APOLOGÉTICA CATÓLICA
Postado por Thiago Santos de Moraes em 23/04/2012
Apresento aos leitores e amigos do blog um artigo interessante do pensador e polemista católico brasileiro, do começo do século passado, Carlos de Laet, publicado na Revista de Cultura Vozes em 1947 (não há indicação da data da publicação original, mas creio que seja de 1908):
Na Câmara dos Srs. Deputados, quando ali se discutiam, na quinta-feira, as emendas ao orçamento do Ministério do Exterior, uma questão foi suscitada que, nada tendo aliás com as referidas emendas, grandemente alvoroçou os ânimos dos poucos assistentes aos debates.
Tratou-se de saber se a Igreja católica é monarquista ou republicana.
Dividiram-se as opiniões; o ilustrado orador, Sr. Dr. Francisco Bernardino, mal conseguia fazer-se ouvir; e entre o cruzar dos apartes um se proferiu, supinamente engraçado, a sustentar o monarquismo da Igreja, porque os padres têm coroa. Não sei se no "Diário Oficial", que nunca leio, está registrado o nome do homem ilustre que tal disse. Indaguem disso os jornais de pilhérias. Que esplêndida colaboração para o "Malho" ou para o "Coió".
No caridoso intuito de acudir às dúvidas dos varões egrégios que o voto livre envia à chamado representação nacional, o escritor destas linhas pede licença para expor o que, sendo aliás corrente, talvez ainda não teve tempo de chegar ao conhecimentos dos Srs. Deputados. Com espírito desprevenido e ânimo dócil espero seja recebido o meu diminuto subsídio, depois do que não mais se poderá dizer que nunca discuti as emendas do orçamento: e logo de que orçamento! o do Exterior, o menos fixável, o menos emendável, o menos previsível de todos os orçamentos.
Realmente, para o discutir, só embrenhando-se a gente pelos intermúndios onde a política pega com a teologia... Discutamos o orçamento do Exterior.
A Igreja, meus caros Srs. Deputados, essa mesma Igreja em que V. Exs. foram todos batizados, mas cujo catecismo desaprenderam quando,adjuvante diabolo, se meteram a servir o filosofismo - nunca, absolutamente nunca, impôs a nenhum dos fiéis a obrigação de ser monarquista ou republicano.
A doutrina católica é que, não havendo verdadeiramente poder que não venha de Deus, todavia o Soberano Senhor de todas as coisas não deu imediatamente a nenhum homem o poder ou autoridade antes que esta lhe houvera sido transferida ou por uma instituição ou por uma eleição humana. Assim, ipsis verbis, o explica Suarez (Def. fidei, I. III. c. VI); Suarez, um copioso tratadista que mais escreveu e demonstrou do que toda a Câmara de V. Exs. o poderia fazer em muitos séculos.
Este modo de ver é bem diverso do da escola protestante, inaugurada por Cranmer, logo após a sagração de Henrique VIII da Inglaterra e posteriormente propugnada pelos sucessores desse monarca; escola que bem alto proclamou o caráter absolutamente divino da realeza e a onipotência dos príncipes, com total postergação dos direitos dos povos e da consciência e dignidade humanas. Deste modo, Exmos. Srs., quando V. Exs., em seus discursos e escritos, atacam o catolicismo, acreditando que nele se acha a doutrina da submissão estípida e cega aos soberanos, como imediatos representantes da Divindade, dão a prova mais deplorável de não haverem estudado a questão, contentando-se de repetir as fofas declamações dos revolucionários e ateus que lá têm suas razões para de preferência agredir a Igreja Católica.
Ficam, pois, V. Exs., agora sabendo qual o princípio fundamental da minha, da sua, da nossa Igreja, no tocante ao governo civil; e, admitido esse princípio, não lhes custará entender que à mesma Igreja são indiferentes as formas de governo, desde que respeitem os princípios da justiça e se apliquem aos legítimos interesses do povo.
V. Exs., salvo raras exceções, não lêem as Encíclicas, não lêem bulas, não lêem o catecismo, não lêem coisa nenhuma, posto que frequentes opinem sobre matéria de religião; mas se os pagodes oficiais lhes deixassem tempo para o estudo, eu lhes pediria que sobre o caso ponderassem as palavras de Leão XIII, na sua Encíclica Diuturnum illud, de 29 de junho de 1881, a qual de certo não conhecem, porque, se a tivessem lido, não estariam agora a disputar se a Igreja é republicana ou monarquista.
Eu não sei se V. Exs., na sua maior parte, estudaram o latim, ou se dele assaz aprenderam para traduzir sem grande esforço, mas em todo caso aqui lhes ponho o original, prudentemente escoltado da tradução, esta para os esquecidos da língua-mãe, aquele para os que, entendendo-a, possam verificar que não altero o texto.
Disse Leão XIII: "Nihil enim est cur non Ecclesiae probetur aut unius aut plurium principatus, si modo justus sit, et in communem utilitatem intentus. Quamobrem, salva justitia, non prohibentur populi illud sibi genus comparare reipublicae, quod aut ipsorum ingenio aut majorum institutis moribusque magis apte conveniat".
Isto é: "Não há razão por que pela Igreja não seja aprovado tanto o supremo governo de um só homem, como o de mais, contanto que justo seja, e aplicado ao interesse comum. Pelo que, ressalvando-se a justiça, não é proibido aos povos o adotarem aquela forma de governo que mais adequada convenha, ou à índole dos mesmos povos, ou sob às instituições e aos costumes de seus maiores".
