O Senado brasileiro, nas próximas semanas, deverá tomar uma decisão da maior relevância: a entrada ou não da Venezuela de Chávez no Mercosul. Não se trata de uma questão menor por envolver o valor mesmo da democracia enquanto princípio universal. O Senador José Sarney, novo presidente da Casa, quando de sua candidatura, foi duramente criticado por aquilo que é uma de suas virtudes: a defesa da democracia. Com efeito, o Tratado do Mercosul contempla um artigo, a cláusula democrática, que impede a entrada de países que não respeitem a democracia.
Chávez, com a ajuda de seus "companheiros" brasileiros, está empreendendo um trabalho sistemático de destruição da democracia por meios democráticos. Realiza eleições e referendos como se, assim, a democracia estivesse sendo preservada. Isso faz com que nossos iletrados digam que a democracia está sendo respeitada naquele país, quando o contrário é precisamente o verdadeiro.
Para que se tenha democracia, é necessário que uma série de condições seja preenchida, sem a qual ela se torna uma palavra oca, ou melhor, uma palavra que pode inclusive servir a propósitos totalitários. Na verdade, estamos observando naquele país a volta do socialismo do século 20, rebatizado de século 21. Este nada mais é do que a repetição das experiências totalitárias que desembocaram num dos maiores morticínios da humanidade. O uso da palavra "bolivariano" apenas acrescenta um outro disfarce a um projeto cujo alvo é a supressão mesma das liberdades.
Para que tenhamos democracia, é necessário que a divisão dos Poderes republicanos seja observada. Ora, Chávez concentra em suas mãos praticamente os Três Poderes: decide, legisla e julga. Tal concentração vimos na ex-União Soviética sob Stalin e na Alemanha sob Hitler. Promulga decretos legislativos, que são leis a partir das quais legisla sozinho, subordinando completamente o Poder Legislativo, que se torna somente um apêndice seu. O Poder Judiciário, por sua vez, foi completamente aparelhado, vindo a seguir totalmente as suas orientações.
A liberdade de imprensa e pensamento em geral, uma das marcas distintivas daquele país, está sendo cada vez mais cerceada, num processo que almeja a sua eliminação. Redes de televisão são fechadas, pessoas que critiquem o presidente-ditador podem ser criminalizadas e os seus programas midiáticos são de pura propaganda, recheados de ameaças aos seus adversários. Discordar do líder máximo vem a significar um crime de lesa-majestade. Stalin deve estar aplaudindo de sua tumba, regozijando-se com seu novo discípulo "bolivariano".
Os opositores são sistematicamente perseguidos e alguns assassinados em manifestações de rua como se fosse uma mera briga entre opositores. A artimanha é historicamente conhecida, tendo sido muito utilizada na Alemanha nazista. Trata-se da existência de milícias que respondem diretamente ao líder máximo, sendo armadas e treinadas por ele. Os fuzis, por exemplo, comprados da Rússia, em torno de 100 mil, têm como finalidade armar esses grupos paramilitares. Tais grupos são de estrita obediência, servindo aos mais diferentes propósitos, por mais escusos que sejam. Eles agem impunemente, não seguindo nenhuma legalidade.
Vejamos dois exemplos. O seu ex-ministro da Defesa, Raul Baduel, agora líder da oposição, que o sustentou quanto do golpe impetrado contra ele, foi recentemente alvo de "desconhecidos", que atiraram contra ele num claro sinal de coação e ameaça. O recado foi claro: pare com suas atividades, pois sua vida está a perigo. Nada foi apurado e os seus agressores continuam na impunidade. Amigos se tornam "inimigos", tal como ocorreu com os bolcheviques "companheiros" de Stalin. Uma sinagoga foi invadida e depredada também por um grupo de milicianos bolivarianos. Eles seguiram os discursos de seu chefe máximo, repletos de insinuações e declarações antissemitas. Alguns dias depois, aparece uma "investigação" apontando aparentemente os culpados. O esquema é o mesmo dos grupos paramilitares nazistas: serve aos mais diferentes propósitos, inclusive apresentar "culpados", se necessário. É a "regra" mesma de uma democracia totalitária. O que deve ser realçado é a existência desses grupos paramilitares, subordinados completamente ao líder, fazendo da democracia um utensílio descartável.
A União Europeia também não aceita em seu seio países que não respeitem a democracia e as liberdades. Trata-se de uma condição essencial de uma comunidade que preza a liberdade enquanto princípio de sua organização política. Imaginem se a União Soviética de Stalin e a Alemanha de Hitler tivessem solicitado aderir, naquela época, a uma hipotética Comunidade Europeia. Sempre haveria, é claro, os seus defensores, proclamando ser necessário distinguir os povos soviéticos e alemães de seus governantes. Os respectivos ditadores ficariam muito agradecidos por esse "insuspeito" apoio. As portas seriam abertas para esse novo cavalo de Troia.
A hipotética Comunidade Europeia começaria a se desintegrar internamente, com os liberticidas procurando ditar os rumos dessa associação de países. Num primeiro momento, por exemplo, governantes que compartilham de alguns de seus "valores", o de serem de "esquerda", poderiam dizer que os povos "irmãos" se juntam numa mesma cruzada contra o "neoliberalismo", na busca de "um outro mundo possível". No entanto, os valores genuínos da liberdade começariam a se esfacelar, abrindo caminho para o desprezo crescente para com a democracia. Uma incipiente comunidade seria minada internamente por uma ideologia, que procura transplantar para a América Latina do século 21 as experiências totalitárias do século 20.
O Senado não pode fugir a essa responsabilidade maior. Dizer não a Chávez significa dizer sim ao povo venezuelano e aos povos latino-americanos em geral. Sim à democracia.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
Fonte: Estadão.com.br
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