José Roberto F. Militão | Quarta-Feira, 25 de Março de 2009
No Congresso debatem-se os polêmicos projetos de leis raciais, que preveem cotas em universidades e até no mercado de trabalho e em concursos. São matérias que interessam a todos e dividem também os afro-brasileiros. Há os favoráveis, muitos bem organizados e bem financiados, e há os cidadãos comuns, não organizados - 62,3% são contrários às leis e cotas raciais, de acordo com pesquisa Cidan/IBPS de 20 de novembro.
Os argumentos contrários são de razões éticas e psicossociais, já que a aprovação dessas leis significa a imposição pelo Estado de uma identidade jurídica racial que hoje não temos, alterando substancialmente o status da cidadania de todos. A Constituição federal repudia a classificação racial e está conforme as convenções internacionais que, desde a 2.ª Guerra Mundial e desde a Declaração Contra o Racismo da Unesco, de 1950, têm reiterado o consenso de que a luta contra o racismo exige esforços estatais para a destruição da crença em raças. Isso pressupõe a necessária abstenção do Estado para não legitimar essa crença racial.
Desde então, nenhum país tem recorrido a leis raciais para conferir ou excluir direitos. Estamos trilhando a contramão da história. Sem pensar nas gerações futuras, leis e políticas públicas estão racializando o Brasil e violando os artigos 5.º e 19.º da Constituição, segregando direitos da cidadania. Não é disso que precisamos. Queremos que o Estado nos assegure o direito à igualdade de tratamento e de oportunidades, o que não equivale a privilégios raciais.
Outra objeção conceitual é que políticas de cotas raciais não são equivalentes a programas de ações afirmativas. As cotas compulsórias não têm acolhimento em razão dos males que produzem: aprofundam a crença racial, geram no meio social, a médio e a longo prazos, divisões, conflitos e ódios raciais, em que as vítimas são os afro-brasileiros. Os defensores de leis raciais ludibriam a boa-fé alegando que cota racial é ação afirmativa. Mas especialistas ensinam que "ação afirmativa" é a boa doutrina jurídica acolhida pelo Direito, destinada a coibir todos os tipos de discriminações atuais cotidianas, como racismo, sexismo, machismo, homofobia, etc. Portanto, nos moldes do que lecionava em 2001 o jurista Joaquim Barbosa, atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), "somente os inimigos de ações afirmativas é que as denominam por cotas raciais". Era essa, também, a opinião da ministra do STF Carmem Lúcia e do professor Mangabeira Unger: as ações afirmativas não fazem reparações do passado, não fazem cotas estatais, mas atuam com eficácia para que as discriminações históricas não persistam no presente. Portanto, os afro-brasileiros precisam de políticas públicas de inclusão, indutoras e garantidoras da promoção da igualdade, e não das cotas de humilhação.
No caso da escassez de vagas nas universidades, não é razoável que, sem qualquer novo investimento público, sob alegação de falacioso direito racial, venha o Estado retirar vagas de brancos pobres para entregá-las a pretos também pobres, oriundos de mesma escola pública e mesmo ambiente social. Basta, portanto, a reserva de 50% das vagas por meio de critérios sociais e de origem na escola pública, suficientes para ampliar oportunidades e igualar a disputa entre os pobres. Com isso também se reduz o privilégio dos ricos.
A realidade inaceitável é que a apologia de raças pelo Estado produzirá efeitos colaterais conhecidos e prejudiciais aos afro-brasileiros, pois se trata da crença racial edificada para oprimir. Ao Estado cabe atuar para destruir a crença em raças, neutralizar as discriminações no presente e induzir a igualdade de oportunidades. Leis raciais não servem para redução das desigualdades entre brancos e pretos, pois atacam os efeitos, mas aprofundam as causas, alimentando a perniciosa autoestima racial, em prejuízo da autoestima humana. Isso é violência contra a dignidade humana, pois deduz-se, nesse conceito, pelo senso comum, que há uma perversa hierarquia implícita, na qual a "raça negra" seria a "raça" inferior.
Nos EUA, desde 1990, importantes intelectuais afro-americanos como Thomas Sowell, Cornell West, Kevin Gray e inclusive o atual presidente, Barack Obama, denunciam que a autoestima racial está dilacerando a juventude afro-americana, vítima do niilismo social. Dados oficiais revelam que 1 em cada 3 jovens de 16 a 24 anos está sob a custódia da Justiça. Quase 2 milhões estão nas prisões, o equivalente a mais de 4% dos afro-americanos. Eles são 12% da população, correspondem a 60% dos presos e a 70% dos casos de gravidez na adolescência. São estatísticas que revelam a tragédia social numa sociedade que cultua uma profunda crença racial. Atinge inclusive os filhos da classe média. Não é justo que o Parlamento condene nossas crianças com a mesma crença de que pertencem a uma "raça negra e inferior". Essas leis, segregando direitos, aumentam a autoestima racial, mas enfraquecem o caráter e deformam a personalidade, afirmava Martin Luther King em Carta da Prisão de Birmingham (1963).
Até o presente momento, não somos vítimas dessa autoestima racial. Se nossos jovens talentos tiverem oportunidades iguais, sem o estigma da inferioridade implícita nas cotas raciais impostas pelo Estado, saberão aproveitá-las. A identidade racial é, portanto, assunto que diz respeito aos afro-brasileiros, pois nos afetará, enfraquecendo a autoestima humana. O Parlamento atento a preceitos éticos não deve cometer esse crime de lesa-humanidade. Com sabedoria, nossas avós ensinaram: somos homens e mulheres "de cor". Elas deduziam que a cor de pretos e pardos é uma característica biológica natural, diferente do conceito de "raça negra" - uma construção social para oprimir, violar a dignidade dos humanos de cor e sonegar a inteira humanidade, conforme dizia o líder afro-americano Malcom X.
José Roberto F. Militão, advogado, membro da Comissão de Assuntos Antidiscriminatórios Conad-OAB/SP, foi secretário geral do Conselho da Comunidade Negra do governo do Estado de São Paulo (1987-1995)
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