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quarta-feira, 10 de março de 2010

O imutável conceito de Direito

Fonte: ORDEM LIVRE
08 de Fevereiro de 2010 - por Bruno Salama & Lucas Mendes



Na sua contribuição à teoria jurídica, Hayek recuperou a noção de “direito” como “direito natural”. Assim, inseriu-se em uma longa tradição de pensamento que remonta à Grécia Antiga, passa pelos teólogos medievais, por juristas pós-renascentistas e pelo iluminismo escocês, mas que ao longo do século XX foi perdendo vigor. Hayek lhe dá um novo sopro de vida, rearticulando-a em bases inovadoras.

Direito e legislação

A concepção jurídica de Hayek parte da distinção entre dois conceitos: direito e legislação. Direito, para Hayek, consiste em normas de conduta aplicadas. São normas que se baseiam no costume comunitário e evoluem através das práticas judiciais. As normas de direito se caracterizam por serem abstratas, iguais para todos os cidadãos e aplicáveis num número incerto de casos futuros. São portanto gerais, indistintamente aplicáveis, e prospectivas. O conceito de direito, na acepção hayekiana, relaciona-se com o conceito grego de nomos, já visto em resenha anteriore cujo estudo será aprofundado na próxima resenha. Já a legislação consiste nacriação intencional de leis instrumentais, nem sempre com caráter geral das normas de conduta e que, por vezes, expressam apenas a vontade de grupos de pressão, legisladores, ou soberanos.

Historicamente, o direito antecede a legislação. Hayek observa que “a legislação é um invento relativamente recente na história da humanidade” (p. 81). Sua consagração ideológica no mundo ocidental se daria com o positivismo jurídico de Hans Kelsen (1881-1973). Para Hayek, uma das características substantivas da teoria social moderna é a crença antropomórfica e primitiva de que as instituições humanas, inclusive as leis, consistem criações deliberadas do homem ou de alguma autoridade estatal. O fato de o direito surgir como uma instituição espontânea e, portanto, anteceder a legislação, chega a soar quase paradoxal para a mentalidade moderna.

A lei concebida como uma instituição criada pela vontade humana teve dois momentos importantes na história da civilização. Primeiro, no início da era clássica grega e, depois, com o inédito vigor construtivista a partir do século XVII, quando a humanidade adentra efetivamente na era do racionalismo, do cientificismo e do positivismo.

Como já observado em resenha anterior, a ideia de que a lei é um fenômeno cuja existência se deve à criação do legislador e que, portanto, pode ser alterada a seu bel-prazer, é para Hayek uma concepção gravemente equivocada do racionalismo construtivista. Para sustentar sua crítica ao construtivismo, Hayek se apoia em estudos de etologia e da antropologia cultural, ciências jovens que revelam o caráter espontâneo da evolução das instituições humanas em geral e do direito em especial.

O que a Etologia e a Antropologia Cultural têm a ensinar?

Hayek imprime vigor à sua teoria jurídica ao recorrer à Etologia e à Antropologia Cultural. Essas ciências mostram dois pontos importantes para a compreensão da evolução do direito. Em primeiro lugar, revelam que os indivíduos aprenderam a observar e a cumprir normas de conduta muito antes que estas fossem verbalizadas. Em segundo lugar, a Etologia e a Antropologia mostram que as normas evoluíram num determinado sentido justamente por estabelecerem uma ordem nas atividades do grupo como um todo.

Antes de tudo, é preciso entender o sentido que se está dando ao termo 'norma'. No contexto dessas discussões de Hayek sobre Etologia e Antropologia, 'norma' significa simplesmente “uma tendência ou disposição a agir ou não de determinada maneira, que se manifestará no que chamamos de prática ou costume”. Os integrantes do grupo internalizam essas normas, ainda que elas frequentemente se encontrem em conflito com seus desejos imediatos. Desse modo, a preservação e aplicação das normas cumprem a função de preservar o grupo.

