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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Bode expiatório - I e II

OLAVO DE CARVALHO

Diário do Comércio, 17 e 18 de outubro de 2011 

Parte I


Que os brasileiros vêm-se tornando um povo de egoístas cínicos não é nenhuma grande novidade. Mas no Estadão de 9 de outubro o prof. José de Souza Martins explica o fenômeno como reação coletiva à falta de liberdade que a nação sofreu no período militar. Teríamos passado, segundo ele, da repressão à esculhambação. Apelar tão resolutamente à metáfora hidráulica de fluxo e refluxo como princípio explicativo já é, em si, um delito mental que não se deveria perdoar num sociólogo, especialmente quando este vem com o título de “professor emérito”. O prof. Martins não recorreria a esse automatismo pueril se ele não lhe desse a oportunidade de cumprir o mandamento número um do Decálogo Uspiano: lançar a culpa de tudo, sempre e invariavelmente, na maldita ditadura.

Infelizmente essa intenção devota esbarra em alguns obstáculos invencíveis.

Metade da população brasileira tem menos de 30 anos e não pode ter sofrido nenhuma privação de liberdade num regime que terminou duas décadas e meia atrás. Só o que essa gente sabe da ditadura é o que lhe foi transmitido por professores, jornalistas e artistas de TV – os “intelectuais” no sentido elástico que Antonio Gramsci dá ao termo. O mau comportamento dos brasileiros não pode portanto ser uma reação direta a experiências de trinta ou quarenta anos atrás, mas o resultado da educação que receberam, das crenças e reações que aprenderam. Se alguém achou que as incomodidades sofridas no período militar justificavam a permissão para a busca irrefreada de satisfações egoístas como uma espécie de compensação psicológica, foram os “intelectuais”, não a população em geral. Esta limitou-se a praticar o que eles lhes ensinaram – e quando o resultado começou a aparecer, com toda a sua feiúra deprimente, logo veio um porta-voz dos “intelectuais” para fazer o que eles costumeiramente fazem: apagar as pistas de suas próprias ações, jogar as culpas nos outros e aproveitar o desastre como oportunidade para reforçar sua autoridade de conselheiros da nação.

Mas também é errado imaginar que dentro do próprio círculo de “intelectuais” uma ética de auto-indulgência viesse como resposta a uma situação local especialmente opressiva. Na década de 60, a onda hedonista brotou simultaneamente em dezenas de países, a maioria dos quais não passou por ditadura militar nenhuma. Nos focos principais de onde a moda irradiou – a França e os EUA –, os mais extremados apologistas do “prazer” desfrutavam não só de uma liberdade invejável, mas de financiamentos bilionários vindos das altas esferas do establishment (a história de Alfred Kinsey é, sob esse aspecto, modelar: v. Judith Reisman, Kinsey: Crimes and Consequences, Institute for Media Education, 3rd. ed., 2003). Não faz sentido atribuir a causas locais um fenômeno de escala universal. Os “intelectuais” da taba aderiram à ideologia do prazer porque quiseram, porque era a moda internacional, e não porque a isso os forçasse o governo militar. Quando a repassam a jovens e crianças nas escolas, estão apenas formando as novas gerações à sua imagem e semelhança, mas sempre, é claro, com o cuidado de se isentar preventivamente de qualquer responsabilidade pelas eventuais conseqüências adversas.

Ademais, a análise do prof. Martins erra também por anacronismo. O culto do prazer a todo preço não surgiu no Brasil após o advento da Nova República, mas já nos anos 60, fomentado não só pela influência das modas culturais importadas, mas por toda uma militância local onde se destacaram importantes órgãos de mídia como RealidadeNova e Cláudia, sem contar uma infinidade de publicações menores como O PasquimExRolling StonesFlores do Mal e não sei mais quantas, todas dirigidas por ativistas de esquerda empenhados em destruir o capitalismo por via vaginal, o cristianismo por via ano-retal ou ambos por via dupla. Uma coisa não pode ser reação tardia a outra coisa quando ambas acontecem simultaneamente.

Para piorar, o prof. Martins não assinala como sintoma da desordem moral nacional só a busca de satisfações imediatas a todo preço, mas também a cobiça financeira, a sede de bens materiais. Ora, como é possível explicar esse fenômeno como reação de alívio subseqüente a uma situação repressiva, e ao mesmo tempo acusar a ditadura de ter fomentado o espírito capitalista, o consumismo, o culto da mercadoria e o império da “lei de Gérson”? Ou a ditadura incentivou as pessoas a subir na vida por meio do capitalismo ou as inibiu de fazer isso, alimentando nelas um desejo insatisfeito a que só puderam dar vazão na Era Lula. As duas coisas ao mesmo tempo, não pode ser.

(Continua.)



Parte II



Falando em Era Lula, também não faz sentido louvar o governo petista por ampliar a participação popular no mercado interno (à custa, diga-se em passant, de um endividamento nacional suicida) e ao mesmo tempo reclamar contra a avidez com que os novos consumidores se lançam à conquista de bens a que antes não tinham acesso. Ninguém sai comprando tudo quanto é bugiganga eletrônica só para se vingar de uma ditadura da qual mal ouviu falar.

