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segunda-feira, 13 de julho de 2009

Direito, legislação e liberdade: a obra-prima de Hayek


Bruno Meyerhof Salama (Professor, Direito GV)
Lucas Mendes (Mestrando em Filosofia Política, UFSM)

Alguns gênios se notabilizam por seu magnum opus; outros, por suas obras de divulgação. Friedrich Hayek, tornado famoso mesmo nos círculos intelectuaisprincipalmente por O caminho da servidão (1944), pertence a este segundo grupo. A obra mais fascinante de Hayek, contudo, é Direito, legislação e liberdade. O compêndio de três volumes, publicados respectivamente em 1973, 1976 e 1979, contém um apanhado geral dos princípios filosóficos orientadores de sua extensa carreira intelectual.

Em 1974, o comitê responsável pela indicação do prêmio Nobel de economia daquele ano para Friedrich Hayek e Gunnar Myrdal notou que o prêmio estava sendo dado não apenas pelo trabalho naquilo que se poderia chamar de economia “pura”, mas também pela “penetrante análise da interdependência entre os fenômenos econômico, social e institucional”. [1] Alçado assim à condição de estrela, o estudo de Hayek ganhou novo impulso. E, de fato, um dos mais importantes legados de Hayek diz respeito às suas teorias sociais, filosóficas e jurídicas sistematizadas em Direito, legislação e liberdade.

Nascido em 1899, Hayek realizou seus estudos em Viena após a Primeira Guerra Mundial. Obteve dois doutorados, primeiro em direito, em 1921, e logo a seguir em economia, em 1923. Na década de 1920, Hayek interessou-se pela obra de Mises, e foi diretor do Instituto Austríaco para Pesquisa dos Ciclos de Negócios. O trabalho de Hayek sobre os ciclos econômicos atraiu a atenção de Lionel Robbins, e em 1931 a London School of Economics lhe ofereceu uma posição de professor. Em Londres, Hayek destacou-se entre o grupo de acadêmicos imigrantes. Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, Hayek organizou a célebre conferência de Mont Pèlerin, na Suíça, da qual participaram gigantes como Karl Popper, Ludwig von Mises e Milton Friedman, dentre muitos outros, e cujo objetivo central foi defender os valores de uma sociedade aberta e uma economia política calcada no livre mercado como bases para a para a reconstrução européia no pós-guerra.

Em 1950, Hayek foi convidado a integrar os quadros da Universidade de Chicago, e é deste período que datam suas contribuições que aqui mais nos vão interessar. Destacam-se suas reflexões a respeito das possibilidades de que as ciências sociais pudessem prover respostas “cientificamente” corretas para problemas; Hayek entendia que não: as questões postas às ciências sociais são questões de políticas públicas. As escolhas que se faz na condução da política pública devem ser prospectivas (ao invés de meramente reativas), mas devem ter em conta a estrutura social do mundo a que as escolhas tendem a criar. Nada disso torna a política pública e a atividade do intelectual mais simples.

Trabalhando em Chicago, Hayek notabilizou-se como opositor do alargamento das fronteiras econômicas do Estado, da restrição da liberdade individual, do ativismo macroeconômico e, acima de tudo, do planejamento estatal. Comentando a obra de Hayek em livro recente, Douglass North notou que “Hayek estava certamente correto ao dizer que nosso conhecimento é sempre, e na melhor das hipóteses, fragmentário, e seus estudos pioneiros sobre as ciências cognitivas forneceram a fundação para lidarmos com as imperfeições de nosso entendimento. Mas Hayek não entendeu que nós não temos escolha [e precisamos] fazer engenharia social, ainda que certamente concordemos com seu argumento vencedor [na disputa com] os planejadores socialistas a respeito da eficácia [superior] do sistema de preços sobre as alternativas.” [2]

A questão da suposta inevitabilidade da engenharia social e do paternalismo estatal estão então postas. Hayek oferecerá uma poderosa negação da sua necessidade. Caberá ao leitor ponderar sobre o tema.