Isso não quer dizer que as normas tenham sido propriamente inventadas. Num primeiro momento histórico, essas normas não eram sequer verbalizadas, e não tinham um propósito específico. Ao contrário, as normas surgiam como parte dos processos evolutivos espontâneos de criação de ordens. Em particular, as abstrações foram desenvolvidas pela mente muito antes que esta tivesse desenvolvido a linguagem. Daí a razão por que os animais superiores de um modo geral observam normas abstratas e aplicáveis a uma classe de ações bastante ampla.

Embora não seja resultado de um “desenho” normativo, a ordem global resultante das ações dos indivíduos tampouco é apenas o resultado das ações individuais. Além do conjunto das ações individuais isoladas, a ordem global resultante é composta por dois elementos adicionais. Primeiro, a relação entre as ações individuais com a ação dos outros indivíduos. Aqui a referência é ao caráter interativo, estratégico e defeedback que se estabelece entre as ações dos indivíduos. Segundo, as circunstâncias externas de cada ambiente e em cada momento específico do tempo, inclusive no tocante à geografia [1]. A eficácia da ordem que emerge da combinação desses elementos seria, no fim das contas, determinante para a preponderância de alguns grupos humanos sobre outros.

A observância de certas normas de conduta pôde ser verificada mesmo em sociedade animais, tais como na dos macacos japoneses, lagostins e sabiás. Hayek salienta que “em muitas sociedades animais, o processo de evolução seletiva produziu formas de comportamento com elevado grau de ritualização, regidas por normas de conduta que têm o efeito de reduzir a violência e outros métodos destrutivos de adaptação, assegurando assim uma ordem de paz”. (pp. 85-86). A capacidade de aprendizado e, portanto, de difusão de normas, chegou a produzir tradições pseudoculturais distintas entre grupos animais da mesma espécie, como elucidam estudos feitos com diversos animais superiores.

Nas sociedades humanas, por sua vez, tal fenômeno seria muito mais claro. As normas de conduta ou leis não verbalizadas teriam guiado a trajetória da humanidade por milênios. Mesmo nas sociedades modernas, ainda existem normas implícitas e normas verbalizadas. Por exemplo, diz Hayek, “duvido que alguém já tenha conseguido formular todas as normas que constituem o fair play”. O mesmo se poderia dizer, naturalmente, de uma grande quantidade de conceitos jurídicos tais como a boa-fé, a razoabilidade, e a lealdade. Hayek, porém, reconhece que nem todas as normas tradicionais foram eficazes em prover uma ordem duradoura, de modo que grupos humanos que se guiavam por normas mais eficazes acabavam se sobrepondo aos demais.

A formulação normativa

O exercício de autoridade por um soberano, diz Hayek, tem duas finalidades distintas. A primeira é a de ensinar ou fazer cumprir as normas de conduta aceitas na sociedade. A segunda é a de fazer determinações relativas a ações necessárias ao atingimento de certos propósitos. Em ambos os casos, ao formular normas, o soberano descobre algo já existente; não cria nada novo.

A primeira finalidade – ensinar ou fazer cumprir as normas de conduta aceitas na sociedade – se baseia no reconhecimento da legitimidade do chefe ou soberano, e depende do reconhecimento geral de uma norma correspondente. A necessidade de justificar essas determinações levaria o soberano a formular verbalmente determinadas normas. A enunciação verbal de normas pelo soberano também ocorria quando ele era chamado a dirimir litígios.

Esse processo de enunciação verbal das normas foi lento e complexo. As primeiras normas teriam existido apenas na forma de um “conhecimento de como” agir e não na forma de um “conhecimento de que” pudessem ser expressas de determinada maneira. Ainda que a linguagem rudimentar e primitiva pudesse expressar alguns comandos específicos, a imitação de determinadas ações ainda teria sido o principal recurso para a transmissão dos códigos de conduta. A principal lição a ser extraída daí é que embora nessa etapa as normas não estivessem postas sob forma expressa, elas, contudo, efetivamente existiam e cumpriram a função de nortear a ação e preservar a ordem.

