MÍDIA SEM MÁSCARA
ESCRITO POR BRUNO GARSCHAGEN | 24 SETEMBRO 2012
ARTIGOS - CONSERVADORISMO
Segue um texto recomendável do Luiz Felipe Pondé, que voltou a acertar a mão nos artigos para a Folha de S. Paulo, citando autores de minha predileção e interesse acadêmico:
Contra os comissários da ignorância
O que é conservadorismo? Tratar o pensamento político conservador ("liberal-conservative") como boçalidade da classe média é filosofia de gente que tem medo de debater ideias e gosta de séquitos babões, e não de alunos.
Proponho a leitura de "Conservative Reader" (uma antologia excelente de textos clássicos), organizada pelo filósofo Russel Kirk. Segundo Kirk, o termo começou a ser usado na França pós-revolucionária.
Edmund Burke, autor de "Reflexões sobre a Revolução na França" (ed. UnB, esgotado), no século 18, pai da tradição conservadora, nunca usou o termo. Tampouco outros três pensadores, também ancestrais da tradição, os escoceses David Hume e Adam Smith, ambos do século 18, e o francês Alexis de Tocqueville, do século 19.
Sobre este, vale elogiar o lançamento pela Record de sua biografia, "Alexis de Tocqueville: O Profeta da Democracia", de Hugh Brogan.
Ainda que correta a relação com a Revolução Francesa, a tradição "liberal-conservative" não é apenas reativa. Adam Smith, autor do colossal "Riqueza das Nações", fundou a ideia de "free market society", central na posição "liberal-conservative". Não existe liberdade individual e política sem liberdade de mercado na experiência histórica material.
A historiadora conservadora Gertrude Himmelfarb, no seu essencial "Os Caminhos para a Modernidade" (ed. É Realizações), dá outra descrição para a gênese da oposição "conservador x progressista" na modernidade.
Enquanto os britânicos se preocupavam em pensar uma "sociologia das virtudes" e os americanos, uma "política da liberdade", inaugurando a moderna ciência política de fato, os franceses deliravam com uma razão descolada da realidade e que pretendia "refazer" o mundo como ela achava que devia ser e, com isso, fundaram a falsa ciência política, a da esquerda. Segundo Himmelfarb, uma "ideologia da razão".
O pensamento conservador se caracteriza pela dúvida cética com relação às engenharias político-sociais herdeiras de Jean-Jacques Rousseau (a "ideologia da razão").
Marx nada mais é do que o rebento mais famoso desta herança que costuma "amar a humanidade, mas detestar seu semelhante" (Burke).
O resultado prático desse "amor abstrato" é a maior engenharia de morte que o mundo conheceu: as revoluções marxistas que ainda são levadas a sério por nossos comissários da ignorância que discutem conservadorismo na cozinha de suas casas para sua própria torcida.
Outro traço desta tradição é criar "teorias de gabinete" (Burke), que se caracterizam pelo seguinte: nos termos de David Hume ("Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral", ed. Unesp), o racionalismo político é idêntico ao fanatismo calvinista, e nesta posição a razão política delira se fingindo de redentora do mundo. Mundo este que na realidade abomina na sua forma concreta.
A dúvida conservadora é filha da mais pura tradição empirista britânica, ao passo que os comissários da ignorância são filhos dos delírios de Rousseau e de seus fanáticos.
No século 20, proponho a leitura de I. Berlin e M. Oakeshott. No primeiro, "Estudos sobre a Humanidade" (Companhia das Letras), a liberdade negativa, gerada a partir do movimento autônomo das pessoas, é a única verdadeira. A outra, a liberdade positiva (abstrata), decretada por tecnocratas do governo, só destrói a liberdade concreta.
Em Oakeshott, "Rationalism in Politics" (racionalismo na política), os conceitos de Hume de hábito e afeto voltam à tona como matrizes de política e moral, contra delírios violentos dos fanáticos da razão.
No 21, Thomas Sowell (contra os que dizem que conservadores americanos são sempre brancos babões), "Os Intelectuais e a Sociedade" (É Realizações), uma brilhante descrição do que são os comissários da ignorância operando na vida intelectual pública.
Conservador não é gente que quer que pobre se ferre, é gente que acha que pobre só para de se ferrar quando vive numa sociedade de mercado que gera emprego. Não existe partido "liberal-conservative" no Brasil, só esquerda fanática e corruptos de esquerda e de direita.
Só algumas observações pertinentes:
1) Pondé inicia o texto referindo-se ao pensamento conservador e entre parênteses qualifica-o como sendo liberal-conservadorismo, como se aquele fosse este. Não é. Pelos autores citados e os traços de filosofia política diluídos no texto, Pondé define que conservadorismo está a falar, que é o conservadorismo britânico (não o europeu continental, não o norte-americano, muito menos o brasileiro, que só existiu como força intelectual e política durante a monarquia e no início da República). Essa delimitação permite um comentário mais preciso. Já se tornou comum no Brasil falar ou escrever sobre conservadorismo sem definir, à partida, sobre qual pensamento conservador se pretende apresentar ou discutir. E isso cria discussões equivocadas porque cada interlocutor intervém com o conhecimento prévio que detém e costuma-se tratar de objetos diferentes como se fossem iguais. E mais uma discussão artifical e infindável se estabelece com perda de tempo e esforço.
O liberal-conservadorismo britânico que Pondé menciona, e parece defender, só ganhou força intelectual e política na Inglaterra a partir da segunda metade do século XX com o trabalho relevante de aproximação entre pensamento conservador e liberalismo econômico realizado por Enoch Powell (1912-1998) e Sir Keith Joseph (1918-1994) e que abriu caminho para Margaret Thatcher e o thatcherismo.
Essa história é contada no prefácio que escrevi para o livro O que é Conservadorismo, de Roger Scruton, que a É Realizações planeja publicar ainda neste segundo semeste. Nesse texto eu também tento complementar para o leitor não-familizarizado com os conceitos e categorias expostas pelo autor o que é o conservadorismo britânico e a razão pela qual conservadores puros como Scruton foram (e são) contra a aproximação entre conservadorismo e liberalismo.
Para quem se interessa pelo tema, recomendo vivamente a leitura do livro e do meu prefácio.
2) Hume, Smith, Tocqueville, Berlin, Oakeshott e Kirk a rigor, não podem ser qualificados como liberal-conservadores. Talvez não fosse a intenção de Pondé classificá-los sob uma mesma concepção, mas como no texto ele faz a defesa do conservadorismo-liberal e cita esses autores sem enquadrá-los, pode parecer ao leitor não familiarizado que todos eles o são.
Talvez só Edmund Burke, um parlamentar britânico Whig (liberal) que por sua obra Reflexões sobre a Revolução na França é considerado o pai do conservadorismo britânico moderno, possa ser mais ou menos qualificado como tal, mas com o devido enquadramento e exposição de suas peculiaridades.
Bruno Garschagen é mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa e Universidade de Oxford.
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