Paulo Diniz Zamboni - 2/7/2009 - 21h40
Se um governante de esquerda é eleito, pode fazer o que quiser, inclusive abrir as portas para uma ditadura, desde que faça tudo dentro de uma suposta legalidade.
A reação dos governos latino-americanos e de Washington à deposição do presidente hondurenho Manuel Zelaya – ignorando maciçamente o fato de que foi Zelaya quem agiu fora da lei, ao insistir numa manobra obscura para promover um referendo considerado ilegal – parece confirmar que os movimentos políticos na América Latina estão interligados, num esquema previamente traçado e onde nenhum tipo de distúrbio pode acontecer. Isso comprovaria uma das principais teses contidas numa pesquisa da qual tenho participado e que tem como objetivo estudar a organização de extrema esquerda latino-americana Foro de São Paulo (FSP), tentando descobrir até que ponto esse organismo influencia a política do continente.
O FSP funciona como uma "base de retaguarda", onde as esquerdas radicais discutem seus objetivos, modus operandi e podem se refugiar quando estão fora do poder, inclusive se retroalimentando de slogans e discursos radicais, necessários para animar a militância do baixo clero – sequiosa por ouvir sobre as "injustiças do capitalismo" e como é possível criar uma "alternativa socialista para a globalização dominante no século 21", além de ser um núcleo de onde as esquerdas radicais têm retirado elementos para participar do jogo político e social.
Entretanto, a reação aos acontecimentos que levaram à deposição de Manuel Zelaya reforça uma outra impressão: a de que o FSP não é a principal força motora do avanço das esquerdas na América Latina, onde vários países, incluindo o Brasil, são governados por partidos ligados a essa organização.
O mais correto seria afirmar que quem dá as cartas do jogo são elites internacionalistas, sobretudo norte-americanas, que se utilizam de elementos do FSP para seus objetivos.
Uma dessas organizações internacionalistas é o Diálogo Interamericano, que há décadas busca promover políticas que favoreçam a "democratização, estabilidade e prosperidade" do continente. E, para que isso seja atingido, um fator parece ser o de maior importância: que os grupos políticos devam chegar ao poder e controlá-lo pela via eleitoral. Ou seja: uma abordagem teoricamente muito positiva para um continente marcado por guerrilhas, terrorismo e regimes de força.
Na prática, contudo, o que tem sido visto é que forças de esquerda acabam se tornando a única ou pelo menos a principal alternativa eleitoral. E, não raro, esses governos são formados por quadros de antigas organizações guerrilheiras marxistas ou elementos de índole claramente autoritária, que num passado não muito distante pregavam exatamente a destruição da democracia.
Isso é notório na Venezuela, onde Hugo Chávez tentou um golpe de Estado quando ainda era oficial do exército; na Nicarágua, onde o atual presidente, Daniel Ortega, sempre teve relação íntima com as ditaduras soviética e cubana, tendo sido ele próprio ditador na década de 1980; e em El-Salvador, onde a FMLN, após mais de uma década de sangrenta guerra civil, passou a disputar as eleições que sempre combateu, para citar alguns exemplos. A neutralização eleitoral de políticos descolados deste perfil tem sido uma constante desde então, além da manutenção e estímulo à agenda de organizações não-governamentais e paraestatais de esquerda.
Também não parece ser mera coincidência que se multiplique a seguinte situação: tão logo chegue ao poder e surjam as condições adequadas, um político ligado ao FSP se mobiliza para realizar um referendo que avalize agendas políticas e/ou sociais defendidas pela extrema esquerda, cujos resultados, por sua vez, são legitimados por organizações estrangeiras ligadas direta ou indiretamente aos interesses internacionalistas. Foi assim na Venezuela, no Equador e Bolívia. Mesmo no Brasil, situações como o referendo sobre o desarmamento e a recorrente idéia de um novo mandato para o presidente Lula (ele próprio um homem de destaque no FSP) encaixam-se neste perfil.
Tais referendos, onde massas de manobra cooptadas pelo poder estatal podem facilmente ser utilizadas para direcionar resultados, têm servido com variados graus de intensidade para legitimar o fortalecimento do Estado, que passa a exercer um maior controle dos meios de produção, estimula aparatos de violência diversificados, elimina os canais de liberdade de expressão ou os reduz a quase impotência – além de investir maciçamente em propaganda, contra-informação e agentes de influência internacionais, com os regimes envolvidos nessa operação se autolegitimando e protegendo.
Aparentemente, a manutenção desse quadro é interessante para os grupos internacionais com os quais as esquerdas latino-americanas possuem ligações, porque são as esquerdas quem melhor podem atender a agenda desses grupos. Não cabe detalhar aqui quais são os pontos desta agenda, mas incluem itens como controle populacional, desarmamento e políticas econômicas baseadas no aumento da presença estatal.
Assim, o retrospecto da América Latina desde o começo da década de 1990 demonstra que uma estabilidade política forçada foi alcançada, tendo um tipo de panaceia eleitoral, onde as eleições são um fim em si mesmo, como legitimador de todo o processo.
Os governos de Jean Bertrand Aristide, no Haiti, e do próprio Hugo Chávez, foram alvo de movimentos militares inicialmente bem sucedidos que tiveram de voltar atrás e reempossar os líderes depostos. Alberto Fujimori foi tolerado durante anos no Peru após dar um golpe de Estado, mas isso quase certamente foi devido à necessidade de se conseguir um mínimo de estabilidade para o país, assolado por violentos movimentos terroristas. Tão logo foi atingido o objetivo, Fujimori saiu de cena e hoje está numa prisão. Por outro lado, quem pode dizer o mesmo de um Daniel Ortega ou Hugo Chávez –- para não falar do patrono do FSP, o velho ditador Fidel Castro – levando à inevitável pergunta: dentre os motivos que explicam a longevidade e mutação dos regimes/organizações de esquerda está incluído o fato de que oferecem resultados mais interessantes para alguém?
Portanto, não seria nenhuma surpresa se ocorresse uma reviravolta e Zelaya retornasse ao poder – mesmo tendo cometido uma série irregularidades e tenha sido deposto por um movimento legítimo, em defesa da própria Constituição – porque há um script previamente combinado difícil de ser quebrado e que afirma basicamente o seguinte:
se um governante de esquerda é eleito, pode fazer o que achar melhor – inclusive abrir as portas para uma ditadura – bastando que tudo seja feito dentro de uma suposta legalidade.
Se uma reviravolta acontecer em Honduras, resta saber o efeito que terá em outros países, como El Salvador, e mesmo no Brasil, às voltas com um processo eleitoral em que a ideia de um terceiro mandato é um segredo de polichinelo.
Paulo Diniz Zamboni é formado em História, colabora com o site www.midiaamais.com.br e foi organizador do livro Conspiração de Portas Abertas, coletânea de artigos sobre o Foro de São Paulo.
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