TAMAR-MATAR
Artigo de Cicero Harada
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Político malandro é esperto. Seu olhar fisiológico não se desprega do próprio umbigo. Concorda sempre com o possível eleitor. Surfa nas ondas da contradição e leva o voto de pessoas de concepções mais díspares. Simpático, fala coisas bonitas, ri, chora, esbraveja, protesta, sempre segundo as circunstâncias. Afirma ou nega convictamente algo que lhe dê pontos. Humilde, reconhece ignorância diante de polêmica que lhe possa subtrair votos. Nega, olimpicamente, se for surpreendido em ações comprometedoras. Carrega uma aura de alva e comovente pureza. Diante dele, até a testemunha ocular da falcatrua chega a duvidar de seus sentidos. Se tudo está perdido, com ares de comovida indignação, esbraveja: “as coisas sempre foram assim desde que o mundo é mundo! Mas agora, nunca como antes, é por uma causa sublime!”
Digo isso, porque a Câmara dos Deputados fulminou o Projeto nº 1.135/91, que pretende a legalização do aborto no Brasil. Primeiramente, na Comissão de Seguridade Social e Família por unanimidade (33X0). Depois, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania por expressiva maioria (57X4). Nesta, o parecer aprovado, por força do Regimento da Casa, é terminativo, isto é, põe fim ao processo legislativo, salvo se houver recurso. Ocorre que o deputado José Genoíno (PT-SP) interpôs o recurso nº 201/2008 contra o parecer da Comissão de Constituição e Justiça. O apelo foi subscrito por ele e mais sessenta e dois deputados federais.
Três deputados, Carlos Santana (PT–RJ), Carlos Abicalil (PT–MT) e Vicentinho (PT–SP) apresentaram requerimento de retirada da assinatura. Os pedidos foram indeferidos nos termos do artigo 102, §4º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, porque, uma vez publicado o recurso, não cabe a supressão da assinatura. Antes mesmo dos indeferimentos, o assessor parlamentar Jaime Ferreira Lopes já o havia previsto. O fato pode ser comprovado aqui.
Além dos deputados que desaparecem na hora do voto, eis aí outro álibi. Os eleitores a favor da vida são informados pela assessoria de que houve desistência e pedido de retirada da assinatura. A petição protocolada pode até ser apresentada ao embasbacado eleitor, mas o pedido de desistência não tem efeito jurídico algum. É um zero à esquerda.
Outros juram por tudo aos defensores da vida, que são contra o aborto, o assassínio de crianças não nascidas, que nunca votaram nada a favor da medida, até porque não fizeram parte de nenhuma daquelas comissões. Apenas subscreveram o recurso, a fim de que a matéria pudesse ser debatida em plenário. Notem bem: recurso é meio processual para os inconformados se socorrerem de instância superior, para combater e reformar uma decisão.
Será que alguém assinaria recurso para discutir a possibilidade de legalização do seu próprio assassínio? São tentativas de ficarem em cima do muro ou pura ingenuidade? Ignoram eles recente pesquisa do Datafolha de que só 3% das pessoas acham o aborto moralmente aceitável? Um dia, questionado por jovens, Ulysses Guimarães disse-nos que alguns parlamentares podem não ter formação superior ou acadêmica, mas lá na Câmara dos Deputados não há ingênuos, lá não há bobinhos. Todos têm muita experiência, já foram presidentes de empresas, de grandes entidades, foram governadores, ministros, prefeitos, secretários de Estado, senadores, deputados estaduais, vereadores. Se ainda assim concluirmos que o deputado não tem malícia, merecerá ele o nosso voto?
Matias Aires dizia que malícia é aquela inteligência ou ato que prevê o mal ou o medita, espécie de arte natural, que se compõe de combinações e conseqüências, sendo, por isso, virtude política. Fazia uma distinção importante: “tem malícia quem descobre o mal para o evitar, é malicioso quem o antevê para o exercer”. Também nós precisamos ter muita malícia e discernimento para não cair nas manobras dos maliciosos.
Cicero Harada
Advogado, Conselheiro da OAB-SP,
Presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB-SP, foi Procurador do Estado de São Paulo.
cicero.harada@terra.com.br
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