Os primeiros esforços para expressar verbalmente as normas não implicaram na invenção de novas normas, mas pretenderam expressar prospectivamente as normas já amplamente observadas e praticadas. Quando algum litígio era levado ao juiz ou chefe de tribo, estes julgavam o caso de acordo com o precedente, sem inventar lei alguma, mas, se necessário, descobrindo novas leis implícitas no código existente, sem afrontar o corpo legal costumeiro.

Em alguns casos, como na Irlanda Celta (antes da invasão de Cromwell, no século XVII), havia juízes privados que resolviam disputas conforme demandava a clientela. Neste caso, o juiz não tinha vínculo com o chefe ou soberano dos grupos (thuats). Tanto num caso como no outro, o chefe ou juiz julgava o caso com base em decisões anteriormente tomadas, mesmo que tais decisões não tivessem respaldo em alguma lei escrita. Valia o costume e a tradição. Ou seja, o próprio nomos grego que, segundo Villey [2], representa “não tanto a lei escrita” mas “o costume próprio a uma polis; ordem social; direito”. É a este fenômeno social que Hayek se reporta como a própria constituição do direito e da lei. Alterá-lo ou violá-lo arbitrariamente consiste no abalo da noção do justo.

Todavia, a capacidade da linguagem em expressar tudo o que a mente é capaz de levar em conta ou, especificamente, de expressar as próprias normas praticadas e não verbalizadas, é uma capacidade bastante imperfeita. Porquanto, afirma Hayek, “as primeiras tentativas canhestras de verbalizar o que a maioria observava na prática em geral não conseguiam expressar apenas o que os indivíduos apenas levavam em conta na determinação de suas ações, nem esgotá-lo. Portanto, as normas não formuladas contêm, geralmente, ao mesmo tempo, mais e menos do que a fórmula verbal consegue expressar”. (p. 89).

Desse modo, o processo de formulação, ainda que não pretenda, acaba produzindo “novas normas”. Entretanto, as novas normas não se constituem num corpo deliberadamente criado, como sugerem os construtivistas. Com efeito, elas se sustentam e permanecem compreensíveis em razão da estrutura legal não expressa que as inspirou. As novas normas, na prática, não chegam a substituir o conteúdo das normas costumeiras as quais simplesmente pretenderam verbalizar.

Normas descritivas (factuais) e normas prescritivas

No tocante às normas não formuladas, Hayek chama a atenção para a distinção entrenormas descritivas ou factuais e normas prescritivas. As primeiras referem-se às inclinações e inibições inatas da pessoa ou àquelas normas que enunciam a recorrência regular de certas seqüências de eventos. Um exemplo poderia ser o de um indivíduo que deixa de levar uma ação adiante por uma inibição sobre a qual não tem consciência. Hayek questiona em que medida tal inibição não constituiria numa norma de conduta. Já as segundas, as normas prescritivas, declaram explicitamente quais normas “devem ser” observadas pelas pessoas e grupos. Há, porém, uma dificuldade em estabelecer em que momento específico da transição do primeiro tipo de norma para o segundo tornou significativa a sua distinção.

Além disso, cumpre notar que as normas factuais observadas pelas pessoas não dizem nada a respeito de que tais normas “devem” ser observadas e obedecidas. Em outras palavras, a existência de normas factuais não significa necessariamente que elas assumem um valor prescritivo incontestável ou mesmo recomendável.

Outra distinção importante traçada por Hayek é entre ação propositada e ação orientada por normas. Elas se distinguem por que na ação propositada o objetivo da ação é conhecido pelo agente. Enquanto que na ação guiada por normas, as razões pela qual o indivíduo julga determinado modo de agir eficiente nem sempre são conhecidas pelo agente. Se, nesses termos, Mises é o estudioso da ação propositada [3], podemos considerar Hayek o estudioso da ação guiada por normas.

Da distinção entre ação propositada versus ação guiada por normas, emerge o conceito de ação eficaz. Ela diz respeito tanto às ações cujos meios se mostraram eficazes para obter determinado fim desejado pelo indivíduo, quanto às ações que favoreceram a preservação e a ordem interna do grupo.

