Há dez anos a denúncia. Do site do OLAVO DE CARVALHO.
MST mostra que a meta é a tomada do poder
Carlos Soulié do Amaral
O Estado de S. Paulo, 20-22 de junho de 1999
Decorrido já quase um ano da publicação desta notável série de reportagens, o governo, os empresários e a mídia elegante continuam empenhados em dar ao MST a aparência pacífica e nobilitante de um movimento legal, comprometido apenas com a defesa dos delicados sentimentos do ser humano contra a dureza do mundo mau. Reproduzo-a nesta homepage como um lembrete para todas aquelas pessoas maravilhosas que acreditam que o comunismo morreu e que, mesmo se não tivesse morrido, não nos ofereceria o menor perigo, pois São Pentágono vela por nós. -- O. de C.
I
Antes de deflagrar a ação, a preparação. Antes de mobilizar a massa, é preciso fortalecer as convicções dos militantes, reacender a mística que os anima para a luta, configurar como ilegítimo "o que está aí", ou seja, o sistema jurídico e representativo vigente. É preciso chamar a atenção da mídia e das populações urbanas para a causa. A luta pela terra é coisa do passado. O Movimento dos Sem-Terra (MST) e a Coordenadoria Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc), unidos, jamais serão vencidos. Pois unidos vão detonar, com a aceleração da luta de classes, a democracia capitalista e o neoliberalismo que sufocam as esquerdas progressistas.
Somados à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), à Central Única dos Trabalhadores (CUT), ao Partido dos Trabalhadores (PT) e valendo-se do apoio de entidades religiosas "úteis" como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Igreja Católica, além de múltiplas organizações não-governamentais (ONGs) nacionais e estrangeiras, dinheiro não é nem será problema para bloquear estradas, promover invasões, ocupações e acampamentos em todo o País, sob o comando da Coordenação-Geral. A meta é a tomada do poder. "Hasta la victoria siempre!"
Estas foram algumas das normas e diretrizes ministradas em português e espanhol aos 93 participantes do Curso de Capacitação de Militâncias do Cone Sul, realizado numa chácara de Sidrolândia (MS), cidade de 18 mil habitantes, limpa e pacata, situada 70 quilômetros ao sul de Campo Grande, a capital do Estado, no início de maio.
Agora, os formados - 44 brasileiros, 21 paraguaios, 17 argentinos, 6 bolivianos e 5 chilenos - aguardam os grandes protestos prometidos pelo MST e pela Cloc, promotores do curso, para "materializar a prática individual e coletiva da Mística".
Os documentos obtidos com exclusividade pelo Estado foram confirmados por Marcial Congo, representante da Cloc no Brasil, e por Sérgio Reis Marques, do MST e coordenador do curso.
A chácara (um seminário desativado) escolhida para sediar o encontro identifica-se como Centro Cultural São Francisco de Assis. É dirigida por dois frades capuchinhos, conta com algumas vacas leiteiras, um belo açude onde se criam grandes carpas herbívoras, um pomar de frutas variadas e altas mangueiras. Os militantes lembram-se com saudades do curso e dos dias em que gritaram numa só voz, como um pelotão militar, as "questões do coração" que animam a Mística.
O chefe perguntava: "Qual é nossa grande causa?" E eles respondiam: "A libertação do proletariado." Pausa. Nova pergunta: "Quais são os caminhos para chegar a essa causa?" Resposta: "A reforma agrária e o socialismo." Então vinha a questão-chave: "Quais são as formas para realizar isso?" Resposta: "Todas as formas de luta possível, tendo sempre em mente o poder." Exigente, o chefe insistia: "Como?" E os militantes, (formados) numa só voz, repetiam: "Tendo sempre em mente o poder."
Os frades forneciam o café da manhã, o almoço e o jantar. A comida era farta e a diária, barata: apenas R$ 8 por dia e por pessoa.
O MST por ele mesmo - Ao explicar-se para os companheiros nacionais e hispano-americanos, durante o Curso de Capacitação de Militantes do Cone Sul, o MST esclarece: "Defendemos a idéia de que somente as grandes mobilizações de massa podem alterar a co-relação de forças atuais na sociedade brasileira e colocar na pauta o projeto popular - e não apenas medidas paliativas, como querem setores moderados da oposição; estimulamos todas as formas de luta de massas por necessidade imediata, como ocupações de terras, de moradias, mobilizações de desempregados e ocupações de fábricas; estimulamos outros setores para que também o façam."
Todo o trabalho do governo federal e dos governos estaduais relativo à reforma agrária é omitido, não existe. "Ao longo de sua trajetória, o MST organizou-se como um movimento social de massas, mas é também um movimento político, porque, ao lutar pela reforma agrária no Brasil, atinge diretamente os interesses da oligarquia rural e do Estado", diz o documento, preparado pela Coordenação Nacional do MST. Após lembrar que a entidade foi confirmada como movimento nacional em 1984, o documento destaca que "nesses 15 anos de lutas conquistamos terras para mais de 200 mil famílias de trabalhadores rurais em área equivalente a 7 milhões de hectares, depois de mais de 2 mil ocupações massivas de latifúndios".
Em seguida, sutil, mas orgulhosamente, afirma: "Nas áreas reformadas tentamos desenvolver um novo método de educação, garantindo que todos tenham acesso à escola e sejam aplicados conhecimentos voltados para as necessidades dos trabalhadores."
Para o MST, os cinco primeiros anos do governo Fernando Henrique Cardoso significam "cinco anos de uma política econômica neoliberal, irresponsável e entreguista, que só trouxe mais dificuldades para o povo, aumento do atraso e da dependência externa do País".
Para provar, o MST aborda o caso específico da dívida externa: "Em 1994, a dívida somava US$ 146 bilhões e, atualmente, soma US$ 212 bilhões; só de 1989 a 1997 o Brasil desembolsou (juros e amortizações) US$ 216 bilhões; vejam, portanto, que a dívida era de US$ 115 bilhões; pagamos US$ 216 e continuamos devendo US$ 212 bilhões."
A conta é atrapalhada, mas a Coordenação Nacional parece desprezar detalhes. Prefere atuar como uma profética pitonisa: "Este mandato do governo FHC (99-2002) será de muita crise econômica e de piora nas condições de vida do povo; resta saber se o povo vai aceitar isso de braços cruzados."
Via Camponesa - Preocupado com a adoção de políticas econômicas neoliberais em quase todos os países do Terceiro Mundo, com a abertura de mercado para as grandes empresas multinacionais e com as altas taxas de juros, o MST está construindo uma grande articulação chamada Via Camponesa, da qual fazem parte mais de 80 organizações em todo o mundo, "para defender uma alternativa a esse modelo neoliberal, de globalização excludente, que só interessa ao capital financeiro internacional".
Em novembro ocorrerá a 2ª Conferência Internacional da Via Camponesa, na Índia. Na América Latina, o MST atua com a Cloc, com quem planeja realizar uma grande marcha do Canal do Panamá até a fronteira do México com os Estados Unidos, numa manifestação contra a dominação imperialista norte-americana. No Brasil, participa da campanha Jubileu 2000 coletando assinaturas contra o pagamento da dívida externa brasileira e preparando um tribunal internacional para julgá-la. Esse julgamento já tem data marcada. Será no Rio de Janeiro, entre 26 e 28 de abril do ano que vem.
Acima de tudo isso, porém, "o MST se empenha para que as organizações sociais e políticas de esquerda retomem o trabalho de formação de militantes, com uma nova concepção: a de que é possível implantar o socialismo".
Em Sidrolândia, enquanto observavam o farfalhar das folhas das altas mangueiras que orlam o auditório dos frades capuchinhos, os militantes do MST aprendiam o já sabido. Aprendiam que, em meados do século passado, um estudioso alemão chamado Karl Marx analisou os mecanismos de funcionamento da sociedade capitalista e elaborou uma proposta chamada "socialismo científico". Aprendiam que, segundo essa proposta, os meios de produção (terras, máquinas, fábricas, etc.) deixam de ser propriedade particular e passam a ser controlados pelos próprios trabalhadores, que também decidem como será feita a partilha dos frutos da produção. Que para alcançar o socialismo, os trabalhadores devem, em primeiro lugar, organizar-se para, mobilizando as massas, conquistar o poder político e o controle do Estado. Dirigindo o Estado, os trabalhadores farão a minoria capitalista submeter-se às suas vontades. Começa então a construção do socialismo.
