Cavaleiro: abaixo um dos capítulos do livro Barbaria em Berlim de G.K. Chesterton. O link para o livro completo aqui. Qualquer semelhança com o Brasil NÃO É mera semelhança. Lá como aqui deu-se o retorno dos bárbaros. Note o que está em negrito logo abaixo e entenderá rapidamente.
A recusa da reciprocidade
No capítulo anterior eu procurei mostrar que barbaria, no sentido que adotei, não é mera ignorância, ou mesmo mera crueldade. Tem um sentido mais preciso, e significa uma hostilidade militante a certas idéias necessárias ao homem. Tomei o caso do juramento ou do contrato, que o intelectualismo prussiano quereria destruir. Disse com insistência que o prussiano é um bárbaro espiritual porque se considera desligado de seu passado, tanto como um homem que tivesse simplesmente sonhado. Confessa ele que, tendo prometido respeitar uma fronteira numa segunda-feira, não pode prever a “necessidade” de a desrespeitar na terça-feira. Resumindo, ele é como a criança teimosa que, depois das mais razoáveis explicações, e das lembranças de arranjos já admitidos, diz sempre que “quer porque quer”.
Uma outra idéia, que preside os negócios humanos, é tão fundamental que, por isso, pode ser esquecida; mas agora pela primeira vez essa idéia é negada. Poderíamos chamá-la “idéia de reciprocidade”. O prussiano aparece como intelectualmente incapaz em relação a essa idéia. Eu creio que ele não pode conceber a idéia básica de todas as comédias, isto é, que aos olhos do outro é ele mesmo o outro. E se nós seguirmos essa pista através das instituições da Alemanha prussianizada, descobriremos quão curiosamente limitado tem sido o espírito deles nessa matéria. O germânico difere dos outros patriotas pela incapacidade de compreender o patriotismo. Outros europeus compadeceram-se dos poloneses ou dos galenses, por causa das margens violadas de seus rios; os alemães compadecem-se somente de si mesmos. Tomariam à força o Saverne e o Danúbio, o Tâmisa e o Tibre, o Garry e o Garrone, e continuariam a cantar melancolicamente a teimosa e mesquinha vigilância exercida sobre o Reno e a vergonha que seria se alguém lhes arrebatasse esse riozinho. É isso o que eu entendo por ausência do senso de reciprocidade; e acharemos essa marca em tudo que eles fazem como em tudo que fazem os selvagens.
Neste ponto, ainda uma vez, é preciso evitar cuidadosamente a confusão entre a alma do selvagem e a simples selvageria no sentido da brutalidade e do massacre, à qual se deixaram levar os gregos, os franceses, e os mais civilizados povos, nos momentos excepcionais de pânico ou vingança. As acusações de crueldade, em regra geral, são recíprocas. Mas para o prussiano — e este é o centro da questão — nada é recíproco. A definição do verdadeiro selvagem não depende de averiguar até que ponto ele maltrata os hóspedes e os cativos mais do que as outras tribos de homens. Define-se o verdadeiro selvagem dizendo que ele ri quando maltrata, e lamenta-se quando é maltratado. Essa extraordinária desigualdade de espírito se encontra em cada palavra e ato que nos vem de Berlim. Darei um exemplo. É claro que nenhum homem do mundo acredita em tudo que lê nos jornais, e que nenhum jornalista acredita na quarta parte do que lê. Estaríamos, por conseguinte, prontos a descontar uma grande parte das narrativas sobre atrocidades alemãs; poríamos em dúvida algumas histórias, negaríamos outras. Mas há uma coisa que não podemos negar ou por em dúvida: o sinete e a autoridade do Imperador. Na proclamação imperial é admitido que certas coisas “terríveis” foram cometidas; e são elas justificadas pelo que tinham de terrificante. A terrorização de pacíficas populações por meios que não fossem civilizados e quase não fossem humanos, era uma necessidade militar. Ora muito bem. Esta é uma política inteligível e, na mesma medida, um argumento claro. Um exército posto em perigo entre estrangeiros pode chegar às mais terríveis extremidades. Mas, virando uma página do diário público do Kaiser, vamos encontrá-lo escrevendo ao presidente dos Estados Unidos para se queixar que os ingleses estão usando balas dum-dum1, e violando vários artigos da convenção de Haia. Deixo de lado, momentaneamente, o cuidado de averiguar se há uma palavra de verdade nessas acusações. Sinto-me arrebatado em êxtase e satisfaço-me contemplando os olhos piscos do verdadeiro bárbaro, do Bárbaro Positivo. Suponho que ele ficaria perfeitamente perplexo se disséssemos que essas violações da convenção de Haia eram para nós “necessidades militares”; ou que os artigos daquela conferência não passam de farrapos de papel. Sentir-se-ia ofendido se lhe disséssemos que as balas dum-dum, justamente por serem terríveis, nos seriam muito úteis para manter boa ordem entre os alemães nas cidades conquistadas. Faça o que fizer, não pode se livrar dessa idéia que ele, sendo ele e não nós, tem o direito de transgredir a lei e de apelar para a lei. Dizem que os oficiais alemães gostam de um jogo chamado Kriegsspiel, que quer dizer jogo de guerra. Mas na verdade eles não poderiam praticar jogo algum, porque é próprio de todo jogo ter as mesmas regras para ambos os lados.