Decorrente disso, a ação individual pode ser vista com duas nuances distintas: a que visa à consecução de fins particulares, e a que se concentra na busca pela preservação da ordem como um todo. Porque, como explica Hayek, “com frequência, todos os membros de um grupo fazem determinadas coisas de determinada maneira não porque só assim alcançarão o que pretendem, mas porque somente agindo dessa forma se preservará a ordem do grupo na qual suas ações individuais têm probabilidade de êxito”. (p. 92).

Por conseguinte, Hayek argumenta que se determinados grupos adotaram ações mais eficazes, baseados em normas superiores que permitiram seu êxito e progresso, isso não significa que seus membros tenham estado plenamente cientes do porquê de terem agido de certa maneira. Ao contrário, seguidamente esses membros não sabiam e nem por isso o progresso e o desenvolvimento do grupo ficou comprometido. Hayek, enfim, destaca que as razões pelas quais indivíduos e grupos adotam determinadas normas de conduta nem sempre são – e na maioria das vezes não são – por motivos nítidos e explícitos.

O direito antigo

O núcleo da argumentação de Hayek consiste em assinalar que o direito emergiu muito antes que algum governante ou corpo legislativo o tenha criado ou inventado. Isso, todavia, não significa que historicamente a legislação não tenha desempenhado um papel importante. Significa, contudo, que os primeiros esforços legislativos tenham sido no sentido de “tornar conhecido um direito concebido como um legado inalterável” (p. 93). Todos os ‘legisladores’ antigos, tais como Ur-Nammu, Hamurábi, Licurgo, ou os autores das Doze Tábuas Romanas, não tencionavam criar novas leis, mas simplesmente enunciar qual era o direito.

Leis assentes na comunidade frequentemente representavam obstáculos ao governante. O interesse dos governantes, sugere Hayek, sempre fora o de transformar seu domínio numa organização propriamente dita e voltada para a execução de propósitos conscientes. Costumes internalizados pelos súditos são, então, uma parte importante da explicação da impossibilidade dos governantes de fazê-lo.

A lei, entretanto, não permanecia rigidamente presa ao seu imutável passado. Ela evoluía de acordo com as novas necessidades que surgiam. Além disso, essa evolução ocorria principalmente naquelas atividades que não podiam ser diretamente controladas pelo governo, e particularmente nas relações dos súditos com estrangeiros. Não foi pela orientação de governantes, mas pelo desenvolvimento de costumes sobre os quais se podiam basear as expectativas dos indivíduos que as normas de conduta vieram a ser aceitas. (p. 94).

Para Hayek, as verdadeiras normas de conduta – aquelas capazes de criar uma ordem espontânea sem propósito específico – tiveram seu mais avançado desenvolvimento nas cortes judiciais privadas que deliberavam sobre normas comerciais e marítimas. Os juízes e árbitros se concentravam em manterem-se fiéis aos atributos da genuína lei, onomos da comunidade. Ao mesmo tempo, enquanto pronunciavam o direito, verbalizavam normas e assim contribuíam para uma crescente rigidez e formalização do direito. O direito medieval, por exemplo, evoluiu graças às cortes privadas que estabeleciam normas de navegação e comércio marítimo, possibilitando o comércio internacional; as leis estatais eram proibitivas e contraditórias [4].

A tradição clássica e medieval

A concepção do direito como fruto da vontade humana foi primeiramente formulada na Grécia antiga. Mas essa concepção não chegou a ter forte influência prática na atividade política. Já na Atenas clássica, a ideia de que o direito fosse produto da vontade do governante ou de uma assembleia representativa estava ausente. Citando um estudo de A. H. M. Jones, Athenian Democracy [Democracia ateniana], Hayek destaca que na Atenas clássica “em tempo algum foi legal alterar a lei por um simples decreto da assembleia” (p. 94). O procedimento para alteração de leis era bem mais complicado, e só podia ser feito por um órgão especialmente eleito, chamado nomothetae.

Contudo, a dinâmica do processo evolutivo impõe seus sobressaltos e, conforme narra Lord Acton, mencionado por Hayek, a democracia ateniense foi arruinada quando o povo não mais sentiu o dever de observar as normas gerais e, em troca, propôs que o governo da maioria podia revogar, alterar e substituir as leis assentes na comunidade por decretos de sua vontade. Esta concepção de democracia escandalizou Aristóteles, que, vendo a ruína de toda uma ordem política e jurídica, negou que pudesse considerar a alegada democracia uma “constituição” [5].