Um militante chileno gritou: "Hasta la victoria!" E um argentino completou: `Siempre!" Ambos foram advertidos que a construção do socialismo é um processo demorado. As folhas das mangueiras continuavam farfalhando. Um mugido de vaca veio de longe, demorou no ar por segundos e, antes que a atenção dos militantes se dispersasse, eles aprenderam que os revolucionários têm de concentrar-se em ganhar o controle dos meios de produção, de comunicação e de distribuição em nível local, regional e nacional. "Os movimentos devem definir, em primeiro lugar, seus papéis em relação ao sistema econômico como classes e não nos termos da distinção legal de cidadãos, que existe no sistema eleitoral; em segundo lugar, devem identificar as divisões de classes que definem a `sociedade civil' e rechaçar a ideologia que homogeneiza todas as classes como membros da mesma `sociedade civil' no regime neoliberal vigente."
Também aprenderam - e este tema foi trabalhado durante dois dias inteiros - que "a igualdade de gênero é um pré-requisito para a transformação social que o MST e os movimentos revolucionários propõem". A questão de gênero foi ministrada pela professora Izabel Green. Em síntese, as aulas ensinaram que a luta dos sem-terra e demais "progressistas" por igualdade entre homens e mulheres, entre o gênero masculino e o feminino, "se baseia na solidariedade de classes para a reforma agrária, a socialização dos bancos, dos meios de comunicação e do Estado".
E ainda que "os movimentos revolucionários e suas líderes femininas propõem uma aliança de mulheres dentro da luta de classes por reforma agrária contra a proposta neoliberal que subordina mulheres camponesas a mulheres burguesas".
II
O Curso de Capacitação de Militantes de Base do Cone Sul promovido e ministrado pelo Movimento dos Sem-Terra (MST) e pela Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc) no início de maio, em Sidrolândia (MS), contou com a presença do governador do Estado, Zeca do PT, na sua inauguração. A Metodologia e a Mística tiveram destaque especial. Segundo a definição do texto-base que conduziu o curso, Metodologia "é um conjunto de técnicas e procedimentos educativos ligados a uma visão de mundo e a uma opção política; é o caminho que percorremos para alcançar determinados objetivos".
A Mística foi definida como a "alma das esquerdas", como "a paixão que anima a militância", como "palavra de origem religiosa, alimentada pela esperança de um objetivo a ser alcançado".
Seja o que for, o importante é que a Mística se transforme em "uma causa" e o militante passe a viver por ela. No entender do MST, a materialização da Mística dá-se pela prática individual e coletiva. "Por isso, é necessário manter, em nível nacional e estadual, equipes treinadas para alimentar a Mística."
Na aprazível chácara denominada Centro Cultural São Francisco de Assis, na periferia de Sidrolândia, a 70 quilômetros da capital do Estado, os militantes do MST vindos de São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Rondônia e Brasília, juntaram-se a companheiros paraguaios, argentinos, bolivianos e chilenos, formando um contingente de 93 "agentes de transformação social".
Símbolos - Ali aprenderam que, "na Mística, os símbolos desempenham o papel de guias que representam o esforço coletivo; não são mitos, são reais e, por isso, cantar o Hino (Nacional) com os punhos fechados não é um simples gesto, representa desobediência à ordem estabelecida". A bandeira e a foice são os principais símbolos do MST e devem ser exibidos com orgulho e destaque nas caminhadas, ocupações de prédios públicos, marchas, acampamentos e invasões de terra. "A militância precisa de um templo que consolide seu caráter e o compromisso com os ideais de uma nova sociedade: a Mística tem essa função!"
Quem decide as linhas, as formas e as cores da Mística? "Essa é uma tarefa desenvolvida pelos dirigentes que, por lógica, possuem a visão do futuro com clareza e vivem a esperança de transformações com maior intensidade." Por esse motivo cabe aos militantes manter a disciplina no cumprimento dos acordos coletivos feitos pelos dirigentes e nunca os entender como uma ordem de cima.
"A disciplina brota do interior do militante como uma postura de zelo e segurança pela própria vida e pela vida do movimento; as orientações construídas coletivamente ajudam a combater dentro de cada um o vício de amparar-se nos outros, a mania de improvisação e a idéia da concorrência." E para que as brasas da Mística permaneçam rubras e ardentes é preciso jamais esquecer o objetivo - a libertação do proletariado e a tomada dos bens de produção. Ao mesmo tempo, os militantes não podem deixar de acreditar que "são válidas todas as formas de luta possível, tendo sempre em mente o poder".
Luta pela terra - No âmbito da Metodologia, a Coordenação-Geral do MST considera "fundamental" tornar claro "quais são as relações já superadas na questão da luta pela terra e pela reforma agrária". Nesse ponto se tornam escombros as tentativas do governo, da Justiça e de todos os que tentam resolver os conflitos pipocados pelo MST em diversos pontos do território nacional. "A reforma agrária ganhou outra dimensão e já não deve ser feita por `razões econômicas' como no passado e, sim, por `razões políticas' ou, se quisermos, por `razões ideológicas', tendo em vista que vivemos um tempo de disputas mais amplas", decreta o texto-base oficial intitulado Lições Históricas da Luta Pela Reforma Agrária no Brasil, especialmente redigido para ser estudado durante o curso.
O documento é claro e direto. "Apenas ocupar a terra para trabalhar é uma posição já superada; essa posição se esgotou na luta pela conquista da terra vivenciada pelo MST na década passada e isso se comprova por duas razões: primeira - pela `facilidade' de ocupar latifúndios, tendo em vista a queda do preço da terra (no começo dos anos 80, uma ocupação era uma verdadeira operação de guerra, enquanto hoje qualquer líder um pouco inteligente consegue organizar ocupações em todo o Brasil); segunda - a disputa fundamental não se dá mais entre sem-terras e fazendeiros, mas, sim, entre os sem-terra e o Estado."
Desenvolvendo o tema, o documento apresenta o atual exercício dialético do MST. "No fim da década de 80, quando formulamos o grito de guerra `Ocupar, Resistir e Produzir', a resistência era uma necessidade fundamental para conseguir permanecer nas áreas ocupadas ou para garantir um lugar para acampar depois da retirada, mas, agora, a resistência em si mesma já não se justifica; precisamos combinar novas formas de luta na sociedade. A ação militar sem orientação e controle político é como uma árvore sem raízes. Precisamos articular nossa resistência com a sociedade local, nacional e internacional para conseguir vitórias econômicas e políticas importantes, com a participação do maior número de pessoas possível", informa o texto.
"A fase da luta pela terra como necessidade da categoria dos `sem-terra' foi importante na década passada e no início desta, para dar identidade ao movimento. Mas, se ficar restrita à categoria dos `sem-terra', a batalha perderá força rapidamente e não se sustentará nem se transformará em verdadeira luta social. A luta corporativa, mesmo que consiga alguma vitória, não será duradoura; as contradições serão cada vez maiores entre os trabalhadores e a burguesia e isso só se resolve quando a luta adquire um caráter político e de classe."
Exercício - O exercício dialético prossegue tratando do marxismo ("o marxismo é nada mais que a ciência da história em desenvolvimento, uma ciência inesgotável que se alimenta da própria realidade," etc. etc. etc.); destaca a necessidade de promover ações para aparecer na imprensa, utilizando-a, mas sem se deixar dirigir por ela; salienta que "a luta pela reforma agrária chegou ao ponto de tornar-se uma verdadeira arte," porque é "um movimento de massas que tem a característica de apresentar-se como verdadeiras ondas, ou seja, depois de grandes enfrentamentos, ela desaparece para `descansar', recuperar as forças e voltar em outro momento"; ressalta que "um movimento de massas se sustenta por longo período e se mantém em ascensão se a sua sigla organizativa tiver maior expressão que o nome de seus líderes porque, assim, os líderes locais adquirem significado e não só o `líder' nacional, pois a expressão nacional deve ser o nome da organização, o que facilita que muitas pessoas a representem em muitos lugares ao mesmo tempo e, além disso, derrotas ou erros de `um líder' não podem comprometer o crescimento e a credibilidade da organização."
Ao concluir essa "lição", a Coordenação-Geral do MST avisa que os militantes não podem esquecer-se do objetivo final da organização (o poder) e "devem saber combinar táticas para atacar em diferentes pontos do País, assegurando o potencial de força da organização". Como de costume e praxe, o novo grito de guerra, em espanhol (numa demonstração de solidariedade aos companheiros do Chile, Argentina, Paraguai e Bolívia presentes), coroou os trabalhos: Hasta la victoria siempre!
