filmes de Hollywood. Lera as obras traduzidas de Darwin e Einstein, Byron e Shelley, e imergira profundamente na Literatura francesa, sobretudo Victor Hugo.”
Em todo o caso, Qutb já se mostrava preocupado com “o avanço da civilização ocidental”, que ele via como uma entidade cultural única. “As distinções entre capitalismo e marxismo, cristianismo e judaísmo, fascismo e democracia eram insignificantes, comparadas com a grande divisão presente na mente de Qutb: o islão no Oriente, de um lado; o Ocidente cristão, do outro”, sublinhou Wright.
De início, a América atraía Qutb, um país que ele considerava “assente em valores” e não nas “noções europeias de superioridade e de classes e raças privilegiadas”, uma nação de imigrantes “permeável a relações com o resto do mundo”, incluindo os árabes. Isso mudou quando o Presidente Henry Truman decidiu apoiar a “causa sionista” e um “lar nacional” para os judeus na Palestina. Quando Qutb seguia para Nova Iorque, o seu Egipto e outros países árabes estavam na fase final de uma guerra que perderam e estabeleceu o Estado de Israel, em 1948. “Odeio e desprezo todos esses ocidentais”, escreveu Qutb. “Todos eles, sem excepção, os ingleses, os holandeses e, também, os americanos, em quem tantos confiavam.”
Qutb era um solteirão casto e conservador. Tinha três irmãs mas a única mulher que realmente o influenciou foi a sua mãe, Fatima, analfabeta e devota que se sacrificou pela formação académica do filho. O pai morrera em 1933 quando Qutb tinha 27 anos. Para sustentar a família, deu aulas em várias escolas provinciais, até se mudar para Helwan, um bairro próspero do Cairo para onde todos foram viver.
Deixar o aconchego do lar acentuou o sentimento de isolamento e solidão de Qutb (expresso em várias cartas a amigos) quando ele se mudou para Nova Iorque e depois Washington (onde estudou Inglês no Wilson Teachers College) e Greeley/Colorado. A sua chegada coincidiu com a publicação do relatório “Sexual Behavior in the Human Male”, de Alfred Kinsey, um documento repleto de estatísticas que chocaram a própria sociedade norte-americana. Kinsey revelava, por exemplo, que 69 por cento dos homens confessaram ter pago sexo com prostitutas e 37 por cento admitiram ter mantido relações homossexuais.
Para Qutb, esta imagem de um “país lascivo”, combinada com a de um “país racista”, que discriminava os negros e os “homens de cor” como ele, reforçou o seu cada vez maior fundamentalismo religioso. Em Fevereiro de 1949, quando Qutb foi internado no Hospital da Universidade de George Washington para extrair as amígdalas, os noticiários davam conta da morte de Hasan al-Banna, o carismático fundador da Sociedade dos Irmãos Muçulmanos (al-Ikhwan al-Muslimun), mais conhecida como Irmandade (al-ikhwān). Foi um “choque profundo” para Qutb, ainda nunca que nunca tivesse sido membro da confraria nem conhecesse, pessoalmente, al-Banna, mas ambos frequentaram a mesma escola de formação de professores, em épocas diferentes, e admiravam-se mutuamente.
“A voz de Banna foi silenciada quando ‘Justiça Social no Islão’, da autoria de Qutb, estava a ser publicado – o livro que lhe daria a reputação de importante pensador islâmico”, realçou Wright. A morte de al-Banna representou um ponto de viragem. A 20 de Agosto de 1950, Qutb regressou ao Egipto para assumir a liderança da Irmandade e reforçar a estrutura de células clandestinas, “difíceis de detectar e impossíveis de erradicar”, envolvida numa série de ataques e homicídios. Em Julho de 1952, os Oficiais Livres, de Gamal Abdel Nasser, derrubaram a monarquia e Qutb escreveu uma carta aos novos dirigentes pedindo a instauração de uma “ditadura justa”. Nasser convidou Qutb para conselheiro do Conselho do Comando Revolucionário, mas ele recusou. Também declinou ser ministro da Educação ou director-geral da Rádio do Cairo. Nasser queria um regime militar, socialista, secular, industrializado e pan-árabe; Qutb queria “mudar a sociedade da base ao topo, impondo valores islâmicos em todos os aspectos da vida, através da aplicação rigorosa da ‘Shariah’ – menos que isto não era islão”.