O direito romano e o direito consuetudinário inglês que, por sua vez, foi a base do direito americano, não se originaram nem se desenvolveram por meio de legislação intencional. Tais tradições resultaram de um processo de descoberta de leis por juízes. Por isso, Hayek denomina estas tradições como “processo de desenvolvimento judicial” do direito em oposição ao “processo de desenvolvimento legislativo” que viria se afirmar somente a partir do absolutismo moderno com o indulto hobbesiano.

A nova velha lei

Na Idade Média, a Europa ocidental passou por um período de mil anos em que o direito foi considerado algo dado independente da vontade humana. Algo a ser descoberto e não inventado ou criado. Mas nesse período o direito não sofreu uma estagnação, como geralmente se pensa. O estudioso do período Fritz Kern, citado por Hayek, assevera que na época “quando surge um caso para o qual não se pode aduzir nenhuma lei válida, os homens da lei, ou juízes, farão nova lei convictos de estarem fazendo a boa lei antiga, que na verdade não lhes foi expressamente transmitida, mas existe tacitamente. Portanto, não criam a lei: ‘descobrem-na’." (p. 97) A nova lei é explícita ou implicitamente extraída da antiga, caso contrário, não consiste em lei genuína, pois afronta o próprio direito.

Mas esse processo costumeiro e espontâneo no desenvolvimento do direito foi, porém, debilitado na era moderna com o advento dos regimes monárquicos em que se retomaria a antropomórfica ideia de lei como vontade e criação do governante. A Inglaterra seria, na visão de Hayek, o único país na Europa em que o construtivismo jurídico não avançou. A principal resistência a esse novo fenômeno que varreu a Europa continental consistia na tradição do direito consuetudinário (common law) então solidamente presente na formação dos juízes. Essa tradição negava que o direito fosse produto de uma vontade, mas sim entendia como um fator limitador dos poderes governamentais, inclusive o do rei.

A Inglaterra seria, para Hayek, um oásis em que as "liberdades" medievais foram preservadas. Isso foi possível graças à tradição do direito consuetudinário ou mais especificamente, do direito natural inspirado nos escolásticos tardios: um direito que existia independente da vontade ou da razão de qualquer pessoa ou autoridade. Como enfatiza Hayek, “o direito se impunha aos tribunais independentes e era por eles desenvolvido.” (p. 99) O poder legislativo sempre fora a instância que deliberava normas organizacionais de governo e não leis propriamente ditas. Chegava a intervir sobre o direito somente para elucidar pontos duvidosos, nunca para criar leis ou substituí-las.

A função dos juízes num sistema jurídico

Se um sistema jurídico genuíno é aquele em que as leis são gerais, iguais para todos e prospectivas, então o sistema deve ficar afastado dos ditames do rei ou de uma assembleia de maiorias. A lei e o direito são frutos de um processo espontâneo de evolução, não da vontade arbitrária de algum legislador soberano. Só assim o sistema é capaz de garantir que cada indivíduo seja livre para buscar a consecução de seus objetivos.

A admiração de Hayek pelo direito consuetudinário inglês é indisfarçável: o direito resulta do processo de desenvolvimento judicial e é necessariamente abstrato — não visa fins específicos. Já o direito criado pelas autoridades pode não ser geral e abstrato, o que implica no desvio de seu sentido original.

O que o juiz do direito costumeiro deve levar em conta numa decisão é a expectativa das partes litigantes. O homem da lei deve se ater às expectativas que normalmente (baseadas no precedente) se pode esperar da transação. Em caso de frustração de expectativas por uma das partes, Hayek explicita que “o dever do juiz será informar às partes o que deveria ter norteado suas expectativas, não porque alguém lhe tivesse dito antes que essa era a norma, mas porque esse era o costume de que elas deveriam ter conhecimento.” (pp. 100-101)

O juiz não cria leis nem, portanto, emite decisões arbitrárias sobre qual deveria ser a expectativa das partes. Corretamente, se restringe a informar qual é a prática costumeira. Assim, a norma que guiará sua decisão pode muito bem ir contra interesses específicos e mesmo assumir consequências indesejáveis. A neutralidade em relação a fins particularistas é um dos atributos comuns da verdadeira lei.