Tomando uma por uma as instituições alemãs, observamos o mesmo fenômeno, que não importa apenas pelo sangue derramado ou pela bravata militar. O duelo, por exemplo, pode ser legitimamente considerado um costume bárbaro, mas neste caso a palavra seria usada com outro sentido. Há duelos na Alemanha; mas também os há na França, na Itália, na Bélgica e na Espanha; realmente, o duelo existe em toda parte onde existem dentistas, jornais, banhos turcos, almanaques, e outras pragas da civilização; exceto na Inglaterra e numa parte da América. É possível que o leitor veja no duelo uma relíquia histórica das mais bárbaras nações sobre as quais se edificaram os estados modernos. Ou então pode-se afirmar que o duelo é, em toda parte, um sinal de alta civilização, sendo sinal de um senso de honra mais apurado, de uma vaidade mais suscetível, ou de um maior temor de descrédito social. Em qualquer dos pontos de vista, porém, devemos admitir que a essência do duelo é a igualdade de armas. Não chamarei, portanto, de bárbaros, no sentido que estou aqui adotando, os duelos dos oficiais alemães e mesmo os combates de sabre que são usuais entre os estudantes alemães. Não vejo motivos para negar a um moço prussiano o direito de ter o rosto cheio de cicatrizes, uma vez que ele as aprecia; ainda mais, chego a crer que muitas vezes essas cicatrizes são os únicos sinais a redimir a irremediável insignificância de sua fisionomia. O duelo pode ser defendido, a caricatura do duelo pode ser defendida.
Mas o que não pode absolutamente ser defendido é aquilo que é peculiar à Prússia e de que já temos ouvido contar inúmeras histórias, algumas das quais são certamente verdadeiras. Eu diria duelo unilateral. Refiro-me à idéia de haver alguma dignidade em manejar uma espada contra um homem que não tem à mão uma espada: um criado, um caixeiro ou mesmo um menino de colégio. Um dos oficiais do Kaiser, em Saverne, foi encontrado retalhando diligentemente um aleijado. Quero evitar, nestas discussões, qualquer apelo aos sentimentos. Não percamos nossa serenidade perante a simples crueldade do ato, e prossigamos estritamente as distinções psicológicas. Muitos outros, além dos oficiais prussianos, assassinaram pessoas indefesas para roubar, para violar, ou simplesmente para matar. O que é importante é que em nenhum outro lugar, senão na Prússia, há uma teoria da honra associada a esses atos, como também não existe tal código para envenenadores e batedores de carteira. Nenhum cidadão francês, italiano, inglês ou americano se gabaria de ter conseguido uma afirmação de sua personalidade pelo fato de ter retalhado à espada algum ridículo quitandeiro que não tivesse à mão outra coisa além de pepinos. Dir-se-ia que a palavra que traduzimos do alemão por “honra”, tem realmente um significado diferente em alemão. Parece-me que significa mais exatamente o que chamamos “prestígio”.
O fato fundamental, por conseguinte, é a ausência da idéia de reciprocidade. O prussiano não é suficientemente civilizado para o duelo. Mesmo quando cruza a espada conosco, seus pensamentos não se parecem com os nossos; quando, ambos, glorificamos a guerra, são coisas diferentes que estamos glorificando. Nossas medalhas são trabalhadas como as suas, mas não significam a mesma coisa; nossos regimentos são aplaudidos como os seus, mas o sentimento que mora nos corações não é o mesmo; a Cruz de Ferro está no peito de seu rei, mas não é o sinal de nosso Deus. Pois nós seguimos o nosso Deus — ai de nós — com muitas recaídas e contradições, mas ele segue o seu muito compenetradamente. Através de todas as coisas que temos examinado — o caso das fronteiras nacionais, o problema dos métodos militares, as questões de honra e de defesa própria — encontramos sempre, no que se refere ao Prussiano, uma coisa de atroz simplicidade, uma coisa simples demais para nosso entendimento: a suposição de que a glória consiste em empunhar o ferro e não em defrontá-lo.