Os Cursos de Capacitação de Militantes multiplicam-se e têm dupla finalidade: proporcionar o intercâmbio de informações entre agentes de regiões diversas, além de atualizar as lideranças ativas (e remuneradas) quanto às metas, a doutrina e a estratégia do MST. Tratam com desvelado carinho um tema em torno do qual "a organização" empenha seus melhores esforços: Como Mobilizar a Massa.
Manual - A pormenorização de etapas e procedimentos chega a ser exagerada. A seguir, alguns itens pinçados do manual elaborado pelo MST sobre essa ciência:
Tudo se extrai da massa - A massa é fonte inesgotável de tudo o que se necessita para a organização. Depende apenas da capacidade e da criatividade dos dirigentes.
Combinação de diferentes formas de luta - A organização de massa não deve bitolar-se em desenvolver uma forma de luta e de pressão apenas. Deve buscar a combinação de diferentes formas para confundir o inimigo e atacar em diferentes frentes. Embora os objetivos táticos sejam diversos, devemos combinar nossos objetivos estratégicos com outras organizações para atuar na terra, nas fábricas, nas escolas, nos bancos, no Parlamento ou naquela luta mais avançada ainda.
A estruturação orgânica - Mobilizar é diferente de organizar. O movimento de massa, além de mobilizado, deve estar profundamente organizado. Sem mobilizar é difícil organizar. Uma coisa depende da outra. A massa cresce e se educa quando se mobiliza. Qualifica os militantes e atrai os indecisos.
A massa tem necessidades e aspirações próprias - Muitas vezes as aspirações do dirigente não são as mesmas da massa. Nesse caso, é preciso desenvolver um trabalho ideológico para fazer com que as aspirações da massa adquiram caráter político e revolucionário.
Os dirigentes - É fundamental reconhecer a importância da direção, que tem a responsabilidade de conduzir a organização, elaborar métodos de trabalho, formular propostas, analisar a realidade, buscar recursos, programar as atividades, colocar bem as lideranças ou quadros, formar mais companheiros para a luta, distribuir as tarefas de acordo com as capacidades, controlar a organização e aplicar todos os princípios revolucionários.
A educação da massa - O conteúdo ideológico e político a ser passado para as massas deve ser planejado antes e transmitido nos momentos de mobilização - ou por meio dos meios de comunicação.
Articulação das lutas - Nenhum movimento, por mais forte que seja, pode sobreviver sem articulação com outros movimentos ou outras forças importantes. A articulação das diversas lutas desenvolvidas por diferentes forças deve primar pelo caráter classista procurando atingir objetivos táticos imediatos e estratégicos a longo prazo.
A massa precisa de vitórias - Ninguém se mobiliza de forma permanente se as mobilizações não trazem resultados concretos. As vitórias, mesmo que pequenas, devem ser comemoradas para servir de estímulo. As vitórias precisam também ser materiais. Não podem ser apenas políticas porque as reinvindicações são concretas (econômicas) e é por elas que ocorrem as mobilizações.
Grupo e massa - Trabalho de grupo e trabalho de massa são duas faces da mesma moeda. Ambos se complementam. Trabalhos de grupo, para nós, é fundamentalmente a organização de núcleos, os grupos-motores , dentro dos assentamentos onde está constituída a base do MST. O trabalho de massa refere-se às mobilizações e às ações programadas visando à conquista da terra, dos meios de produção e do poder, reinvindicações que complementam essa atividade.
III
As manifestações de protesto deflagradas pelo Movimento dos Sem-Terra (MST) e seus aliados prosseguem pipocando no Paraná, em São Paulo, Brasília, Pará, Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Goiás. Ao promover saques, seqüestros, invasões, marchas, bloqueios de estradas, ocupações de bancos e prédio públicos, a "organização" está apenas desenvolvendo a "prática diária da Mística que anima os militantes".
Ao ameaçar, como fez o líder João Pedro Stedile dias atrás, reunido com a cúpula do PT na Câmara dos Deputados, "levar o povo para a rua e quebrar tudo", o MST está apenas se utilizando da imprensa a favor de seu projeto político, "que é revolucionário e tem por meta a conquista do poder para construir, sobre os escombros do capitalismo, uma sociedade socialista".
No Curso de Formação de Militantes de Base que o MST e a Coordenadora Latino-Americana de Organizações do Campo (Cloc) promoveram em Sidrolândia (MS), os alunos aprenderam que "a Agitação e a Propaganda têm dois canais: o indireto, através dos meios de comunicação e o direto, que é pessoal, mais vivo, mais eficiente para formar a consciência do povo".
Ocorre que o povo, avalia o MST, "não tem modo de pensar próprio" e, por essa razão, "precisa ser trabalhado por meio da agitação e da propaganda". Para tornar o conceito mais claro: "Não dá para fazer uma sem a outra, mas a propaganda se volta (em pichações, rádios, jornais, palestras, panfletos, etc.) para a formação de uma consciência que o povo não tem porque está com a cabeça feita pela idéia da social-democracia, ao passo que a agitação se volta para uma experiência pessoal, direta, que se traduz na luta: é o exemplo."
Sigla - Embora contrariando a norma pela qual é obrigatório dar maior destaque à sigla da "organização" do que à figura de seus líderes, o MST acata todas as bravatas e ameaças, concretas ou não, de Stedile e alguns outros chefes como Gilmar Mauro, do Paraná, Gilberto Portes, de Brasília, e Egídio Bruneto, de São Paulo.
Os militantes submetem-se à regra da obediência e "os dirigentes, como já estão num nível mais avançado", situam-se acima das críticas, "pois necessitam de uma Mística diferenciada para não fraquejar e continuar lutando", como reza o capítulo IV da cartilha intitulada Como Organizar a Massa.
Os dirigentes são o oráculo que guia os militantes, que devem guiar a massa, "que é a fonte inesgotável de tudo o que se necessita para a organização e que, para ser mobilizada, depende apenas de capacidade e da criatividade dos dirigentes".
Neste fim de semestre e antes das eleições municipais do próximo ano, o MST não só reformulou seu grito de guerra (que passa a ser Até a Vitória, Sempre!), como também atualizou o que considera seu "principal desafio". Este resume-se na "ocupação de múltiplos espaços na sociedade". O fundamento teórico que a organização apresenta para alicerçar seu novo direcionamento é o seguinte: "Ocupar e controlar espaços é ter poder; a ocupação de espaços deixa de ser uma ação oportunista para transformar-se em atitude revolucionária, se estiver dentro de uma estratégia de acúmulo de forças para alcançar um objetivo."
O programa para vencer "o desafio" desenvolve-se sem nenhum disfarce ou timidez, até pôr o MST e o pretexto da "reforma agrária" na cabeça e no comando da vanguarda revolucionária.
Os postulados iniciam-se com um gesto amigo, propondo a tese da Vanguarda Compartilhada, uma composição de forças que podem manifestar-se em forma de partido, organização política, exército revolucionário ou frente ampla. "Portanto, não é a organização que se intitula vanguarda, mas a aceitação da capacidade que ela tem para dirigir o processo revolucionário é que a torna expressão e referência política", defende o programa. E afirma, em seguida: "Esse espaço está vazio no Brasil por dois motivos fundamentais, que são: os desvios de princípios e a incapacidade de formular métodos corretos, que envolvam toda a sociedade em lutas de massas."
Apontando provas, o MST declara: "A Central Única dos Trabalhadores (CUT) faz propaganda e agitação; a diferença com o PC do B é que este não tem tendência e, portanto, tem unidade; o PT tem muitas tendências e, por isso, não tem jornal nem eficiência na propaganda; o MST está zelando para manter a unidade e sua sigla representa a mesma coisa em qualquer lugar."
Na seqüência, o programa lembra que "a força de transformação está nas massas organizadas e, por isso, não basta criar um partido ou uma organização qualquer, é preciso saber se esta tem influência e está enraizada na mobilização de massas; por outro lado, para ser vanguarda, a organização deve formular e seguir sempre a teoria revolucionária para ter condições de realizar a revolução".
Tarefa - O coroamento dos argumentos e justificativas precedentes, finalmente emerge, seco e enérgico: "Nossa tarefa é colocar a Reforma Agrária no centro da luta e torná-la a bandeira capaz de unificar a sociedade em relação a um objetivo estratégico maior."