A única coisa de comum entre ambos, sublinhou Wright, “era a grandeza das visões respectivas”. Qutb foi preso por ordem de Nasser, pela primeira vez, em 1954, mas foi libertado, três meses depois, e foi editar a revista da Irmandade, “al-Ikhwan al-Muslimun”. Os seus artigos críticos enfureceram Nasser e, em 1954, a revista foi encerrada. A “guerra ideológica” entre os dois atingiu o pico na noite de 26 de Outubro de 1954 quando Nasser foi ferido a tiro, por um activista da Irmandade, no momento em que discursava perante uma multidão concentrada numa praça pública em Alexandria.
Ao sobreviver, Nasser tornou-se herói e Qutb um mártir. Foi preso e torturado na prisão, mas foi também aqui, sofrendo de tuberculose, pneumonia e bronquite, que escreveu cinco das suas oito obras doutrinais. A mais importante foi “Ma’alim fia l-Tariq”, divulgada e traduzida no exterior, depois de sair, folha a folha, clandestinamente, da sua cela numa enfermaria. Aquele livro foi a única prova apresentada em tribunal para o condenar à morte, em 19 de Abril de 1966.
Ao ouvir o veredicto, Qutb exclamou: “Graças a Deus. Fiz a 'jihad' durante 15 anos e mereci este martírio.” As ruas do Cairo encheram-se de manifestantes, em protestos contra a iminente execução. Nasser enviou o seu vice-presidente, Anwar el-Sadat, ao hospital prisional onde Qutb estava internado, para o convencer a recorrer da sentença. Prometeram-lhe que seria perdoado, e até promovido a ministro da Educação. Uma irmã de Qutb pediu-lhe que cedesse. Ele recusou, e justificou: “As minhas palavras serão mais fortes se eles me matarem.”
Em 29 de Agosto de 1996, Qutb foi enforcado após a primeira oração matinal. O seu corpo não foi entregue à família, porque as autoridades temiam que o túmulo se tornasse centro de peregrinação. A "jihad" de Qutb não terminaria, porém, nessa alvorada.
(Dados extraídos do “Novo Dicionário do Islão”, de Margarida Santos Lopes, Ed. Oficina do Livro)
Nesta viagem de Alexandria para Nova Iorque, descrita por Lawrence Wright emAs Torres do Desassossego, o fervoroso nacionalista e anticomunista Qutb nem sequer se considerava muito religioso. Havia muito de “ocidental” na sua maneira de ser e agir – “o vestuário, o gosto pela música clássica e filmes de Hollywood. Lera as obras traduzidas de Darwin e Einstein, Byron e Shelley, e imergira profundamente na Literatura francesa, sobretudo Victor Hugo.”
Em todo o caso, Qutb já se mostrava preocupado com “o avanço da civilização ocidental”, que ele via como uma entidade cultural única. “As distinções entre capitalismo e marxismo, cristianismo e judaísmo, fascismo e democracia eram insignificantes, comparadas com a grande divisão presente na mente de Qutb: o islão no Oriente, de um lado; o Ocidente cristão, do outro”, sublinhou Wright.
De início, a América atraía Qutb, um país que ele considerava “assente em valores” e não nas “noções europeias de superioridade e de classes e raças privilegiadas”, uma nação de imigrantes “permeável a relações com o resto do mundo”, incluindo os árabes. Isso mudou quando o Presidente Henry Truman decidiu apoiar a “causa sionista” e um “lar nacional” para os judeus na Palestina. Quando Qutb seguia para Nova Iorque, o seu Egipto e outros países árabes estavam na fase final de uma guerra que perderam e estabeleceu o Estado de Israel, em 1948. “Odeio e desprezo todos esses ocidentais”, escreveu Qutb. “Todos eles, sem excepção, os ingleses, os holandeses e, também, os americanos, em quem tantos confiavam.”
Qutb era um solteirão casto e conservador. Tinha três irmãs mas a única mulher que realmente o influenciou foi a sua mãe, Fatima, analfabeta e devota que se sacrificou pela formação académica do filho. O pai morrera em 1933 quando Qutb tinha 27 anos. Para sustentar a família, deu aulas em várias escolas provinciais, até se mudar para Helwan, um bairro próspero do Cairo para onde todos foram viver.
Deixar o aconchego do lar acentuou o sentimento de isolamento e solidão de Qutb (expresso em várias cartas a amigos) quando ele se mudou para Nova Iorque e depois Washington (onde estudou Inglês no Wilson Teachers College) e Greeley/Colorado. A sua chegada coincidiu com a publicação do relatório “Sexual Behavior in the Human Male”, de Alfred Kinsey, um documento repleto de estatísticas que chocaram a própria sociedade norte-americana. Kinsey revelava, por exemplo, que 69 por cento dos homens confessaram ter pago sexo com prostitutas e 37 por cento admitiram ter mantido relações homossexuais.
