Por João Pereira Coutinho em 26/11/2007
Eu sei que existem brasileiros que sonham com a Europa. Não falo de Paris e de férias na Torre Eiffel. Falo de viver na Europa, trabalhar na Europa, quem sabe casar e envelhecer na Europa.
Por favor, mudem de idéias. Qualquer europeu sensato, com dois neurónios em razoável funcionamento, trocaria a Europa pelo Brasil. Existe insegurança nos trópicos? Pois existe. Mas na Europa existe segurança a mais e, com uma União Européia que todos os dias aumenta os seus poderes legislativos sobre a vida do mais insignificante cidadão, a coisa começa a ganhar contornos fantasmagóricos.
Pior: de acordo com a revista alemã "Der Spiegel", o cenário vai piorar. A União Européia é liderada por 27 comissários (não eleitos, entendam) e os 27 competem entre si pelo troféu definitivo: como produzir o maior número de regulamentos idiotas para transformar um adulto europeu numa criança de 4 anos?
A paranóia legislativa ataca todas as áreas da vida humana, do trabalho à intimidade, sem esquecer aquilo que os europeus devem comer, beber, respirar, ouvir, olhar, fazer ou não fazer. Conta o artigo que o maior recordista de imbecilidades por dia (repito: por dia) dá pelo nome de Markos Kyprianou, um cipriota que lidera a área da Saúde. Agora, o grande desafio de Kyprianou é fazer ao álcool o que a Europa fez ao tabaco. Ou seja, acabar com a podridão.
Verdade: fumar em cafés ou restaurantes é hoje coisa do passado e os fumantes resistentes são vermes que a sociedade européia contempla com inevitável nojo. Como os leprosos na Antiguidade. Mas os fumantes terão companhia para breve: quando Kyprianou conseguir colocar no rótulo de cada bebida alcoólica as palavras sacramentais de que beber mata, arruína matrimônios, queima massa cinzenta etc. etc. etc. Não excluo que a figura elegante de Johnny Walker em seus passeios campestres seja substituída por um fígado em putrefação cirrótica. Por que não?
Precisamente: é tudo para o nosso bem. A União Européia proíbe o dono de uma vaca de vender leite tirado da vaca a um consumidor ocasional? É tudo para o nosso bem. A União Européia proíbe qualquer alimento com excesso de sal, gordura ou açúcar de proclamar as suas virtudes nutritivas? É tudo para o nosso bem. A União Européia está disposta a arruinar a tradição centenária dos produtores de queijo alpino porque as instalações não têm tecnologia fabril? É tudo para o nosso bem.
E é tudo para o meu bem. Leio as proibições, os regulamentos, os aconselhamentos e o paternalismo de Bruxelas e não posso deixar de pensar que, no curto prazo, metade da minha dieta estará proibida por um burocrata qualquer. Já imagino esse dia bem triste, e bem civilizado, em que sairei de casa com gabardine e óculos escuros, disposto a comer, numa catacumba qualquer, os pratos que a minha avó fazia na maior das inocências.
Claro que alguns resistentes ainda perguntam se um mundo crescentemente securitário será um mundo crescentemente livre: um mundo onde os seres humanos podem viver suas vidas e serem responsabilizados por suas escolhas. A dúvida deixa de fazer qualquer sentido. Os delírios regulamentares de Bruxelas não acabam apenas com modos de vida úteis e benignos que foram resistindo aos testes do tempo. Os delírios de Bruxelas arruínam também o sentido mais básico da liberdade individual: esse espaço onde eu posso atuar sem a interferência de terceiros. E sem interferir com a vida de terceiros.
Trocar o Brasil pela gaiola européia? Não sejam loucos. E, se me permitem, socorro!
João Pereira Coutinho, 31, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com |
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