Poderíamos dizer, contudo, que um corpo legislativo poderia elaborar normas abstratas, de caráter geral, a fim de preservar o estado de direito e uma ordem livre. Hayek, todavia, considera extremamente difícil que um corpo legislativo restrinja-se a promulgação exclusiva de tais normas. A tensão constante é que o governo está permanentemente emitindo normas organizacionais para ordenar as atividades dos súditos para a consecução de resultados explicitamente definidos. Assim, não seria difícil – como de fato não foi – que passasse a elaborar normas organizacionais tendo a aparência (formal) de leis genuínas.

De fato, a ideia ilusória do homem que, uma vez que chega ao poder, deixaria de perseguir seus fins particulares para atuar exclusivamente em favor do povo, é uma das principais revelações da escola econômica da escolha pública (public choice). E Hayek, mesmo antes dos estudos desta escola, nunca foi ingênuo para acreditar que o homem deixaria sua natureza de lado simplesmente por se tornar uma autoridade pública. A lei, portanto, tem o papel indispensável de também limitar as ações do governante, impedindo a qualquer custo que ele interfira na esfera da liberdade individual.

A lei e o papel do legislativo

Até agora o leitor estaria certo se concluísse que Hayek não admite função alguma para o poder legislativo. Hayek é suficientemente enfático em reconhecer que o direito deve evoluir nas mãos dos juízes e suficientemente claro em justificar os perigos que o estado de direito corre se as leis passarem a serem decididas pelo processo legislativo. Mas mesmo o direito oriundo de um processo evolutivo requer correção por legislação. Neste ponto, como veremos, as vulnerabilidades do pensamento de Hayek ficam bastante claras.

Hayek parte da constatação de que mesmo o direito que evolui judicialmente pode apresentar deficiências. Em primeiro lugar, ele pode compreender normas ruins, ou mesmo “péssimas”. (p. 102) Vale dizer, o direito costumeiro é (supostamente) superior de um modo geral, porém isso nem sempre ocorre. Em segundo lugar, a evolução do direito costumeiro é lenta. Por isso, o juiz que se vê diante de uma norma anacrônica está diante de um impasse: de um lado, deve atender as expectativas formadas de que sua decisão acompanhará os precedentes; de outro, reconhece Hayek, erros podem ter sido cometidos no passado por outros juízes. Por exemplo, certas decisões podem produzir consequências mais tarde reconhecidas como injustas.

Em terceiro lugar, o direito pode caminhar em uma direção ruim quando seu desenvolvimento tiver ficado a cargo de “membros de uma classe cujas concepções tradicionais fizeram com que estes considerassem justo o que não podia atender aos requisitos mais gerais da justiça.” (p. 103) Por que um legislativo poderia estar menos infenso a tais pressões de grupos do que os juízes, é algo que Hayek não chega a discutir. Com isso, neste ponto, seu argumento é frágil. No limite, a posição de Hayek é a de que a evolução espontânea do direito e dos mercados é imperfeita, ainda que superior à ordem artificial socialista ou construtivista.

A origem dos corpos legislativos

Historicamente, considera Hayek, não há como identificar com precisão o momento em que uma autoridade governamental pôde modificar deliberadamente o direito. Os governos emitiam normas organizacionais para a administração pública. Todavia, gradualmente coube ao governo a função de alterar normas abstratas à medida que se considerasse necessário mudá-las. Mas um poder legislativo com poder de criar normas organizacionais existiu muito antes de se atribuir a esse poder a faculdade de criar ou modificar as normas de conduta.