O complemento dessa tarefa é eleger o MST como "a organização", cegamente, "sem nos preocuparmos em saber quem são seus líderes". E, para concluir, "depois disso, devemos procurar quais são as organizações que têm caráter e princípios voltados para a preparação revolucionária do povo e, assim, estabelecer critérios em torno de pontos convergentes."
Seguem-se algumas diretrizes básicas para que uma vanguarda revolucionária se consolide. Dentre elas, "capacidade de propor, organizar e conduzir diferentes formas de lutas, para acumular forças, mantendo as pessoas disciplinadas; capacidade de conduzir disputas nos terrenos econômico, político e ideológico; cuidar da formação ideológica de quadros e núcleos em todos os níveis; saber enfrentar disputas com forças reformistas que vierem a desviar o rumo da luta de classes; ocupar o espaço da divulgação e da prática dos princípios políticos revolucionários".
De repente, aflora esta máxima: "Como a água é capaz de fazer seu caminho de acordo com as circunstâncias naturais que encontra, também o militante e a organização devem preparar a vitória a partir da ubiquação do inimigo, para alcançar os objetivos fixados."
A Mística volta a ser exaltada como "a arte de incentivar e manter os lutadores animados e felizes", como "a força que vence a depressão depois de uma derrota" e como "a razão para lutar com outros por uma grande causa coletiva, o socialismo, causa pela qual vale a pena lutar e morrer!"
Na ocupação de novos espaços que propõe a si mesmo, o MST quer "vincular a reforma agrária como `uma luta de todos' nas áreas oficiais que dão forma orgânica à sociedade". Para atingir esse objetivo, ajusta sua mira na direção das "prefeituras dos municípios do interior que podem ter influência dos assentados, onde geramos renda e dinamizamos a economia".
Também "as Câmaras Municipais podem ser um espaço para contribuir, solucionando os problemas da sociedade local". Além desses alvos, a mira aponta para "os sindicatos de trabalhadores rurais, que na maioria dos lugares se dispersaram, mas ainda possuem força moral e referência política".
Escolas - O MST não se esquece das escolas, faculdades e igrejas, principalmente as igrejas. A imensa importância logística de milhares de paróquias espalhadas por todo o território nacional, interligadas e conectadas, "muito contribuiu para desenvolver o MST, através de suas pastorais", reconhece a organização. A meta é o poder, "é ocupar os espaços que se conformam na superestrutura da sociedade".
No fim do curso, um aviso aos navegantes: "Se alguém disser que esses espaços não devem ser ocupados por nossa organização, pois esses temas não nos competem, digamos sem receio de estarmos equivocados: os audazes sempre prevalecem sobre os medrosos!"
Até a vitória, sempre!
Defesa@Net 05 Novembro 2009 Blog Zé Dirceu 29 Outubro 2009 | Blog José Dirceu |
"Querem desmoralizar quem faz luta social nesse país"
A conclusão - e diagnóstico da reforma agrária - é da maior liderança nacional do MST, economista João Pedro Stédile, ao analisar a campanha difamatória da mídia e da oposição contra o movimento e sua luta pela terra.
"Querem desmoralizar quem
faz luta social nesse país"
A conclusão é do ativista e economista João Pedro Stédile, um dos fundadores e uma das mais representativas vozes, hoje, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ao analisar a campanha difamatória perpetrada pela mídia e oposição brasileiras que colocou o MST no centro das discussões nacionais, e conseguiu a instalação de uma CPI contra a organização.
Segundo Stédile, "o principal objetivo da CPI do MST é provar que o governo vai destinar dinheiro para o MST para fazer campanha para a (ministra) Dilma Rousseff", o que, na realidade, constitui-se na construção de mais um factóide pela mídia e oposição. A Comissão é também, na avaliação de Stédile, uma resposta dos setores retrógrados da sociedade brasileira à vitória dos movimentos do campo que, junto ao governo, conquistaram a alteração dos índices de produtividade utilizados pelo INCRA.
Quanto ao episódio da ocupação da fazenda do grupo Cutrale e a derrubada de laranjais, Stédile reconhece que houve erro, mas aponta a superexposição do episódio na mídia. Denuncia, inclusive, que a invasão da casa de funcionários e a quebra dos tratores por ocupantes da fazenda é uma mentira. De acordo com o relato de Stédile, as imagens exploradas pela mídia foram feitas muitos dias antes que começassem a ser apresentadas e que aqueles que as fizeram aguardaram o momento que julgaram mais oportuno para exibí-las e criar o sentimento que levou ao recolhimento e obtenção das assinaturas parlamentares para a CPI.
Membro da direção nacional do MST - e também da Via Campesina - Stédile faz um diagnóstico da situação agrária no país. Fala sobre a importância da agroindústria e critica a ausência de uma política clara e focada na agricultura familiar em detrimento do agronegócio. Este, segundo o economista, está hoje monopolizado nas mãos de 20 empresas, 70% delas, transnacionais. Nesta entrevista, o ativista também analisa a contexto americano após a vitória e posse de Barack Obama e o próximo ano eleitoral. Mais urgente do que declinar apoio a um candidato, observa, é a discussão de um projeto de desenvolvimento nacional que inclua, de vez, a reforma agrária na agenda.
[ Zé Dirceu ] Qual a avaliação que você faz da reforma agrária no governo Lula?
[ Stédile ] É difícil fazer esse balanço isolado do contexto maior da disputa na sociedade brasileira, hoje, entre dois modelos de produção agrícola, o agronegócio e a agricultura familiar.
O agronegócio, na nossa avaliação, é hoje uma aliança de classes entre os fazendeiros capitalistas, as empresas transnacionais e os bancos. Sua produção depende cada vez mais do crédito financeiro. Tanto é que para produzirem R$ 90 bi, eles tiram no Banco do Brasil, R$ 85. Se não tiver esse dinheiro, não produzem porque não têm capital próprio.
Por outro lado, há o modelo da agricultura familiar, diversificado e com base na mão de obra familiar, no uso intensivo da terra e voltado para o mercado interno. A reforma agrária só tem sentido se for para fortalecer esse segundo modelo. Na realidade, o que houve no governo Lula, foi um embate permanente entre esses dois modelos, com ministros dos dois lados. Por mais que se diga “é possível a convivência dos dois”, o governo precisava ter uma orientação política clara: “a minha prioridade é a agricultura familiar e o agronegócio que vá para o mercado."
Isso ele não fez. Deixou que as forças do capital agissem por conta própria na agricultura, o que construiu barreiras, porque o capital foi se fortalecendo com esse modelo do agronegócio. O resultado disso veio agora no Censo Agrícola do IBGE. Nos últimos dez anos - parte do governo Fernando Henrique e todo o governo Lula - houve uma incontestável concentração na propriedade da terra e no controle da produção agrícola.
A produção do agronegócio é
concentrada por 20 empresas
O MST utiliza um dado econômico revelador: o agronegócio conta com 300 mil fazendas com mais de 200 hectares e com 15 mil latifundiários que detém fazendas acima de 2,5 mil hectares e possuem 98 milhões de hectares. Esse é o conjunto do agronegócio que produz R$ 90 bi do PIB agrícola no país. Se você olhar para quem eles vendem, descobrirá que 20 empresas, hoje, controlam todo o comércio agrícola brasileiro, tanto o de insumos (para financiar a produção), quanto o de commodities. Dessas 20 empresas, 70% são transnacionais e o PIB delas – segundo dados do Valor Econômico - atinge R$ 112 bi a R$ 115 bi.
Claro que tem a margem de lucro. Mas podemos perceber o movimento do capital. Toda a produção do agronegócio é concentrada por 20 empresas que acumulam essa riqueza que vem da natureza. Nisso destaca-se, também, o movimento do capital que levou a uma maior oligopolização da agricultura. Há vários segmentos que se constituem em oligopólios, um nos fertilizantes, outro nos venenos agrícolas, outro nas máquinas, no comércio etc.
