O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso publicou um artigo no domingo, no Estadão, que já está rendendo algumas reações entre cínicas e furiosas dos petistas e das esquerdas. Num texto intitulado Para onde vamos?, ele analisa o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e afirma: “(…) Tudo o que o cerca possui um DNA que, mesmo sem conspiração alguma, pode levar o País, devagarzinho, quase sem que se perceba, a moldar-se a um estilo de política e a uma forma de relacionamento entre Estado, economia e sociedade que pouco têm que ver com nossos ideais democráticos.” Segue acima o link com a íntegra. E o autor lista, então, as muitas vezes em que o presidente e sua base de apoio atravessam os bons procedimentos democráticos.
O artigo é impecável, com uma pequenina correção. Afirma FHC sobre a forma como Lula governa: “Como dizia o famoso príncipe tresloucado, nesta loucura há método.” O “príncipe tresloucado” é Hamlet, da peça homônima, de Shakespeare. Ocorre que a fala “Though this be madness, yet there is method in ‘t” (É loucura, mas há método nela) não é do príncipe, mas de Polônio, o conselheiro, símbolo da ponderação. Ele a pronuncia justamente ao fim de um dos delírios de Hamlet. E quem é a primeira vítima, ainda que acidental, do príncipe destrambelhado e politicamente idiota, que produz um banho de sangue? Justamente Polônio! Justamente a ponderação! Digamos que esta senhora, a “Ponderação”, não costuma ser muito popular em política. Meu livro de frases, Máximas de Um País Mínimo, que sai neste mês, reserva algumas a Hamlet.
Os petistas, na Internet, já reagiram, se me permitem a metáfora, com aquela elegância de pensamento e comportamento típicos daqueles linchadores da Uniban, que ameaçavam uma jovem com o estupro porque acharam a sua roupa inadequada para uma faculdade onde há alunos que se comportam como linchadores e estupradores… Os petralhas estão gritando com aquela inteligência característica: “Inveja! É tudo Inveja! É despeito! Lula ficou mais famoso do que ele!”.
Um desses analistas do nariz marrom certamente escreverá — atenção: escrevo este artigo ainda no dia 2; não li os jornais desta terça — que o ex-presidente finalmente mordeu a isca e decidiu polarizar com o atual, que é tudo o que o petista mais quer porque, assim, desloca a disputa para um “Lula X FHC”. Vejam vocês: Lula vai realmente assumindo características divinas: até as ações de seus críticos já estariam calculadas em sua mente divinal. E se vai fazer o esforço habitual para ignorar as evidências apontadas por FHC — e por qualquer democrata — do surto de pequenos autoritarismos que acometem o governo Lula. Pequenos autoritarismos que, combinados, revelam o método.
Escreve ainda FHC, de modo irreparável:
“É possível escolher ao acaso os exemplos de “pequenos assassinatos”. Por que fazer o Congresso engolir, sem tempo para respirar, uma mudança na legislação do petróleo mal explicada, mal-ajambrada? Mudança que nem sequer pode ser apresentada como uma bandeira “nacionalista”, pois, se o sistema atual, de concessões, fosse “entreguista”, deveria ter sido banido, e não foi. Apenas se juntou a ele o sistema de partilha, sujeito a três ou quatro instâncias político-burocráticas para dificultar a vida dos empresários e cevar os facilitadores de negócios na máquina pública. Por que anunciar quem venceu a concorrência para a compra de aviões militares, se o processo de seleção não terminou? Por que tanto ruído e tanta ingerência governamental numa companhia (a Vale) que, se não é totalmente privada, possui capital misto regido pelo estatuto das empresas privadas? Por que antecipar a campanha eleitoral e, sem nenhum pudor, passear pelo Brasil à custa do Tesouro (tirando dinheiro do seu, do meu, do nosso bolso…) exibindo uma candidata claudicante? Por que, na política externa, esquecer-se de que no Irã há forças democráticas, muçulmanas inclusive, que lutam contra Ahmadinejad e fazer mesuras a quem não se preocupa com a paz ou os direitos humanos?”
Útil ou não à estratégia petista, que vai, como de hábito, exibir seus vícios como virtudes, o que vai acima precisa ser apontado. Se mais ninguém ousa fazê-lo no meio político, que FHC, então o faça. Lula vai vociferar contra o único adversário — já escrevi isso aqui — para o qual realmente dá bola; sua obsessão é recontar a história do Brasil, de modo que seu antecessor seja visto como um vilão.
FHC identifica com precisão a base material de sustentação do governo, numa leitura que não é estranha aos leitores deste blog, a saber:
“Ora, dirão (já que falei de estrelas), os fundos de pensão constituem a mola da economia moderna. É certo. Só que os nossos pertencem a funcionários de empresas públicas. Ora, nessas, o PT, que já dominava a representação dos empregados, domina agora a dos empregadores (governo). Com isso os fundos se tornaram instrumentos de poder político, não propriamente de um partido, mas do segmento sindical-corporativo que o domina. No Brasil os fundos de pensão não são apenas acionistas - com a liberdade de vender e comprar em bolsas -, mas gestores: participam dos blocos de controle ou dos conselhos de empresas privadas ou “privatizadas”. Partidos fracos, sindicatos fortes, fundos de pensão convergindo com os interesses de um partido no governo e para eles atraindo sócios privados privilegiados, eis o bloco sobre o qual o subperonismo lulista se sustentará no futuro, se ganhar as eleições. Comecei com para onde vamos? Termino dizendo que é mais do que tempo de dar um basta ao continuísmo, antes que seja tarde.”
O diagnóstico é exato. Exemplo acabado do modo como o governo Lula entende as instituições é a investida contra o Tribunal de Contas da União. Os petistas pretendem criar o que chamam uma “Câmara” para avaliar as obras em que o tribunal encontra irregularidades. E qual é o problema de Lula com este órgão? Ele é formado por uma maioria de pessoas que não foram indicadas pelo Demiurgo. Os petistas só respeitam instituições que eles dominam; logo, não respeitam instituição nenhuma: aceitam apenas o partido como instância legítima e o querem substituindo a sociedade. Eu diria que esse método é um pouco mais “moderno” (no tempo) e mais “atrasado” (na política) do que o próprio peronismo: criar órgãos paralelos para atropelar os legais é coisa de bolivarianos mesmo.
O governador de Minas, Aécio Neves (PSDB), e a senadora Marina Silva (PV) deram para falar num certo tempo que viria na política que eles chamam “pós-Lula” (Aécio) ou “pós-16 anos” (Marina). Não tenho muita paciência com esses slogans, não. Estou entre aqueles que, seja lá quem for o presidente, defendem, em alguns casos, o tempo pré-Lula: aquele de respeito às leis e às instituições. Entendo que os pré-candidatos — o que FHC não é — não queiram trombar com Lula e, então, prefiram optar por uma espécie de conto de fadas, em que se anuncia uma nova aurora, sem que fique claro, no entanto, como se pode chegar lá. Entendo seus motivos, o que não quer dizer que os endosse.
Que a turma grite à vontade. O fato é que FHC foi a centro da questão. É a democracia que está em debate. E a mim, por exemplo, pouco importa quantos são os “empresários” empenhados nesse “negócio” do governo. A minha questão é a democracia, que só é um valor nas sociedades de mercado, mas que não é um valor de mercado.
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