O presente artigo apresenta um projeto de exame de Direito, legislação e liberdade. A ideia é trazer à apreciação do leitor brasileiro uma resenha mensal sobre cada um dos 18 capítulos da obra, e de seu epílogo logo a seguir. A leitura dessas resenhas, naturalmente, não substitui a leitura do livro; ao contrário, deve encorajá-la. Ler a obra em português, contudo, não é tarefa fácil. A tradução brasileira, publicada em 1985 pela Editora Visão, há muito está esgotada (HAYEK, Friedrich A. Direito, legislação e liberdade. São Paulo: Visão, 1985. Tradução Henry Maksoud). Encontrá-la é quase impossível, não apenas para quem percorre os sebos empoeirados, mas também para quem se dispõe a varrer os sítios de buscas na internet. Tudo se torna mais complicado, é claro, quando nos deparamos com a legislação de propriedade intelectual brasileira, que veda a feitura de cópias de obras esgotadas – mesmo nas universidades.

Estas resenhas se justificam também pela existência de pelo menos dois obstáculos adicionais. O primeiro tem a ver com o estilo da obra: Direito, legislação e liberdade tem uma escrita pesada, às vezes repetitiva, e predominantemente (e talvez excessivamente) abstrata. O segundo diz respeito ao fato de que o nome de Hayek esteve imbricado em diversas controvérsias políticas, e acabou por vezes sendo associado a visões políticas que distintas das suas próprias. Para ficarmos com o exemplo mais evidente, e a despeito da sua desconfiança da ação do estado, não nos parece que Hayek seja um defensor do chamado estado mínimo.

* * *

Direito legislação e liberdade – Comentários à Introdução (pp. 39 – 46)

Os princípios do constitucionalismo liberal remontam a Hume e Smith, e sistematizam-se em Montesquieu. Segundo Hayek (1985, p. 39), tais princípios visavam “estabelecer salvaguardas institucionais à liberdade individual”. O meio institucional vislumbrado pelos pensadores do século XVIII e XIX era a divisão dos poderes entre legislativo, judiciário e executivo.

Hayek, todavia, alerta que esse sistema triparte, em que pese seu nobre objetivo, fracassou flagrantemente. Tal fracasso decorreria dos meios (a divisão dos poderes) que, na prática, ter-se-iam mostrado ineficazes. Ao longo da história, o constitucionalismo não fora capaz de limitar os poderes do governo e nem, consequentemente, de salvaguardar a liberdade individual. “A meu ver, seus objetivos permanecem válidos como sempre o foram”, afirma Hayek, “mas, já que os meios de que lançaram mão se mostraram inadequados, faz-se necessário inovar no campo institucional” (p. 40).

Em The Constitution of Liberty (1960), Hayek pretendeu reformular a doutrina tradicional do constitucionalismo liberal. Mas em seguida se deu conta do motivo pelo qual os ideais liberais não haviam logrado preservar a adesão dos idealistas políticos. E, talvez mais importante, Hayek compreendeu quais as convicções dominantes em nossa época que se revelaram incompatíveis com o ideal constitucionalista. O filósofo detectou três principais ideias reativas do ideal liberal da limitação dos poderes governamentais, sendo elas:

1ª – a perda da fé numa justiça desvinculada do interesse pessoal;

2ª – o emprego da legislação como forma de autorizar a coerção, não só para impedir a ação injusta, mas para garantir determinados resultados a pessoas e grupos específicos;

3ª – a fusão, nas mesmas assembleias legislativas, de duas tarefas: a) formular normas de conduta justa e b) dirigir o governo.

Nesse sentido, a tarefa à qual Hayek se propõe em Direito, legislação e liberdade é a de esclarecer três ideias fundamentais para a preservação de uma sociedade verdadeiramente livre.

A primeira diz respeito à noção de “ordem espontânea” em contraste com a de “organização”. Para Hayek (p. 41), “essa distinção está relacionada aos dois tipos de normas ou leis que predominam em cada uma delas”.

A segunda é atinente ao que se convencionou chamar de “justiça social” – exigências distributivistas. Para o filósofo, uma exigência desse tipo “só tem sentido no interior da segunda dessas duas formas de ordem, a organização, mas não tem sentido algum na ordem espontânea” [3] (p. 41).

Por fim, Hayek se refere à ideia do modelo contemporâneo de “instituição democrática liberal”. Hayek (p. xli) assevera que nas democracias de seu tempo, “um mesmo organismo representativo estabelece as normas de conduta justa e dirige o governo”. O filósofo afirma que tal estrutura “leva necessariamente à transformação gradual da ordem espontânea de uma sociedade livre em um sistema totalitário posto a serviço de alguma coalizão de interesses organizados”.