Por exemplo, nós somos os maiores produtores de soja mundial enquanto território, mas vai ver quem exporta. Quem controla a soja no Brasil, hoje? Cinco ou seis empresas a Bunge, a Monsanto, a Cargill, a Dreyfus e a ADM do Brasil. Elas ficam com a maior parte da margem de lucro. É por isso que nós até damos risada, porque a burguesia agrária - essa que se diz representante do agronegócio - não tem consciência de classe para si. Se tivesse, teria que se unir com os camponeses e os trabalhadores agrícolas, para juntos, enfrentarmos essa espoliação feita pelas transnacionais. Mas não, ela prefere se unir exatamente com as transnacionais e dar pau em nós e na reforma agrária. Esse é o contexto e o governo Lula, como é um governo de composição de classes e de uma correlação de forças muito equilibrada, é o reflexo dele.
[ Zé Dirceu ] Pensando em uma proposta de desenvolvimento nacional, qual o papel de cada setor no campo, considerando o agronegócio, a agricultura familiar e a reforma agrária, processos em andamento, nos próximos anos? Num governo que tivesse condições de fazer mais políticas...
[ Stédile ] O grande desafio que temos nesse período histórico - nem é conjuntural – é que o Brasil precisa de um projeto que reorganize a economia para resolver o problema do povo brasileiro. Um projeto que, do ponto de vista político, recupere as massas como atores políticos. E a reforma agrária está emperrada justamente porque só fazer assentamentos nos moldes tradicionais do INCRA não tem futuro, porque está descolado de um projeto. A reforma agrária só tem futuro se for parte de um projeto de desenvolvimento econômico, social e político de todo o país.
Se fizermos a reforma agrária com a agricultura popular dentro desse projeto, precisaremos de uma nova concepção que parta de alguns princípios e vontade política. Por exemplo, (por esse projeto) nós vamos fixar o homem no interior, combater o êxodo rural. As cidades brasileiras não agüentam mais esse inchaço. Nós faremos um processo de distribuição de renda para que os trabalhadores tenham mais dinheiro e comprem mais produtos da indústria, ativem o mercado interno. Dentro desses parâmetros - parte de um projeto diferente e prioritário - qual seria o nosso papel enquanto agricultura familiar?
Primeiro: evidentemente que em algumas regiões do Brasil, você tem que priorizar o processo de distribuição de terras. Não precisa ser em todo o país. Nós temos terra para todos, mas em algumas regiões, é preciso uma intervenção do Estado, uma intervenção clara que combata o latifúndio e garanta uma democratização do acesso à terra. No Mato Grosso do Sul, por exemplo, há terras férteis, todos os climas, mas precisamos da intervenção do Estado para fazer uma grande reestruturação fundiária. Na Zona da Mata no Nordeste, a mesma coisa. É um absurdo continuarmos com a cana de açúcar, há 500 anos espoliando aquele povo. Aquilo é semiescravidão. Portanto, é preciso regionalizar, o que aliás está em todos os processos de reforma agrária.
É preciso distribuir terras e
garantir a agroindústria
Segundo: é inviável distribuir terras sem combinar com a agroindústria. Ela é a única maneira de o camponês aumentar sua renda, porque se continuar produzindo apenas matéria-prima, ele não sairá da pobreza. Então tem que haver um grande programa que leve a agroindústria para o interior. Este sim é e deve ser um componente do projeto nacional.
Ao invés do BNDES dar dinheiro para grandes multinacionais como a Nestlé, Parmalat, por que não fazer um grande programa de pequenas agroindústrias? Não há problema de escala na agroindústria. Não é como uma fábrica de automóvel que exige 30 mil automóveis/dia. Pode ser uma usina de 5 a 30 mil litros, por exemplo. É para isso que precisamos dos milhões dados à Nestlé. Então, que se faça um programa para a agroindústria. E como ela é pequena, de pequeno agricultor, tem que ser sob a forma da cooperativa. Com isso, já elevaríamos o nível de consciência, porque quando o cidadão participa de uma cooperativa ele se transforma em outro cidadão. Participa de assembléia... E tem emprego para o jovem - porque o jovem, filho de camponês, não quer pegar na enxada. E ele tem razão, tem que estudar. Se houver uma política de agroindústria no interior, ele terá emprego como tratorista, analista, trabalhador de informática. Você leva profissões escolarizadas para o meio rural, ao invés de trazer a população do meio rural para as cidades.
Quarto componente do nosso projeto: a educação. Nós temos que democratizar a educação. O dado do censo agropecuário é uma porrada na nossa cara: 30% dos trabalhadores rurais brasileiros são analfabetos; 80% não terminou o ensino fundamental. Isso é inaceitável. A reforma agrária é inviável se junto você não entrar com a escola. É isso que vai libertar as pessoas, politizá-las e transformá-las em cidadãs. Qual é a política atual? Por exemplo, financiar peruas e vãs para tirar o jovens do interior e trazer para a cidade. Isso é uma loucura, uma agressão cultural, econômica e um desperdício de dinheiro. O menino fica duas horas para ir e mais duas para voltar.
Quinto aspecto: mudar a matriz tecnológica do campo. Ao invés de utilizar a matriz atual do agronegócio - já condenada porque baseada só em mecanização intensiva e agrotóxico que não tem futuro (eles mesmos dizem isso) – temos que mudar para uma matriz que consiga aumentar a produtividade do trabalho e também a física, dos hectares, sem agredir a natureza. Genericamente, nós utilizamos o conceito de agroecologia. As pessoas a concebem através de técnicas agrícolas para aumentar a produção do trabalho e física, sem agredir o meio ambiente.
A vantagem do Brasil é que nós temos já um suporte científico acumulado, nas universidades, inclusive, que nos dá base científica para fazer a agroecologia.
Recentemente visitei o sítio Catavento, uma área recomendada pela querida Ana Maria Primavesi, uma das grandes cientistas e agrônomas brasileiras a meia hora do aeroporto de Viracopos (Campinas-SP). Lá, 36 hectares produzem hortigranjeiros sem nenhum grama de agrotóxico. É uma maravilha. Todos os dias eles enchem um caminhãozinho com três toneladas de produtos. Portanto, está mais do que provado, nós temos conhecimento científico para esse tipo de produção.
Aproveito, inclusive, para fazer uma denúncia. Em relação aos produtos orgânicos, os supermercados já perceberam que classe média está cada vez mais consciente de que a saúde vem em primeiro lugar. Aí vem a colocação clássica: “produzir orgânico é muito caro”. Isso é mentira. Muito pelo contrário! Produzir orgânico é mais barato. O problema é que como as redes de supermercados estão monopolizadas e já sacaram que o produto orgânico é um nicho de alta renda, colocam a taxa de lucro lá em cima. Fui lá em julho e esse companheiro do sítio Catavento me mostrou: estava produzindo tomate em pleno inverno com uma estufa. Ele estava vendendo para o Pão de Açúcar a R$ 3,70 o quilo de tomate e a dona Maria estava comprando a R$ 17 o mesmo tomate em São Paulo. O supermercado sacou o nicho e colocou sua taxa de lucro lá em cima. Não é mais caro.
Nós podemos produzir em escala, já temos tecnologia. Um dos especialistas que diz isso é o prof. Luis Carlos Pinheiro, ex-presidente da EMBRAPA. Inclusive, ele está nos assessorado no Paraná para produzirmos em áreas 500 a mil hectares leite orgânico sem nenhum tratamento químico de medicamento para as vacas.
[ Zé Dirceu ] Nesse quadro que você descreve, como fazemos reforma agrária, na base da pressão e da luta, é completamente irracional. Assentar 300 pessoas aqui e mais 300, duzentos km lá na frente, é inviável. E quanto à assistência técnica, estrada, educação na zona rural, melhorou alguma coisa além do crédito para a agricultura familiar? Afinal, a questão da assistência técnica é fundamental na agroindústria.
[ Stédile ] Há dois aspectos, o primeiro foi o desmonte que o Fernando Henrique fez. No caso da política agrícola foi mais sério, porque eles acabaram com todo o serviço público agrícola. Portanto, pegamos essa herança maldida. No caso da assistência técnica, o governo Lula ampliou os convênios para que ONGs e cooperativas dessem essa assistência. Resultado: o público atendido aumentou, mas o método continua um atraso.
Nós defendemos que só é possível universalizar e ter uma direção política para a assistência técnica se for estatal.
Só resolve com uma
assistência técnica pública
[ Zé Dirceu ] Um órgão nacional?