Aliás, no tempo dos militares ocorreu ascensão social idêntica (o então chamado “milagre brasileiro”), resultando em idêntica febre de consumo. Mas, na ocasião, os porta-vozes da esquerda não se lembraram de festejar a inclusão social maciça que isso representava (maior, proporcionalmente, do que tudo o que os tão badalados programas sociais do governo Lula viriam a realizar). Ao contrário: concentraram suas baterias no ataque moralista ao “consumismo”, como se fosse causa sui e não efeito da melhor distribuição de renda. Quando o mesmo fenômeno se repete em pleno apogeu do lulismo, como fazer para louvar a distribuição de renda sem culpar o governo pelo consumismo resultante? É fácil: desvincule a causa do efeito e debite este último na conta de um governo de trinta anos atrás. Se isso é sociologia, eu sou o José de Souza Martins em pessoa. E olhem que, dos sociólogos uspianos, ele não é o pior.

Até os exemplos que o emérito escolhe para ilustrar a maldade dos corações brasileiros são erros de perspectiva. Motoristas que atropelam pessoas e só tratam de evadir-se da punição legal, sem a mínima piedade pelas vítimas, são decerto tipos execráveis, mas sua insensibilidade é titica de galinha num país onde de quarenta a cinqüenta mil pessoas são assassinadas anualmente com a ajuda de organizações queridinhas do partido governante e não se ouve sequer um debate a respeito. Nossos “intelectuais” esbravejaram mais contra 25 mil baixas na guerra do Iraque do que contra violência mortífera duplamente maior que se comete contra seus próprios compatriotas a cada 365 dias. Será demasiado concluir que seu ódio aos EUA é infinitamente mais intenso que seu amor ao povo brasileiro? E por que raios uma geração de pessoas educadas nessa mentalidade deveria ser um primor de bons sentimentos?

O prof. Martins reclama: “Falta uma bolsa de valores sociais, que meça diariamente quanto perdemos de nós mesmos, de nossa dignidade, de nossa autoestima, da estima e do respeito pelo outro.” Tem razão, mas a medição diária é impossível sem uma escala constante do valor que se mede. Ao longo da história brasileira, essa escala foi uma só e a mesma, desde a chegada de Pedro Álvares Cabral até o advento da “Nova República”: o cristianismo.
O prof. Martins talvez acredite em moralidade sem religião, mas há de reconhecer que uma civilização integralmente “laica” (termo errado, mas usual) é uma hipótese futura, não uma realidade historicamente constatável. E, no caso brasileiro, nem toda a sociologia da USP somada pode ocultar a obviedade de que a manifesta descristianização da sociedade, da educação, da mídia e da cultura tem algo a ver com o aumento da violência, da crueldade, do egoísmo e da insensibilidade.

Para fugir às suas responsabilidades históricas, os “intelectuais” tapam os olhos até às conseqüências mais óbvias e patentes das escolhas a que se entregam com todo o furor entusiástico da paixão militante. Numa época em que a mera fantasia sexual é considerada oficialmente mais valiosa, mais digna, mais merecedora da proteção estatal do que o sentimento religioso da população, é ridículo esperar que o senso dos valores não acabe se dissolvendo numa névoa turbulenta e a confusão resultante não se traduza em atos de maldade cotidiana cada vez mais aceitos como normais e improblemáticos. E não é preciso nenhuma bolsa de valores para saber de onde vem a perda: o Brasil que escandaliza os sentimentos do prof. Martins é criação exclusiva da sua geração de “intelectuais”. Qualquer reclamação que venha dessa fonte é mera camuflagem de culpas, é mero sacrifício ritual de um bode expiatório prêt-à-porter.

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A teoria marxista da “ideologia de classe” não tem pé nem cabeça. Ou a ideologia do sujeito traduz necessariamente os interesses da classe a que ele pertence, ou ele está livre para tornar-se advogado de alguma outra classe. Na primeira hipótese, jamais surgiria um comunista entre os burgueses e Karl Marx jamais teria sido Karl Marx. Na segunda, não há vínculo entre a ideologia e a condição social do indivíduo e não há portanto ideologia de classe: há apenas a ideologia pessoal que cada um atribui à classe com que simpatiza, construindo depois, por mera inversão dessa fantasia, a suposta ideologia da classe adversária. Uma teoria que pode ser demolida em sete linhas não vale cinco, mas com base nela já se matou tanta gente, já se destruiu tanto patrimônio da humanidade e sobretudo já se gastou tanto dinheiro em subsídios universitários, que é preciso continuar a fingir que se acredita nela, para não admitir o vexame. Olavo de Carvalho, íntegra aqui.
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‎"O que me leva ao conservadorismo é a pesquisa e a investigação da realidade. Como eu não gosto de futebol, não gosto de pagode, não gosto de axé music, não gosto de carnaval, não fumo maconha e considero o PT ilegal, posso dizer que não me considero brasileiro - ao contrário da maioria desses estúpidos que conheço, que afirma ter orgulho disso". (José Octavio Dettmann)
" Platão já observava que a degradação moral da sociedade não chega ao seu ponto mais abjeto quando as virtudes desapareceram do cenário público, mas quando a própria capacidade de concebê-las se extinguiu nas almas da geração mais nova. " Citação de Olavo de Carvalho em "Virtudes nacionais".