Hayek, entretanto, pretende mostrar que essa transformação não deriva da democracia enquanto tal, mas é “resultado daquela forma específica de governo com poderes ilimitados com a qual a democracia passou a ser identificada” (p. 41).

Assim, Hayek se apresenta como um reformador democrático, concentrando a solução para o declínio do sistema democrático contemporâneo no arranjo institucional, através de um “modelo constitucional”, tema tratado em detalhes no volume III da obra.

O diagnóstico hayekiano da decadência da democracia (o “democratismo”) se revela através do seguinte resultado: a democracia tornou-se um sistema que favorece a formação de grupos de interesses que, por sua vez, batalham por privilégios privados e mais poder. Esse sistema contém uma organicidade perversa que só tende a aumentar os poderes governamentais, beneficiar grupos particulares e soterrar a liberdade individual.

Ante a degeneração das democracias, Hayek ousa empreender uma “nova formulação institucional” (p. 42). Efetivamente, o filósofo vai sugerir “um desvio radical” (p. 41) em relação à tradição constitucional. Entretanto, tal esforço não foi possível sem antes se deparar com importantes dificuldades. Para Hayek (p. 43), “De fato, logo me dei conta de que a consecução da tarefa que me propusera exigiria praticamente fazer, em relação ao século XX, o que Montesquieu fizera em relação ao século XVIII”.

Essa dificuldade diz respeito, sobretudo, a herança cartesiana da especialização do conhecimento, da qual Montesquieu, por seu lado, ainda não havia se deparado. Assim enfatiza Hayek:

“Embora o problema de uma ordem social adequada seja estudado em nossos dias a partir das diferentes perspectivas da economia, da jurisprudência, da ciência política, da sociologia e da ética, a questão é de tal espécie que só pode ser abordada com sucesso se tomada como um todo.” (p. 43).

Hayek, todavia, reconhece a dificuldade do estudioso contemporâneo em dominar o conhecimento das distintas disciplinas e toda literatura especializada inerente a cada uma. Com efeito, faz uma interessante observação em relação à perversidade da fragmentação do conhecimento: “Em nenhum outro campo o efeito nocivo em especializações é mais evidente do que nas mais antigas dessas disciplinas, a economia e o direito” (p. 43).

Paradoxalmente, é justamente dessa tensão que emergirá todo o esforço do nosso autor:

“Uma das principais teses deste livro será que as normas de conduta justa estudadas pelo profissional do direito servem a um tipo de ordem cujo caráter ele próprio em grande parte desconhece; e que essa ordem é estudada principalmente pelo economista que, por sua vez, também desconhece o caráter das normas de conduta em que assenta a ordem que estuda. (p. 43).

Hayek assevera que a fragmentação do conhecimento levou à emergência de uma disciplina nebulosa, uma “terra de ninguém”, denominada “filosofia social”. Em outras palavras, Hayek quer chamar a atenção para o fato de que problemas específicos na estrutura interna do discurso teórico giram em torno de questões que não são peculiares a cada disciplina e, portanto, deixam de ser sistematicamente examinadas, sendo por essa razão consideradas “filosóficas”. Desse fato, Hayek, detecta um grave problema: “Isso é usado muitas vezes como desculpa para a adoção tácita de uma posição que supostamente não exigiria nem seria passível de justificativa racional” (pp. 43-44).

Hayek reconhece aí um danoso problema para a própria vida em sociedade. Alternativamente, propõe que esses temas cruciais, que trazem sérias implicações no âmbito da ciência e da política, “são questões que podem e devem ser resolvidas com base nos fatos e na lógica” (p. 44). É pos isso que o esforço de Hayek em combater o ideal da “democracia ilimitada” e, alternativamente, propor um modelo constitucional adequado à salvaguarda da liberdade e à preservação de um governo limitado, inicia-se por demonstrar o grande erro epistemológico desta “filosofia” que acabou pavimentando o caminho e legitimando as degeneradas democracias. Nas palavras do autor,

“Tento demonstrar que certos pontos de vistas científicos e políticos amplamente aceitos se baseiam numa determinada concepção da formação das instituições sociais a que chamarei de ‘racionalismo construtivista’ – concepção que pressupõe que todas as instituições sociais são, e devem ser, produto de um plano deliberado. [...]

