Por Diogo G.R. Costa
Diqing Jiang saiu da China para fazer cursos de pós-graduação nos EUA. Hoje trabalha comigo em Washington. Na última virada do ano chinês, Diqing ligou para sua família. Fazia quatro anos que ele não visitava a China. "Vamos ter porco neste ano-novo, mãe?", perguntou ao telefone. Ele se lembrava de comer carne de porco apenas uma vez por ano. Mas as coisas haviam mudado: "Meu filho, agora podemos comer porco quando quisermos, não precisamos mais esperar o ano-novo." Diqing estava desatualizado. A China estava enriquecendo. Sua família estava enriquecendo. Prosperidade significa mais comida na mesa.
Mas o que Diqing vê como bênção é considerado por observadores internacionais uma espécie de maldição. O preço dos alimentos não pára de aumentar. Os jornais mostram fotos de protestos em diversos países, as famílias dos países ricos vêem seu poder aquisitivo diminuir e as dos países pobres sentem a fome apertar. O principal culpado, dizem especialistas dentro e fora do Brasil, é o aumento da renda per capita nos países do Sudeste Asiático. André Petry escreveu na revista Veja (28/5) que "o que ajudará a perpetuar o problema é o aumento do consumo de alimentos, sobretudo na China e na Índia".
Leitores de Shakespeare podem se lembrar de Lancelote em O Mercador de Veneza. Num diálogo com Jéssica, uma judia, sobre seu casamento com Lorenzo, um cristão, Lancelote ironiza que um maior número de judeus convertidos ao cristianismo aumentará o preço da carne de porco.
Os preços informam a relação de oferta e demanda sobre determinado produto. É verdade que uma expansão significativa da demanda mundial por alimentos eleva o preço desses produtos. Mas a história não acaba aí. Um aumento de preços cria incentivos para que recursos materiais e intelectuais sejam deslocados para saciar a nova demanda. Investe-se capital e implementam-se novas tecnologias para a produção de alimentos. No longo prazo, esse processo aumenta a produtividade - e os alimentos ficam mais baratos. Esse processo é o que o economista Julian Simon chamava de a história da economia agrícola.
O problema, portanto, não é o aumento da demanda. É o não-aumento da oferta. A demanda por computadores e carros aumentou nos últimos anos, mas esses produtos ficaram mais baratos. Uma investigação que pretenda solucionar o problema deve perguntar-se por que o ajuste da produção está tendo dificuldades para acompanhar o maior consumo de alimentos.
É aí que entram as perversas intervenções governamentais. Nos EUA, a política do etanol desviou a produção do milho para os tanques dos carros e aumentou o preço do cereal, mundialmente. Na Europa, os subsídios agrícolas - que chegam a US$ 53 bilhões anuais - fecham o mercado à competição dos agricultores de países em desenvolvimento, o que limita as possibilidades de avanço agrícola em diferentes partes do mundo. Em países pobres, uma terrível combinação de falta de infra-estrutura nas estradas, blitze que causam engarrafamentos intermináveis e impostos que encarecem técnicas de refrigeração e conservação de alimentos faz metade da comida se estragar antes que chegue ao consumidor. E ainda há as restrições ao livre-comércio. Metade de toda a comercialização mundial de arroz não é feita num ambiente de livre mercado, mas é administrada por conselhos políticos. Não surpreende, por isso, que apenas de 5% a 7% do arroz do mundo seja comercializado internacionalmente.
Restringir as exportações, como fizeram os governos da Rússia, Argentina e Índia, só piora o problema e torna ainda mais distante a existência de um livre mercado de produtos agrícolas. As conseqüências são óbvias. Imagine se os Estados brasileiros criassem tarifas para o comércio doméstico. Se o Rio Grande do Sul impusesse um imposto sobre o arroz exportado para a Bahia ou se o Rio de Janeiro cobrasse 30% de tarifa de toda a soja vinda de Mato Grosso, menos arroz e soja chegariam às prateleiras, e a um preço mais alto. É isso que as restrições comerciais fazem em escala mundial. Estima-se que a remoção de todas as barreiras comerciais enriqueceria o mundo em até US$ 2,6 trilhões por ano.
Uma demanda global de alimentos exige uma oferta global de alimentos. Países pobres e ricos devem abandonar as barreiras de importação e exportação que impedem a circulação de comida - e tornam múltiplas refeições um luxo, fazendo da nutrição um privilégio de poucos. O aumento do consumo mundial é o incentivo que move o progresso agrícola e permitiu que cada vez menos terra e trabalho fossem necessários para alimentar cada vez mais gente. A história do moderno mundo capitalista indica que, no longo prazo, com o aumento populacional, a comida fica mais barata, seja medida em relação ao preço do trabalho ou aos bens de consumo.
Essa é uma razão para vermos com bons olhos o aumento do consumo de alimentos no Continente Asiático. Mas não a principal. O maior motivo para comemorarmos esse aumento na demanda é pensar que milhões de pessoas podem comer, e comer melhor. Mais indianos já podem fazer duas refeições por dia. Os chineses não precisam mais se alimentar quase que exclusivamente de grãos. A família de Diqing não precisa esperar pela virada do calendário para comer carne de porco.
A prosperidade de milhões de seres humanos merece ser celebrada como uma conquista civilizacional de dimensões globais. São os obstáculos ao direito dos povos de comercializar livremente que devem ser condenados e demolidos. Os Lancelotes de nossa época estão errados. Em longo prazo, nem o cristianismo nem o capitalismo aumentam o preço da carne de porco.
Diogo G.R. Costa é editor de OrdemLivre.org
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