Se outros exemplos fossem necessários, encontraríamos facilmente uma centena. Deixemos, por enquanto, as relações de homem para homem nesse encontro que se chama duelo; e tomemos as relações entre homem e mulher, nesse imortal duelo que se chama casamento. Aqui descobriremos, novamente, que as outras civilizações cristãs aspiram a uma espécie de igualdade que pode, embora, ser considerada irracional ou perigosa. Assim é entre as pessoas das classes ditas educadas, na América e na França, que encontramos os dois extremos no tratamento da mulher. Os americanos escolheram o risco da camaradagem; os franceses a compensação da cortesia. Na América é praticamente possível que um moço saia com uma moça para que ele chama (lamento profundamente dizê-lo) um divertimento; mas ao menos o homem vai com a mulher, tanto como a mulher vai com o homem. Na França, a moça é resguardada como uma freira enquanto não se casa; mas quando se torna mãe é realmente uma mulher sagrada e quando se torna avó é um terror sagrado. Em qualquer desses extremos a mulher leva alguma coisa desta vida. Há somente um lugar onde ela pouco ou nada aproveita: o norte da Alemanha. A França e a América, a esse respeito, aspiram desigualmente a uma igualdade — a América, por similaridade, a França por contraste. Mas a Alemanha do norte aspira deliberadamente à desigualdade. A mulher fica em pé, não mais irritada do que um copeiro; o homem fica sentado, não menos à vontade do que um convidado. Aí temos uma ria afirmação de inferioridade como o caso do sabre e do caixeiro. “Vais tu tratar com mulheres”, diz Nietzsche, “não te esqueças do chicote”. Note bem o leitor que ele não diz “o cabo de vassoura”, como ocorreria mais naturalmente ao espírito de um espancador de mulheres mais comum e mais cristão, porque a vassoura faz parte da vida doméstica e tanto pode ser manobrada pela mulher como pelo homem. O que aliás acontece às vezes. A espada e o chicote, ao contrário, são armas de uma casta privilegiada.
Passemos agora da mais próxima diferença, a que existe entre marido e mulher, à mais distante das diferenças, aquela que existe entre as longínquas e desligadas raças, que raramente se entraram face a face, e que nunca se tingiram com o mesmo sangue. Ainda aqui acharemos o mesmo invariável princípio do prussiano. Qualquer europeu pode ter um genuíno receio do “perigo amarelo”; e muitos ingleses, franceses e russos sentiram-no e exprimiram-no. Muitos podem dizer, e disseram-no, que o chinês pagão é efetivamente muito pagão; que, se ele um dia se levantar contra nós, espezinhará, torturará, devastará tudo, num estilo, de que os orientais são capazes, e que os ocidentais não conhecem. Não duvido da sinceridade do Imperador da Alemanha quando se esforça por nos mostrar que pesadelo de monstruosidade e abominação seria essa campanha, se algum dia se realizasse. Aí vem, entretanto, a cômica ironia que infalivelmente acompanha as tentativas que o prussiano faz para ser filosófico. Pois o Kaiser, após ter explicado às suas tropas a importância de evitar a barbaria oriental, ordena-lhes no mesmo instante que se tornem bárbaros orientais. Diz-lhes, em muitas palavras, que sejam hunos: e que nada deixem para trás em pé e com vida. Na realidade, ele oferece francamente um novo batalhão de aborígenes tártaros ao Far-East, no lapso de tempo apenas necessário para um perplexo hanoveriano virar tártaro. Qualquer pessoa que tenha o penoso hábito da reflexão já terá percebido aqui, num relance, e mais uma vez: o princípio da não-reciprocidade. Cozido e reduzido a seus ossos lógicos, aquele pensamento significa simplesmente o seguinte: “Eu sou um alemão e você é um chinês. Eu, portanto, sendo um alemão, tenho o direito de ser chinês. Mas você não tem o direito de ser um chinês porque você não passa de um simples chinês”. Esse raciocínio é provavelmente um dos vértices atingidos pela cultura alemã.
