Domingo, 22 de Fevereiro de 2009
Em O Paradoxo da Moral, o filósofo Vladimir Jankélévitch diz que o homem passa a maior parte da vida numa cegueira ética
Regina Schöpke
Para o filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985), "o homem é um ser virtualmente ético, que existe como tal, isto é, como ser moral". Ele complementa a frase com uma afirmação surpreendente: ele é um ser moral "de tempos em tempos e de longe em longe". Parece haver algum sarcasmo nestas palavras, mas trata-se apenas de uma simples constatação: a de que embora os homens não possam prescindir dos seus valores, a verdade é que eles passam a maior parte de suas vidas numa espécie de cegueira moral ou ética, algo que Jankélévitch chama de "eclipses da consciência", "anestesiamento moral". Isso quer dizer que o homem vive transigindo com os próprios valores, praticamente alheio aos princípios nos quais diz acreditar: em suma, fala uma coisa e vive outra. No entanto, basta que algo ameace o seu castelo de areia e, então, a moral ressurge forte. "A moral tem sempre a última palavra", diz Jankélévitch.
De fato, nada parece descrever melhor a existência humana do que o eterno conflito entre os desejos e as necessidades mais profundas do indivíduo e a vida social, as obrigações e os deveres para com "o outro". Para Jankélévitch, a moral sempre será um problema filosófico, e o primeiro deles, independentemente de ser chamado de ética ou outro nome. Afinal, o homem é um animal social e, nesse sentido, o "outro" estará sempre em nosso horizonte, senão o tempo inteiro, ao menos nos momentos mais decisivos. É isso que defende Jankélévitch em seu livro O Paradoxo da Moral (tradução de Eduardo Brandão, ed. Martins Fontes, 252 págs., R$ 37,50). Nele, deparamos com a descrição dos mais profundos dilemas humanos, do eterno medo de desviar-se das obrigações por causa das paixões e até mesmo as incertezas de se viver um grande amor, não apenas quando ele se choca com as conveniências sociais, mas pela própria natureza paradoxal dessa entrega total e atordoante.
Jankélévitch, que ocupou a cadeira de filosofia moral na Sorbonne entre 1951 e 1979, faz uso de linguagem teológica quando nos fala da vox conscientiae. É assim que ele descreve esse "outro" em nós, essa voz sem interlocutor ou, simplesmente, a própria consciência "face a face" consigo mesma. Aliás, há maior paradoxo do que esse ser cindido, que vê a si próprio (ou pensa se ver)? Num âmbito mais profundo, a consciência é aquela que nos alerta dos perigos, que deseja nos conservar, é a que nos lembra de nossos deveres. Para Nietzsche, ela é uma espécie de carcereira do homem, e não um instrumento que lhe sirva de guia. Shakespeare (em Hamlet) também dizia algo semelhante ao afirmar que é ela que faz de todos nós covardes.
Bem, sendo um conjunto de valores, normas, preceitos, proibições e ideais, a moral é, no fundo, a voz do campo social e de tal maneira ela está impregnada em nossa consciência (e inconsciente) que parece mesmo impossível romper com ela. É isso, pelo menos, que pensa Jankélévitch: por mais que nos julguemos livres, os valores que nos constituíram estão sempre agindo sobre nós. Isso é verdade e mais ainda numa moral teológica como a ocidental, que com seu jogo profundo de culpas e remorsos, eleva o drama do indivíduo à enésima potência. O homem, criado dentro dessa moral de renúncias absolutas e sacrifícios pessoais demasiado humanos (diria Nietzsche), não poderia deixar de ser melancólico e confuso. É assim que a sua vida interior, tão bem retratada por Jankélévitch, mostra-se repleta de crises de consciência, desesperos e, sobretudo, de pavor diante das paixões e dos prazeres, sempre considerados perigosos para a conservação da vida social.
Mas será mesmo a moral algo inescapável? Será que o "eu" é sempre privado de seus direitos à felicidade ou à liberdade em prol dos "outros" (o que, no fim das contas, quer dizer "todos são privados", todos os "eus": eis o paradoxo real)? Sim e não. É claro que somos seres sociais, mas sem felicidade individual também não pode haver felicidade coletiva. É verdade que a vida em sociedade exige que o indivíduo ponha o grupo acima de seus desejos egoístas, mas não de suas necessidades essenciais; uma moral ou uma sociedade que exige isso age contra o próprio homem. Eis o que Nietzsche já havia nos mostrado (e é impossível não tocar em Nietzsche quando o assunto é a moral).
Em outros termos, numa moral de renúncia total, o homem torna-se um ser cheio de falsidades: eis porque as promessas feitas serão quase sempre traídas ou cinicamente vividas (porque, no fundo, o homem não consegue e não pode abrir mão completamente dos seus desejos e paixões; ele apenas os viverá de modo atormentado). Se há algo que Nietzsche ensinou de superior a todos os outros filósofos é que tendo sido o próprio homem o criador de seus valores é sempre possível recriá-los. No fundo, a diferença capital entre Nietzsche e Jankélévitch é que se, para Jankélévitch, o homem vive anestesiado quando fecha os olhos para a moral que o constituiu, para Nietzsche, a moral acaba se convertendo no próprio anestesiamento do homem quando esses valores estão fundamentados em falsos pressupostos.
Jankélévitch, de fato, conhece bem o homem e a moral. Mas é Nietzsche quem ensina o caminho da vida sem hipocrisias. Ele faz a guerra contra os valores que nos condenam a viver covardemente, a aceitarmos nossa condição como inexorável, a tratarmos como pecado e tentação o que é parte do nosso ser. Se Jankélévitch fala em elevação moral, Nietzsche fala em elevação real. Afinal, para o filósofo alemão, "elevar-se" significa viver de fato os valores na sua máxima potência, e não só de "tempos em tempos". Mas, para isso, é preciso estar em consonância consigo mesmo e com a vida (e não contra ela). É preciso, antes de qualquer outra coisa, ter coragem de romper as amarras e viver de verdade.