[ Stédile ] Um órgão nacional, que faça convênios com as EMATERs (empresas estaduais agrícolas de assistência, tecnologia e extensão rural). Contrate os funcionários para esse serviço público pela CLT. Não precisa de concursos públicos, nem de estabilidade. Pode até colocar alguns condicionantes, por exemplo, o sujeito para ser agrônomo da assistência técnica tem que morar no interior, ou não pode morar em cidades com mais de 50 mil habitantes. Hoje, temos mais de 400 entidades conveniadas pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) voltadas à assistência técnica. Isso a direitona não vê, fica procurando apenas as que são do MST. Porém, isso não resolve o problema, apenas amplia o público. O problema só se resolve com uma assistência técnica pública.
No que houve melhorias? Na Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) que voltou a ser uma empresa de abastecimento. A CONAB tinha sido sucateada completamente e sua recuperação é o melhor legado que a gestão Lula deixará, porque ela conseguiu formatar novos programas voltados exclusivamente para a agricultura familiar. Aí, nota-se a diferença. Quando você tem uma empresa pública que atua com uma orientação e quando não tem. Não é para todo mundo, mas para o pequeno agricultor. Então, a CONAB está desenvolvendo vários programas de compra, seja antecipada, seja direta do agricultor. Isso é tudo o que o camponês precisa para trabalhar, produzir e saber que tem gente que irá comprar.
O camponês é produtor, não é vendedor. Quanto tem que ir para o mercado está ferrado. Repito, uma empresa estatal com um sistema econômico montado dá certo. Aí tem que ampliar, botar dinheiro em cima, porque todo o dinheiro que você botar na CONAB vira alimento e vai impulsionar esse ciclo.
Combinado com a revigoração da CONAB, temos a lei dos 30% - ou seja, 30% da merenda escolar tem que ser de origem da agricultura familiar. Essas duas medidas, CONAB e os 30%, foram avanços muito grandes. Em terceiro lugar, sem dúvida, o programa Luz para Todos, e espero que até o fim do governo seja praticamente universalizado o acesso à energia elétrica.
Nós também apresentamos dois programas complementares à política agrícola que tiveram pouca ressonância. O primeiro foi o programa de habitação - muito difícil - em que procuramos misturar o INCRA com a Caixa Econômica Federal (CEF). Veja que nem há problemas de recursos. Com 15 mil nossos companheiros constroem casas de dar inveja à classe média urbana. Mas falta desenvolver uma metodologia. Nós precisamos construí-la nos próximos meses para universalizar. Começamos brigando, já no primeiro mandato (do presidente Lula), conseguimos avanços no segundo e acredito que teremos construído umas 40 mil casas. Mas, isso não é nada perto do que significa um programa como esses. A primeira coisa que uma pessoa quer é uma casa com luz elétrica. Isso fixa o homem no campo. Se eu sei que meu primo está pagando aluguel para morar numa favela na cidade, por que vou largar minha casa? Essa é uma condicionante também para os filhos e envolve uma série de questões, auto-estima, saúde etc.
O segundo, também apresentamos um grande programa de reflorestamento. É barato. Nós poderíamos fazer um programa de dois hectares por pequeno agricultor e você refloresta esse país, melhora a qualidade de vida, combate as mudanças climáticas, inclusive, caminhando na contramão do agronegócio que quer acabar com as reservas para desmatar ainda mais. (O reflorestamento) evita essa estupidez que fizeram em Santa Catarina, onde não aceitam mais os 20 metros em cada margem de rio.
[ Zé Dirceu ] Se 2 milhões de pequenos agricultores plantarem 2 hectares, serão 4 milhões hectares só aí.
[ Stédile ] Por ano. Aí o cara começa a perceber a mudança da qualidade e diz: “os outros dois, mais outros dois, eu vou plantar”.
O ensino superior no meio rural tem que ser diferenciado
[ Zé Dirceu ] João Pedro, em relação à educação, não teve nenhum programa novo, pedagogia nova para a educação rural e no campo nesses seis anos e meio (governo Lula)?
[ Stédile ] Do ponto de vista de concepção, nós tivemos sorte. Os dois mandatos do governo Lula contaram com ministros que tem uma visão diferenciada. Do ponto de vista de filosofia da educação mudou. É outro papo. Estamos negociando com um governo que tem percepção, mas você não consegue universalizar as políticas para o meio rural.
Talvez agora com o novo padrão salarial dos professores, nós tenhamos uma mudança, que ainda não é perceptível. Há professores do Piauí que ganham R$ 75 reais/mês Então, a lei (piso nacional de R$ 950,00 para professor instituído pelo presidente Lula) dará um salto na qualificação dos professores. Também contamos com a metodologia em programas pontuais do Programa Nacional de Educação para Reforma Agrária (PRONERA), mas que não conseguiu universalizar.
Qual o grande contribuição do PRONERA? Ele tem uma metodologia, a da alternância - uma conquista nossa - para os jovens do meio rural, seja para filho de assentado, seja para o do pequeno agricultor que ainda não tem acesso, ou para professores do meio rural. Você tem que criar cursos superiores na forma de alternância porque o cidadão não pode entrar no vestibular comum e vir para a cidade todas as noites na escola. O ensino superior no meio rural tem que ser diferenciado.
Primeiro, porque o jovem terá de ir para a cidade todos os dias; segundo, os melhores cursos estão nos municípios acima de 300 mil habitantes; terceiro, se ele resolver todos esses impasses, ao terminar o curso, não volta mais.
Então, o que é a alternância? Você tem dois meses de férias, depois concentra um período com aula, daí volta a ter o trabalho normal como professor ou militante e daqui a três meses volta de novo. Com esse programa – conquistado ainda no final do governo FHC, sob muita crítica, porque diziam que era “picaretagem” – durante a gestão Lula, nós consolidamos uma experiência. Hoje, podemos provar que a alternância não altera a qualidade. Muito pelo contrário, ao concentrar o conhecimento em períodos, você pode trazer especialistas daquela área. A alternância consumou-se como um método.
Agora, o PRONERA hoje é um departamento com só três funcionários dentro do INCRA. Administra recursos alocados para universidades públicas e depende, evidentemente, da boa vontade da universidade. Nós temos que conquistar cada curso. Sem falar que se um promotor elitista entrar na justiça alegando que aquele curso é discricionário, dependendo do juiz federal que está no plantão, o cara dá uma laminar e o curso é suspendido.
Por exemplo, o único curso de direito que temos na universidade de Goiás Velho – feito com vestibular e inclusive com a presença do ministro Eros Grau, na inauguração, público e notório que se trata de uma universidade de qualidade, federal - os alunos fizeram vestibular, submeteram-se ao método da alternância e o promotor resolveu entrar na Justiça. Esse tipo de coisa gera um problemão! Você tem que recorrer, o INCRA tem que entrar. Então, qual é a nossa reivindicação? O PRONERA tem que ser um programa do MEC que consiga universalizar. Aí ninguém precisa ir lá convencer a universidade. Ela já deveria oferecer dentro do seu plano de trabalho, esses cursos na forma de alternância.
Isso nós estamos corrigindo. Quero também citar como um lado positivo, as três universidades que estamos criando agora uma com o MERCOSUL, a Fronteira Sul e a Universidade Federal do São Francisco em Petrolina (PE). A Fronteira Sul, se fosse pela nossa vontade, daríamos o nome de Universidade Federal Guarani, porque o território é o mesmo (das missões indígenas jesuíticas, no Rio Grande do Sul). Seria uma bela homenagem aos nossos antepassados que habitaram aquele território. E ela vai ser a primeira universidade federal com campus em três estados.
As três universidades têm uma vocação rural e estão mais em diálogo com os movimentos sociais. Nós, portanto, estamos insistindo para que na grade delas, em seus cursos, já se incorpore a experiência da alternância - na forma de freqüentar, no tipo de curso. Não pode ser engenheiro agrônomo apenas, mas tem que ser um engenheiro formado em agronomia agroecológica. Na área de educação o que precisaremos fazer é isso. E precisamos de uma campanha séria para erradicar o analfabetismo no meio rural.
[ Zé Dirceu ] A oposição conseguiu o número de assinaturas necessário para que fosse instalada a CPI do MST. Como vocês estão avaliando isso?
[ Stédile ] Nós vemos de duas formas: primeiramente, ela está dentro do contexto maior da luta de classes no Brasil. Parte daquela parcela da direita parlamentar brasileira, encrustrada lá no parlamento, que vive querendo criar factóides para antecipar a disputa eleitoral. Como o próprio deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) revelou, o principal objetivo da CPI do MST é provar que o governo vai destinar dinheiro para o MST para fazer campanha para a (ministra) Dilma Rousseff. Isso é ridículo! Mas, ele falou isso na tribuna. Revela, então, as motivações ideológicas dele, ou seja, criar factóides para fazer uma disputa eleitoral e política besta.