O princípio desprezado nesse caso, que pode ser denominado Mutualidade pelas pessoas que não entendem ou não gostam da palavra Igualdade, não permite tão clara distinção entre o prussiano e os outros povos, como o primeiro princípio de um infinito e destrutivo oportunismo, ou, em outras palavras, o princípio de não ter princípios. Também não permite esse segundo princípio uma tão clara tomada de posição relativamente às outras civilizações ou semicivilizações do mundo. Há sempre uma idéia de juramento e compromisso entre as mais rudes tribos e nos mais sombrios continentes. Mas pode ser afirmado, a respeito desse elemento de reciprocidade, mais fino e imaginativo, que um canibal em Bornéu o compreende quase tão pouco como um professor em Berlim. Uma estreiteza angular e uma seriedade unilateral é o defeito do bárbaro em qualquer ponto do globo. Talvez venha daí, pelo que julgo saber, a significação do olho único dos ciclopes: a impossibilidade de o bárbaro ver o contorno completo das coisas ou fitá-las sob dois pontos de vista. Em conseqüência, torna-se uma besta cega e um devorador de homens. Nada define mais globalmente o selvagem, como já disse, do que sua incapacidade para o duelo. É o homem que não pode amar — e até odiar — o seu próximo como a si mesmo.
Mas essa qualidade na Prússia tem uma conseqüência que se relaciona com o inquérito feito sobre as civilizações inferiores. Ela resolve ao menos, e de uma vez por todas, a questão da missão civilizadora da Alemanha. Os alemães são, evidentemente, o último povo do mundo a que se possa confiar tal tarefa. A vista deles é tão curta moralmente como fisicamente. Que vem a ser o sofisma da “necessidade” senão uma inaptidão de imaginar o amanhã? Que significa a não-reciprocidade senão a incapacidade de imaginar, já não digo um deus ou demônio, mas simplesmente um outro homem? Serão esses que deverão julgar a humanidade? Os homens de duas tribos africanas sabem não somente que todos eles são homens, mas que todos são pretos. Neste ponto estão seriamente e incontestavelmente mais adiantados que o intelectual prussiano que ainda não chegou a compreender que aqui todos somos brancos. O olho vulgar não consegue perceber no nórdico teutão nenhum sinal que o destaque especialmente entre as mais incolores espécies da humanidade ariana. Ele é simplesmente um homem branco, com tendências para o cinza ou para o pardo2 Apesar disso, ele explicará, em solenes documentos oficiais que a diferença entre nós é a que existe entre “a raça de senhores e a raça inferior”. O colapso da filosofia germânica ocorre sempre no começo dos argumentos, mais do que no desenvolvimento e na conclusão; e a dificuldade neste ponto, está em que não existe outro meio de verificar qual é a raça superior a não ser investigando qual é a sua própria raça. Se não conseguimos (como é geralmente o caso), ficamos reduzidos à absurda ocupação de escrever a história dos tempos pré-históricos. Mas eu sugiro, com perfeita seriedade, que, se os alemães puderem transmitir sua filosofia aos hotentotes não há razão plausível para que não transmitam também o senso de seriedade aplicável à raça dos hotentotes3. Se eles chegarem a entrever a delicada sombra que distingue um gota de um galense4, não haverá meio de evitar que sombras semelhantes elevem o selvagem acima dos outros selvagens; e que um Ojibway não descubra que possui mais uma pinta de vermelhidão do que os Dacotas5; ou que um negro do Camerun6 diga que não é tão negro como o pintam. Porque esse princípio inteiramente arbitrário de superioridade racial é a última e a pior das recusas de reciprocidade. O prussiano convida todos os homens a virem admirar a beleza de seus grandes olhos azuis. Se admiram, fica admitido que têm olhos superiores; se não admiram, fica provado que não têm olhos para ver.
Por isso, onde estiver o mais miserável sobrevivente de nossa raça, perdido e ressecado no deserto ou sepultado para sempre sob os escombros de civilizações falidas — se ele ainda tiver uma débil lembrança que homens são homens, que contratos são contratos, que toda questão tem dois lados ou mesmo que é preciso serem dois para uma querela, então, esse sobrevivente terá o direito de resistir à Nova Cultura, a faca, a pau e a padre; porque o prussiano começa sua cultura pelo ato que é a destruição de todo pensamento criador e de toda ação construtiva. Ele quebra na alma esse espelho onde o homem vê a face de seu amigo — e de seu inimigo.
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