O problema é que existe uma linha tênue entre a função de emitir normas organizacionais e de estabelecer normas de conduta universais que regem o direito. O Estado caracteriza-se pelo poder exclusivo de cobrar impostos e levar adiante a realização de serviços específicos. À época, o estabelecimento de impostos e a decisão de ofertar certos serviços públicos requeria o apoio da comunidade ou ao menos dos súditos mais poderosos. Consequentemente, o Estado impunha uma situação ambígua aos súditos. Conforme Hayek, muitas vezes seria “difícil decidir se estes [os súditos] estavam sendo solicitados a atestar que isto ou aquilo era lei assente ou a aprovar determinada imposição ou medida considerada necessária para determinado fim.” (p. 105)

Essa ambiguidade gradualmente lapidou o cenário para que os governos tomassem a si o poder de elaboração intencional de leis, mesmo que explicitamente essa postura não fosse ainda legitimada. O passo seguinte foi a inevitável validação de que caberia ao poder legislativo o poder de criar leis; fatalmente todas as leis, se essa fosse a vontade das autoridades. Nesse contexto, foi relativamente fácil aceitar que o legislativo decretasse leis e não apenas normas organizacionais. Mais que isso: finalmente acreditar-se-ia que a legislação seria a única fonte do direito.

Obediência e soberania

A partir do momento em que foi aceita a ideia de que a legislação é a fonte suprema do direito, decorreram duas consequências que abalaram profundamente o império da lei e da liberdade. A primeira, foi a emergência da ideia de que deve haver um legislador supremo, com poder absoluto, seja ele um monarca ou uma assembléia democrática. A segunda é que qualquer coisa estabelecida por esse legislador supremo é lei e, consequentemente, só é lei aquilo que expressa a sua vontade. Nesta altura estamos na era moderna; na era em que o leviatã hobbesiano já havia movimentado intensamente as águas da ciência política e do direito.

Hayek foi suficientemente perspicaz para extrair as conseqüências negativas que o domínio destas ideias representaria para o Estado de Direito: “Assim interpretado, o direito, que no sentido anterior de nomos se destinava a ser uma barreira a todo poder, torna-se, ao contrário, um instrumento para o uso do poder.” (p. 106)

O problema é que a autoridade suprema de um governante não deve ser limitada pela sua própria vontade, mas pela fonte da qual o legislador deriva sua autoridade. Essa fonte, realça Hayek, consiste num “estado de opinião” ou “opinião consensual” que assegura a autoridade o poder de estabelecer normas cujos atributos não se referem à conteúdos particularistas, mas por conteúdos gerais e abstratos que qualquer norma de conduta deve possuir. Desse modo, a vontade da autoridade deve ser limitada por uma opinião consensual sobre certos atributos que os atos governamentais devem apresentar.

Hayek, partidário de Hume, acredita no poder da opinião para governar as questões humanas. Em síntese, isso consiste na afirmação de que “todo poder fundamenta-se na opinião e é por ela limitado.” (Hume, apud Hayek, p. 107) Por mais liberal e democrática que essa afirmação possa soar, verifique-se que mesmo os governos totalitários submetem-se a essa verdade. Não é a toa que em larga escala tais regimes sempre se preocuparam em controlar e manipular as informações, cientes que da opinião pública poderia emergir a derrocada de seu poder.

Portanto, a limitação dos poderes de um corpo legislativo não requer a existência de um poder soberano, mas sim de um estado de opinião que determine que só se aceitem como leis certas normas estabelecidas pelo legislativo. Nesse sentido, Hayek propõe – alternativamente às correntes positivistas do direito – que a opinião substitua a ideia de um poder onipotente e, portanto, transgressor do genuíno direito, protetor das liberdades individuais. No dizer de Hayek, o estado de opinião atua como uma força negativa impedindo que as autoridades exerçam poderes positivos sobre os cidadãos e a ordem espontânea da sociedade.

Vem daí a idéia de que uma sociedade livre deve se afastar ao máximo dos ditames arbitrários do positivismo jurídico, expresso em suas diferentes formas. O desafio, todavia, é ao mesmo tempo evitar que as ideias jurídicas inimigas da liberdade venham a predominar na própria opinião pública.