“Essa concepção errônea está intimamente associada à concepção igualmente falsa da mente humana como uma entidade que existiria fora da ordem da natureza e da sociedade, ao invés de ser ela própria produto do mesmo processo de evolução ao qual se devem as instituições da sociedade.” (p. 44).

Diversas doutrinas que acenam para a “criação do futuro da humanidade”, entre as quais Hayek destaca o positivismo jurídico, algumas noções utilitaristas e, sobretudo as doutrinas socialistas, seriam todas elas epistemologicamente falsas e politicamente perigosas: “são falsas, não por causa dos valores em que se fundam, mas por causa de sua concepção errônea das forças que tornam possível a Grande Sociedade e a civilização” (p. 45).

A correta epistemologia baseada no “racionalismo evolucionista” sinaliza que

“a ordem básica da Grande Sociedade não pode fundamentar-se inteiramente em planejamento, não podendo, portanto, visar a determinados resultados previsíveis, compreenderemos também que a exigência – como legitimação de toda autoridade – de um comprometimento com princípios gerais aprovados pela opinião geral pode impor fortes restrições à vontade particular de toda autoridade mesmo da autoridade da maioria em um dado momento.” (p. 45).

A filosofia liberal, afirmada sobre a epistemologia do racionalismo evolucionista em oposição ao racionalismo construtivista, é uma filosofia que reconhece as limitações da razão humana. Diferentemente do racionalismo construtivista que se posiciona com arrogância ante os poderes da razão, o racionalismo evolucionista se posiciona com humildade ao reconhecer os limites cognitivos do ser humano.

Finalmente, o tema central de Direito, legislação e liberdade é mostrar a destruição dos valores em decorrência do erro científico que, por sua vez, tem origem num erro filosófico embriagante e que lançou a sociedade moderna numa tragédia impensável para os idealizadores do constitucionalismo liberal. Assim destaca Hayek (p. 45): “tragédia porque os valores que o erro científico tende a destronar constituem o fundamento indispensável de toda nossa civilização e até das próprias doutrinas científicas que se voltaram contra eles”.

Se o esforço de Hayek em comprovar o erro filosófico do racionalismo construtivista for atingido, toda uma gama de valores políticos e econômicos predominantes em nossa época deverá ser sumariamente rejeitada se quisermos viver numa sociedade civilizada e longe do perigo totalitário.

Por isso, somente compreendendo as origens daqueles valores e, principalmente, o modo de preservá-los, é que poderemos garantir os fundamentos da ciência, da civilização e da própria liberdade.

Junho/2009

Notas

(1) Vide Erik Lundberg, Presentation Speech at the Bank of Sweden Prize in Economic Sciences in Memory of Alfred Nobel (1974). Disponível em:http://nobelprize.org/economics/laureates/1974/presentation-speech.html.

(2) NORTH, Douglass. Understanding the Process of Economic Change. Princeton, N.J.: Princeton University, 2005, p. 162.

(3) A “ordem espontânea” de Hayek corresponde à “Grande Sociedade” de Smith e também a “Sociedade Aberta” de Popper.

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A teoria marxista da “ideologia de classe” não tem pé nem cabeça. Ou a ideologia do sujeito traduz necessariamente os interesses da classe a que ele pertence, ou ele está livre para tornar-se advogado de alguma outra classe. Na primeira hipótese, jamais surgiria um comunista entre os burgueses e Karl Marx jamais teria sido Karl Marx. Na segunda, não há vínculo entre a ideologia e a condição social do indivíduo e não há portanto ideologia de classe: há apenas a ideologia pessoal que cada um atribui à classe com que simpatiza, construindo depois, por mera inversão dessa fantasia, a suposta ideologia da classe adversária. Uma teoria que pode ser demolida em sete linhas não vale cinco, mas com base nela já se matou tanta gente, já se destruiu tanto patrimônio da humanidade e sobretudo já se gastou tanto dinheiro em subsídios universitários, que é preciso continuar a fingir que se acredita nela, para não admitir o vexame. Olavo de Carvalho, íntegra aqui.
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" Platão já observava que a degradação moral da sociedade não chega ao seu ponto mais abjeto quando as virtudes desapareceram do cenário público, mas quando a própria capacidade de concebê-las se extinguiu nas almas da geração mais nova. " Citação de Olavo de Carvalho em "Virtudes nacionais".