Um segundo aspecto na análise dessa CPI, aqui mais da luta de classes, é que eles quiseram peitar o governo quando nós fizemos essa parceria na portaria para mudar os índices de produtividade. Estes precisam ser atualizados por força de lei. A lei agrária determina – a de 1993 – que os índices tinham que ser atualizados a cada dez anos. E os índices atuais que o INCRA usa são de 1975. Uma piada.
Então eles quiseram dar o troco. E contra o governo, não contra nós, para criar um constrangimento, um jogo de troca aí. Tudo contra a possibilidade de atualizar o índice de produtividade. Então se começa a CPI num palanque ideológico contra nós. Evidentemente, sempre que instalam uma CPI fazem o que querem. Todas as entidades que estão eles estão dizendo que tem problemas já foram investigadas pela CPI da s ONGs e tiveram sigilo quebrado. É como se diz no interior, eles estão vendo chifres em cabeça de mula. Mas, esse é o papel da direitona que quer proteger os seus privilégios.
[ Zé Dirceu ] Como vocês estão vendo a pesquisa da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) sobre assentamento rural?
[ Stédile ] Isso não merece nem comentário. É uma fraude que não tem pé, nem cabeça. Não é nem uma amostra representativa. Entre oito mil assentamentos que há no país, eles (a CNA) escolheram só nove e ao seu bel prazer. Um deles, em Pernambuco, era da época da ditadura, emancipado em 1975.
A única explicação que me vem é que a CNA fez algum jogo de aliança política com o IBOPE, talvez pagando dívidas do serviço que o IBOPE fez na época da campanha da Katia Abreu (senadora do DEM do Tocantins). É a única explicação que nos ocorre para tamanho absurdo. A isso (à pesquisa) todos os pesquisadores sérios reagiram. Isso depõe contra o IBOPE. O que ficou claro é que ele perdeu sua credibilidade. Como ele pode ter se prestado a esse tipo de jogo rasteiro? Pior ainda, divulgaram a pesquisa deles uma semana depois do Censo Agropecuário que não é uma simples pesquisa – no censo, os pesquisadores do IBGE vão em todos os estabelecimentos agropecuários desse país.
A pesquisa da CNA, repito, não tem pé, nem cabeça. De 8 mil assentamentos, pegaram nove. Um total de mil famílias de nove assentamentos, num universo de 1 milhão de famílias em oito mil assentamentos.
[ Zé Dirceu ] Sobre o episódio em São Paulo, na fazenda do Grupo Cutrale, qual a avaliação que você está fazendo? A mídia conservadora o transformou em escândalo, durante quase uma semana, ou mais, isso ocupou os principais noticiários. Qual a sua avaliação, houve erros na ocupação da fazenda?
Depredação de trator e invasão
das casas não aconteceram
[ Stédile ] A CUTRALE que tem mais de 30 fazendas em São Paulo, somando mais de 50 mil hectares, está em dívida com a Justiça Federal. Aquela área foi comprada de um grilo e eles sabiam. Eles partiram para o risco de comprar uma área grilada, contando com as influências políticas que tem na República do Brasil. Como estão acostumados com o monopólio da laranja, encheram de laranja para consolidar que a área era produtiva etc. Mas toda aquela área onde houve a ocupação - nem é só da Cutrale - é o chamado grande grilo (terras griladas) do Monção. A origem desse grilo é de terras que a União comprou em 1910 - portanto houve dinheiro público na compra da área original – para um projeto de colonização para famílias japonesas que não deu certo. Então, as terras foram ficando e houve esse grilo. A ocupação feita agora pelos sem-terra tinha a vontade política, o objetivo de fazer essa denúncia. Nisso a ocupação foi eficaz.
Agora, o fato de terem derrubado laranjais foi um erro dos companheiros que estavam lá. Nós que estamos no meio da briga, entendemos o desespero das famílias que estão há cinco anos querendo ter a terra e sabem que essa terra é grilada. O INCRA mesmo disse: “essa terra é da União”. Então o cara, o sem-terra chega na fazenda e quer plantar feijão. Evidentemente, a direita soube explorar muito bem esse fato, a partir de um erro nosso.
Mais dia, menos dia, iriam pegar qualquer erro nosso e exponenciar ao máximo. É o caso das imagens (exibidas na mídia). Elas foram feitas no dia 28/09, eles pensaram "quando vamos usar?" E esperaram, dias e dias, para fazer essa superexposição. Aquilo não foi uma reportagem sobre a ocupação, apresentada no dia em que ela ocorreu. Fora o fato de aquilo ter sido filmado pelo serviço secreto da PM. Não foi nenhuma reportagem da Globo que estava lá.
Um segundo aspecto: todas as outras imagens de depredação de trator, invasão das casas dos funcionários são mentira. Aquilo é manipulação. Nós os desafiamos publicamente a constituirem uma comissão independente - e com o Ministério Público, se quiser - e a irem lá e fazer a perícia para descobrir desde quando esses tratores estão desmontados. Isso é muito fácil de verificar. Que a comissão pergunte para as famílias (de empregados do grupo Cutrale) se algum sem-terra entrou na casa deles.
Mas, houve o erro, evidentemente, e com esse erro, a burguesia da elite econômica, que tem o monopólio da comunicação, está explorando. E nós estamos pagando caro, porque com isso, criaram o sentimento que levou ao recolhimento e obtenção das assinaturas para a CPI.
[ Zé Dirceu ] O ex-ministro da Fazenda tucano, Luiz Carlos Bresser-Pereira e o ex-presidente da República, José Sarney, hoje presidente do Senado, apontaram tanto no caso da CPI, quanto na pesquisa dos assentamentos feita pelo IBOPE, por encomenda da CNA , a tentativa de criminalizar o MST. Qual a a avaliação que vocês fazem?
[ Stédile ] Esse tema da criminalização nós temos que entender direito como é usado. Não é uma coisa que houve, ou que há, numa época de ditadura. Nós já estávamos na democracia quando o latifúndio, para se proteger, iniciou um processo de assassinato e de violência física contra quem lutava pela reforma agrária. Esse período nós já passamos. A violência física diminuiu, até por conta da nossa forma de organização. A criminalização agora é muito mais no sentido ideológico e político. É com o objetivo de desmoralizar quem faz luta social. Esse é o sentido da criminalização do MST e dos demais movimentos sociais.
Daí porque a Rede Globo, o Estadão e a VEJA se transformaram no principal instrumento dessa fase de criminalização. Na fase anterior, eram as armas; agora, o método de tentar nos desmoralizar é através da imprensa. Nós temos tido o cuidado de não criar uma paranóia. Mas, o objetivo desses veículos e daqueles cujos interesses eles representam é muito mais no sentido de deslegitimar e desmoralizar quem faz a luta social. Independente de quem a fizer. Eles também fazem o mesmo quando tem ocupação de sem teto e outras coisas. A tentativa não é de criminalizar só o MST, é criminalizar todos os movimentos sociais.
[ Zé Dirceu ] É, agora, nas manifestações das favelas em São Paulo, nas dos bairros na periferia, contra a PM. Dizem que tudo é baderna. É a maneira de desqualificarem o caráter social e político da manifestação contra a violência da polícia e contra a falta de atuação do Estado. Os jornais só dizem que é baderna e que tem que ser reprimido. Para eles, está tudo certo (a repressão) e ainda registram “infelizmente morreu uma criança”.
[ Stédile ] O que eles fizeram em relação a áreas em que há despejo, por exemplo, o naquela área em Embu.
[ Zé Dirceu ] Aquilo foi articulado para ter apoio dos meios de comunicação. É um exemplo da polícia para ser aplicado no país depois. Vão calcar no eleitorado de direita, conservador. Dizer que o bom é aquele exemplo do Serra em São Paulo.
[ Stédile ] Da governadora Yeda Crusius no Rio Grande do Sul também. A dona Yeda já começou (a governar, em 2007) sem base social. E como ela se posicionou? Transformou a Brigada Militar (PM gaúcha) em cão de guarda do capital. Chamou os setores do Ministério Publico fascistas, claramente afinados com sua proposta ideológica e, financiada por grandes grupos econômicos, tentou impor um governo ditadorial. Ela se desmoralizou porque ficou evidente. No governo dela ficou tudo tão centralizado, que ao ultrapassar o limite da corrupção, veio a público e ela não pode controlar. Controla a parte do ministério público estadual, mas não o federal que, inclusive, fez as denúncias (de improbidade administrativa e manipulação de concorrência e licitações) contra ela.