Notas finais

Em Hayek, a substância da norma jurídica é constitutiva do direito: só será direito a norma jurídica abstrata que prescreva a liberdade. Daí por que Hayek seja considerado um antipositivista. O positivismo jurídico, que é a doutrina prevalente nos tempos modernos, considera direito aquilo que é validamente (isto é, formalmente) transformado em lei pelo soberano. Para os positivistas, a lei é “feita” pelo homem. Já para um adepto do jusnaturalismo, ou direito natural, como Hayek, essas noções positivistas não fazem sentido: são frutos da falácia construtivista.

Alguns críticos de Hayek apontaram para o fato de que Hayek teria recorrido a esta concepção de direito a fim de deslegitimar seu contraponto ideológico, o socialismo. O argumento faz sentido, mas só até certo ponto. O jusnaturalismo de matriz hayekiana de fato deslegitima o direito socialista. Para Hayek, um direito socialista seria uma contradição em termos. Se o socialismo é, como entendia Hayek, o oposto da liberdade, então nenhuma norma que dê sustentação a um sistema socialista ser entendida como sendo “direito”. A estrutura jurídica socialista estaria calcada em legislação. Não tendo evoluído, mas tendo sido racionalmente construída, seria a expressão jurídica da tirania. Daí a oportunidade histórica do argumento de Hayek em meio aos embates da Guerra Fria.

Esse raciocínio, embora correto, obscurece a grandeza da contribuição de Hayek. Para além dos embates com os socialistas, a obra de Hayek discute de modo inovador temas relacionados à produção e circulação de informação, coordenação na sociedade, e evolução cultural. Seus estudos sobre evolução cultural objetivaram explicar como podem surgir ordens espontâneas, e como essas ordens espontâneas podem ser superiores às ordens artificiais. A ponta do iceberg está nos debates políticos; a base, mais sólida e profunda, na sua complexa epistemologia.


Notas

[1]
 Notes on The Evolution of Systems of Rules of Conduct. In HAYEK, Friedrich. Studies in Philosophy, Politics and Economics. 1967. pp. 66-81.
[2] VILLEY, Michel. Formação do Pensamento Jurídico Moderno. Martins Fontes. 2005. p. 17.
[3] MISES, Ludwig von. Ação Humana: um tratado de economia. Instituto Liberal, 1995.
[4] ROTHBARD, Murray. For a New Liberty: a libertarian manifesto. Mises Institute. Online edition. 2002. p. 228. In www.mises.org.
[5] “Onde as leis não governam não há constituição”. (A Política, livro IV).

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A teoria marxista da “ideologia de classe” não tem pé nem cabeça. Ou a ideologia do sujeito traduz necessariamente os interesses da classe a que ele pertence, ou ele está livre para tornar-se advogado de alguma outra classe. Na primeira hipótese, jamais surgiria um comunista entre os burgueses e Karl Marx jamais teria sido Karl Marx. Na segunda, não há vínculo entre a ideologia e a condição social do indivíduo e não há portanto ideologia de classe: há apenas a ideologia pessoal que cada um atribui à classe com que simpatiza, construindo depois, por mera inversão dessa fantasia, a suposta ideologia da classe adversária. Uma teoria que pode ser demolida em sete linhas não vale cinco, mas com base nela já se matou tanta gente, já se destruiu tanto patrimônio da humanidade e sobretudo já se gastou tanto dinheiro em subsídios universitários, que é preciso continuar a fingir que se acredita nela, para não admitir o vexame. Olavo de Carvalho, íntegra aqui.
"Para conseguir sua maturidade o homem necessita de um certo equilíbrio entre estas três coisas: talento, educação e experiência." (De civ Dei 11,25)
Cuidado com seus pensamentos: eles se transformam em palavras. Cuidado com suas palavras: elas se transformam em ação. Cuidado com suas ações: elas se transformam em hábitos. Cuidado com seus atos: eles moldam seu caráter.
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" Platão já observava que a degradação moral da sociedade não chega ao seu ponto mais abjeto quando as virtudes desapareceram do cenário público, mas quando a própria capacidade de concebê-las se extinguiu nas almas da geração mais nova. " Citação de Olavo de Carvalho em "Virtudes nacionais".