Regina Schöpke é filósofa, historiadora e, atualmente, faz pós-doutorado na Unicamp
De fato, nada parece descrever melhor a existência humana do que o eterno conflito entre os desejos e as necessidades mais profundas do indivíduo e a vida social, as obrigações e os deveres para com "o outro". Para Jankélévitch, a moral sempre será um problema filosófico, e o primeiro deles, independentemente de ser chamado de ética ou outro nome. Afinal, o homem é um animal social e, nesse sentido, o "outro" estará sempre em nosso horizonte, senão o tempo inteiro, ao menos nos momentos mais decisivos. É isso que defende Jankélévitch em seu livro O Paradoxo da Moral (tradução de Eduardo Brandão, ed. Martins Fontes, 252 págs., R$ 37,50). Nele, deparamos com a descrição dos mais profundos dilemas humanos, do eterno medo de desviar-se das obrigações por causa das paixões e até mesmo as incertezas de se viver um grande amor, não apenas quando ele se choca com as conveniências sociais, mas pela própria natureza paradoxal dessa entrega total e atordoante.
Jankélévitch, que ocupou a cadeira de filosofia moral na Sorbonne entre 1951 e 1979, faz uso de linguagem teológica quando nos fala da vox conscientiae. É assim que ele descreve esse "outro" em nós, essa voz sem interlocutor ou, simplesmente, a própria consciência "face a face" consigo mesma. Aliás, há maior paradoxo do que esse ser cindido, que vê a si próprio (ou pensa se ver)? Num âmbito mais profundo, a consciência é aquela que nos alerta dos perigos, que deseja nos conservar, é a que nos lembra de nossos deveres. Para Nietzsche, ela é uma espécie de carcereira do homem, e não um instrumento que lhe sirva de guia. Shakespeare (em Hamlet) também dizia algo semelhante ao afirmar que é ela que faz de todos nós covardes.
Bem, sendo um conjunto de valores, normas, preceitos, proibições e ideais, a moral é, no fundo, a voz do campo social e de tal maneira ela está impregnada em nossa consciência (e inconsciente) que parece mesmo impossível romper com ela. É isso, pelo menos, que pensa Jankélévitch: por mais que nos julguemos livres, os valores que nos constituíram estão sempre agindo sobre nós. Isso é verdade e mais ainda numa moral teológica como a ocidental, que com seu jogo profundo de culpas e remorsos, eleva o drama do indivíduo à enésima potência. O homem, criado dentro dessa moral de renúncias absolutas e sacrifícios pessoais demasiado humanos (diria Nietzsche), não poderia deixar de ser melancólico e confuso. É assim que a sua vida interior, tão bem retratada por Jankélévitch, mostra-se repleta de crises de consciência, desesperos e, sobretudo, de pavor diante das paixões e dos prazeres, sempre considerados perigosos para a conservação da vida social.
Mas será mesmo a moral algo inescapável? Será que o "eu" é sempre privado de seus direitos à felicidade ou à liberdade em prol dos "outros" (o que, no fim das contas, quer dizer "todos são privados", todos os "eus": eis o paradoxo real)? Sim e não. É claro que somos seres sociais, mas sem felicidade individual também não pode haver felicidade coletiva. É verdade que a vida em sociedade exige que o indivíduo ponha o grupo acima de seus desejos egoístas, mas não de suas necessidades essenciais; uma moral ou uma sociedade que exige isso age contra o próprio homem. Eis o que Nietzsche já havia nos mostrado (e é impossível não tocar em Nietzsche quando o assunto é a moral).
Em outros termos, numa moral de renúncia total, o homem torna-se um ser cheio de falsidades: eis porque as promessas feitas serão quase sempre traídas ou cinicamente vividas (porque, no fundo, o homem não consegue e não pode abrir mão completamente dos seus desejos e paixões; ele apenas os viverá de modo atormentado). Se há algo que Nietzsche ensinou de superior a todos os outros filósofos é que tendo sido o próprio homem o criador de seus valores é sempre possível recriá-los. No fundo, a diferença capital entre Nietzsche e Jankélévitch é que se, para Jankélévitch, o homem vive anestesiado quando fecha os olhos para a moral que o constituiu, para Nietzsche, a moral acaba se convertendo no próprio anestesiamento do homem quando esses valores estão fundamentados em falsos pressupostos.
Jankélévitch, de fato, conhece bem o homem e a moral. Mas é Nietzsche quem ensina o caminho da vida sem hipocrisias. Ele faz a guerra contra os valores que nos condenam a viver covardemente, a aceitarmos nossa condição como inexorável, a tratarmos como pecado e tentação o que é parte do nosso ser. Se Jankélévitch fala em elevação moral, Nietzsche fala em elevação real. Afinal, para o filósofo alemão, "elevar-se" significa viver de fato os valores na sua máxima potência, e não só de "tempos em tempos". Mas, para isso, é preciso estar em consonância consigo mesmo e com a vida (e não contra ela). É preciso, antes de qualquer outra coisa, ter coragem de romper as amarras e viver de verdade.
Regina Schöpke é filósofa, historiadora e, atualmente, faz pós-doutorado na Unicamp
2 comentários:
vc é um otario de merda que nao tem um sonho e é obsoleto e sempre sera
Verdade seja dita, é quem sonha com um mundo melhor criado por decreto que é "devalirante" (devaneio + delírio).
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