Acho, então, que tanto o artigo do Sarney quanto o do Bresser Pereira foram duas manifestações das mais lúcidas desse campo da elite intelectualizada brasileira, porque eles comentaram a razão dos fatos e não simplesmente a questão ideológica.
Apoio ou oposição é para partidos,
movimento social deve ser autônomo.
[ Zé Dirceu ] Qual a avaliação política que voce faz da atuação do MST nesse período do governo Lula? Houve fortalecimento? O movimento está mais ou menos forte, mais ou menos organizado, com mais ou menos bases e apoio da sociedade?
[ Stédile ] Nos últimos anos o MST consolidou um acúmulo de forças própria. E foi correta a nossa política em relação ao governo Lula, de manter autonomia política para resguardar a saúde que deve ter um movimento social. Ou seja, nem caímos num adesismo de "agora, como elegemos o Lula..." – toda a base dos sem-terra votou no Lula – nem nos transformamos em puxa-sacos, ou chapas-branca como se diz. Ao mesmo tempo, não caímos no que certos setores da esquerda caíram de “ah, o governo Lula não conseguiu mudar a política econômica, então vamos para a oposição e tudo o que vier do governo Lula é ruim”. Alguns movimentos sociais fizeram essa inflexão. Foram para a oposição. O que nós dizemos é que o papel de apoio ou oposição é para partidos políticos. Movimento social tem que ser autônomo. Seja qual for o governo ou o Estado, temos que ter autonomia.
Nós pagamos caro por essa política. Amigos que queriam que fossemos adesistas, nos chamaram de esquerdistas. E os esquerdistas disseram “não, vocês são muito adesistas”. E difícil, mas nós estamos convencidos de que essa foi a política que, inclusive, nos salvou, porque senão, provavelmente, o movimento teria tido sérios problemas de crescimento. Essa foi a situação.
Agora, em relação à reforma agrária, penso que ela não depende mais do MST. No começo do governo Lula, havia aquela euforia. No início de 2003, em torno de 200 mil famílias foram para acampamentos, porque havia uma vontade política da nossa parte e achamos, "agora com o Lula", que haveria o reacenso da massa. E não houve.
Então, a reforma agrária não depende mais do MST, mas de uma nova correlação de forças na sociedade. Depende de um reacenso do movimento de massas porque a classe trabalhadora que vive no campo é minoritária. Nós não alteramos mais a correlação de forças. Ela só irá ser alterada se houver movimentação social na cidade.
Essa é a nossa tragédia. Nós somos um movimento com unidade, temos clareza política, sabemos onde queremos ir, mas não temos força própria suficiente para alterar a correlação. Temos que esperar que a turma da cidade também faça um movimento que reative o movimento de massas e que aí sim, altere a correlação de forças para pressionarmos a realização de uma reforma agrária mais rápida.
Assim, os avanços da reforma agrária não dependem nem do MST, nem só da luta social no campo. Dependem da luta social no Brasil inteiro.
[ Zé Dirceu ] Como vocês estão vendo a eleição de 2010, na medida em que apoiaram direta ou indiretamente a candidatura Lula, e levando em consideração as conseqüências para a América Latina, se o projeto político que o Lula representa for derrotado no Brasil?
[ Stédile ] Não temos feito um debate mais eleitoral. Estamos tendo cuidado com isso. O nosso debate interno ainda é sobre a política geral, a luta de classes e a correlação de forças. Em termos gerais, te respondo pelo que é da tradição da nossa política: primeiro, manter nossa autonomia; segundo, continuar nosso trabalho político e ideológico de estimular – e é assim que nossa militância se comporta – o eleitor a sempre votar tanto em nível federal, quanto estadual, quanto municpal, nos candidatos mais progressistas e que defendem a reforma agrária; terceiro, há uma vontade e decisão política de barrar a volta do neoliberalismo.
Luta contra a restauração
do neoliberalismo
Estamos e somos contra os projetos de restauração do neoliberalismo. Sem dúvida, o MST estará nas primeiras trincheiras da batalha. Fazemos questão de ajudar a contribuir para que o neoliberalismo não se restaure aqui no Brasil.
Os jornalistas perguntam: “vocês são da Marina, da Dilma, do Ciro etc”, o que respondemos é que não nos cabe discutir nomes agora. O que temos que estimular na sociedade brasileira é a discussão de um projeto para que ao redor dele as pessoas votem com consciência.
Nós não caímos nos simplismo de vontades eleitorais, ou partidárias, ou por afinidades pessoais. Tem gente que diz: "pessoalmente a Dilma é muito parecida com o Ciro... " Isso não explica nada! Então, até para não cair nesse tipo de reducionismo, nós achamos que o debate político a ser feito daqui a até outubro do ano que vem tem que ser sobre a necessidade de um projeto para o país, para que as pessoas saibam o que está em jogo e que tipo de projeto nós temos que fazer avançar daqui para a frente. Esse é o debate que estamos fazendo entre nós.
Evidentemente, que no caso do Rio Grande do Sul, a batalha será mais dura, porque por todo o uso que fez da Brigada Militar e do ministério publico estadual, o projeto da Yeda (Crusius) foi não só o da restauração do neoliberalismo, mas dos fascistas. Depende de cada Estado, o maior ou menor engajamento da militância. E isso se dará, também, em função das candidaturas estaduais. Os governadores tem muito peso nas lutas sóciais do campo, já que quem nos reprime são as polícias estaduais.
[ Zé Dirceu ] Como o MST é um movimento com grande inserção internacional, inclusive pela Via Campesina, como vocês avaliam o cenário internacional após dez meses da eleição de Barack Obama e um pouco também sobre a América Latina e a relação com as eleições do ano que vem?
[ Stédile ] Nós estamos muito preocupados. Estamos vindo de dez anos de avanços das forças progressistas, mas esse avanço registrado a partir de 1999 com a subida do presidente Hugo Chávez (Venezuela) até hoje, não veio acompanhado com o reacenso do movimento de massas. Talvez, na Bolívia aconteceu, mas nos demais países não. Isso criou uma dificuldade maior. Ao se dar conta de que as massas não vieram para o reacenso, para participar mais da atividade, evidentemente, o império está tentando reestaurar o seu projeto para a América Latina.
Os EUA tinham sido derrotados nesses dez anos. Foram derrotados na ALCA e agora tentam recompor esse projeto, que inclusive, independe da postura pessoal do Obama. O projeto do império é o do capital imperialista, do Estado belicista norte-americano. Há alguns dias, ouvi uma palestra na qual o orador dizia que toda a tentativa da economia norteamericana de sair da crise é aumentando a indústria bélica. Nem é pela saúde, nem por um Bolsa Família, eles poderiam criar uma bolsa família para os pobres norte-americanos e incentivar o mercado interno ou frear as importações da China. Não. A alternativa principal que o capital americano está tomando para sair da crise é o aumento da sua produção bélica e com isso, ter mais armas e munição.
Isso é um perigo, porque eles vão estimular conflitos até para reativar sua economia. Nesse cenário, nós vemos os EUA acelerando, mudando o passo. O caso de Honduras, por exemplo, todos sabemos que a base americana se envolveu, o embaixador se envolveu. No Panamá, idem. Essas bases da Colômbia (seis norte-americanas) são uma ofensa a todo o continente, um caso inadmissível.
Nessa questão concordamos com a avaliação do Chávez, de que é uma tentativa de transformar a Colômbia numa Israel na América do Sul. Sobretudo uma tentativa de levar a uma guerra fria entre a Colômbia e a Venezuela. É o pior dos mundos porque obriga a Venezuela a gastar dinheiro público em armamento, tanque e helicóptero ao invés de comprar casa e construir metrô.
Então, estimula-se uma guerra fria regional para barrar o processo venezuelano. Pelo que se vê pelo Chile e o Peru, trata-se de reativar as direitonas locais para tentar retomar o controle. Não se sabe até que ponto essa mesma direita americana vai insuflar nossas eleições. É possível que aqui no Brasil também. Com isso, o tom ideológico aumenta.
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26 Junho 2008
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