Nada mais claro. Sede monarquistas ou republicanos, segundo melhor entenderdes, diz às nações o Pai da cristandade; mas não esqueçais que todo governo deve assentar na justiça e no interesse legítimo da sociedade.
Como, pois, no ano corrente, em país geralmente católico, Deputados que ao menos por motivo de curiosidade deveriam conhecer a doutrina católica, ainda vêm armar pendência sobre o exclusivismo da Igreja com relação a formas de governo?
Com o devido respeito que a V. Exs. devo, por serem pessoas constituídas em dignidade e exercendo importante múnus na governação do Estado, eu sempre lhes direi que não andam bem deixando de estudar a religião que em tantos pontos se prende à lei civil e sobre a qual, com admirável desplante, emitem juízos assaz dissonantes da verdade.
Um pouco de catecismo não lhes faria mal, Exmos. Srs.; nem com isto acaso pretendo catequizar a V. Exs., incutindo-lhes o amor da religião do seu batismo. Não: eu apenas exijo, por amor da lógica, o conhecimento do assunto em matéria atinente à coisa pública, política ou civil.
Imaginem V. Exs. que se acham, não no Rio de Janeiro, mas em Constantinopla, e que são Deputados, não sob o ceptro do glorioso Afonso Pena, mas do Sultão, que também é constitucional, reservando-se o direito de fazer política. Ora, legisladores em país muçulmano, como poderiam V. Exs. bem desempenhar o seu mandato, se não conhecessem o Alcorão e não o tiveram estudado, pelo menos em suas principais disposições? Impossível, não é assim? Mas então como é que V. Exs. estão aqui a legislar para católicos, quando nem sequer conhecem o sentir da Igreja sobre formas de governo e, suscitada extemporaneamente essa questão, V. Exs. a pretendem resolver com gracejos e casquinadas?
Esta razão, quando outra não fosse, aconselharia, ou antes intimaria, o estudo da religião aos Srs. Deputados e Senadores; e longe não me acho de pedir que para isto algum padre zeloso (estou a lembrar-me do Sr. Valois) queira abrir, na Câmara de que é membro, uma aulazinha de catecismo.
Bem; mas agora estou prevendo a objeção: Se no catolicismo nada achais contra a forma republicana, principatus plurium, como lá disse o Papa Leão XIII, por que então vos conservais monarquista/
Exatamente por causa das palavras do venerando Pontífice. Eu entendo, em consciência, que a proclamação da república, na minha pátria, não salvou os princípios da justiça; que antes os conculcou todos, em uma criminosa explosão de orgulhosas insurgências, traiçoeiras ingratidões e inconfessáveis cobiças; entendo mais que a injustiça perdura pelo falseamento do voto, esbulhada a nação do único meio pelo qual pacificamente pudera manifestar a sua vontade; nem me posso conformar com um estado de coisas que é a sistemática dilapidação dos impostos, isto é, do trabalho, do suor, do sangue do povo em proveito só do governo, de V. Exs. e de mais um grupo de orçamentívoros.
Igualmente penso que um república oriunda da propaganda positivista e anti-religiosa diretamente se opõe à opinião nacional; que produto de falsificação eleitoral foi a Constituinte, pois entrou no Congresso mediante a gazua do regulamento Alvim-Campos Sales para nos dar como constituição política uma trapalhada informe e inexequível, jamais executada, cujos artigos brigam uns com os outros, e por vezes tão ambígua que admite exegeses diametralmente opostas.
Repilo, outrossim, apoiado no bom-senso, na moral, nos mais vulgares preceitos da honestidade, a infamíssima doutrina do fato consumado, pela qual a patifaria de agora ficará sendo respeitável depois de amanhã... Assim pouco me importa que esta república já conte dezenove anos. Com mais trinta pudesse eu vê-la, e nem por isto me parecerá mais honrada.
Eis por que, Exmos. Srs., continuamos a sufragar o antigo regime, eu e muitíssimos brasileiros, em que iste pese ao Sr. Deputado Francisco Bernardino, segundo o qual "já ninguém mais pensa em monarquia...".
Nunca, Exmos. Srs., nunca mais nela se pensou do que atualmente, quando o próprio mundo oficial reverente se curva ante o vulto de João VI, e entre as suas mágoas deplora a ausência do inditoso monarca português, sucumbido aos golpes dos sicários republicanos.
Onde quer que evoqueis o passado, ele vos apresenta um benefício da monarquia. O Ministro mais ilustre na república é um monarquista confesso. Não pode negar também que o foi o magistrado supremo da república. Monarquistas, as bandeiras de Riachuelo, de 24 de Maio... E tudo que na monarquia não tem raízes, sai chocho, mão feito, imprestável.
O fato, Exmos. Srs., não conteis muito com isso. Ele pode ser implantado pela força, mas improvisadamente se destrói quando não arraigado nos princípios.
Vede aquela grande bandeira, de não sei quantos panos, e com letras de não sei quantos palmos, a qual noutro dia se arvorou no Pão de Açucar... Sobreveio o tufão, e ela foi arrancada, dilacerada, arrojada para tão longe que ninguém sabe onde está...
Não digo que fosse mal agouro, porque não sou supersticioso. Não quero tampouco assanhar patriotagens contra a força misteriosa e infinita que manda os vendavais e as revoluções. Somente afirmo que foi aquilo talvez um símbolo, e que em todo símbolo há uma lição.
Nesse caso, se o temporal sobrevier - também o asseguro ao Sr. Francisco Bernardino - naturalmente a S. Excia. parecerá que ninguém mais pense na república.
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