Para Qutb, esta imagem de um “país lascivo”, combinada com a de um “país racista”, que discriminava os negros e os “homens de cor” como ele, reforçou o seu cada vez maior fundamentalismo religioso. Em Fevereiro de 1949, quando Qutb foi internado no Hospital da Universidade de George Washington para extrair as amígdalas, os noticiários davam conta da morte de Hasan al-Banna, o carismático fundador da Sociedade dos Irmãos Muçulmanos (al-Ikhwan al-Muslimun), mais conhecida como Irmandade (al-ikhwān). Foi um “choque profundo” para Qutb, ainda nunca que nunca tivesse sido membro da confraria nem conhecesse, pessoalmente, al-Banna, mas ambos frequentaram a mesma escola de formação de professores, em épocas diferentes, e admiravam-se mutuamente.
“A voz de Banna foi silenciada quando ‘Justiça Social no Islão’, da autoria de Qutb, estava a ser publicado – o livro que lhe daria a reputação de importante pensador islâmico”, realçou Wright. A morte de al-Banna representou um ponto de viragem. A 20 de Agosto de 1950, Qutb regressou ao Egipto para assumir a liderança da Irmandade e reforçar a estrutura de células clandestinas, “difíceis de detectar e impossíveis de erradicar”, envolvida numa série de ataques e homicídios. Em Julho de 1952, os Oficiais Livres, de Gamal Abdel Nasser, derrubaram a monarquia e Qutb escreveu uma carta aos novos dirigentes pedindo a instauração de uma “ditadura justa”. Nasser convidou Qutb para conselheiro do Conselho do Comando Revolucionário, mas ele recusou. Também declinou ser ministro da Educação ou director-geral da Rádio do Cairo. Nasser queria um regime militar, socialista, secular, industrializado e pan-árabe; Qutb queria “mudar a sociedade da base ao topo, impondo valores islâmicos em todos os aspectos da vida, através da aplicação rigorosa da ‘Shariah’ – menos que isto não era islão”.
A única coisa de comum entre ambos, sublinhou Wright, “era a grandeza das visões respectivas”. Qutb foi preso por ordem de Nasser, pela primeira vez, em 1954, mas foi libertado, três meses depois, e foi editar a revista da Irmandade, “al-Ikhwan al-Muslimun”. Os seus artigos críticos enfureceram Nasser e, em 1954, a revista foi encerrada. A “guerra ideológica” entre os dois atingiu o pico na noite de 26 de Outubro de 1954 quando Nasser foi ferido a tiro, por um activista da Irmandade, no momento em que discursava perante uma multidão concentrada numa praça pública em Alexandria.
Ao sobreviver, Nasser tornou-se herói e Qutb um mártir. Foi preso e torturado na prisão, mas foi também aqui, sofrendo de tuberculose, pneumonia e bronquite, que escreveu cinco das suas oito obras doutrinais. A mais importante foi “Ma’alim fia l-Tariq”, divulgada e traduzida no exterior, depois de sair, folha a folha, clandestinamente, da sua cela numa enfermaria. Aquele livro foi a única prova apresentada em tribunal para o condenar à morte, em 19 de Abril de 1966.
Ao ouvir o veredicto, Qutb exclamou: “Graças a Deus. Fiz a 'jihad' durante 15 anos e mereci este martírio.” As ruas do Cairo encheram-se de manifestantes, em protestos contra a iminente execução. Nasser enviou o seu vice-presidente, Anwar el-Sadat, ao hospital prisional onde Qutb estava internado, para o convencer a recorrer da sentença. Prometeram-lhe que seria perdoado, e até promovido a ministro da Educação. Uma irmã de Qutb pediu-lhe que cedesse. Ele recusou, e justificou: “As minhas palavras serão mais fortes se eles me matarem.”
Em 29 de Agosto de 1996, Qutb foi enforcado após a primeira oração matinal. O seu corpo não foi entregue à família, porque as autoridades temiam que o túmulo se tornasse centro de peregrinação. A "jihad" de Qutb não terminaria, porém, nessa alvorada.
(Dados extraídos do “Novo Dicionário do Islão”, de Margarida Santos Lopes, Ed. Oficina do Livro)
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