24/03/2011 às 6:37
Caras e caros, eis um daqueles textos longos, mas essencial para o entendimento que temos, eu e vocês, do mundo. Acho que não vou aborrecê-los.
Algo de muito grave se insinuou ontem no Supremo Tribunal Federal na votação sobre a chamada Lei da Ficha Limpa. Sob o pretexto de se moralizar a vida pública, os direitos individuais acabaram sendo alvos de uma especulação inaceitável. Sob o pretexto de moralizar a vida pública, uma cláusula pétrea da Constituição, que é uma garantia fundamental de todos os brasileiros, foi considerada inimiga da decência. E eu denuncio aqui tais visões distorcidas. O meu parâmetro continua a ser o mesmo: o das sociedades abertas, fundadas nas garantias individuais. O contrário disso é ditadura — nem que seja ditadura de maioria, igualmente repulsiva. Ao caso.
Segundo o Artigo 16 da Constituição Federal, “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. E ponto! A linguagem legal é muitas vezes uma “florida galeota empavesada”, como diria o poeta, gongórica, cheia de brocados. Não é o caso deste artigo. Sua clareza é solar e não apresenta interstícios para vocações interpretativas e devaneios condoreiros! Como a tal lei foi aprovada a menos de um ano da eleição então vindoura, resta evidente que não poderia ter sido aplicada em 2010. Ocorre que ela foi — graças a uma sucessão de absurdos que tomou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que decidiu abraçar o populismo sob o pretexto de abraçar o povo. Por seis votos a cinco, prevaleceu ontem o entendimento de que o Artigo 16 da Constituição impediria a sua aplicação na disputa do ano passado.
Quiseram alguns que se assistiu a uma bela tertúlia jurídica ontem, com um confronto de argumentações sólidas, em que o saber jurídico, ao confrontar leituras distintas, caracterizou-se pelo esmero, pelo cuidado, pela sapiência. Discordo radicalmente! O que se viu foi um confronto entre a Justiça e os justiceiros; entre a argumentação técnica, que apela ao saber jurídico, e certa propensão ou ao apelo à voz rouca das ruas ou, vênia máxima, à ligeireza. O relator do caso foi o ministro Gilmar Mendes, que entendeu que a lei não poderia ter validade em 2010, no que foi seguido por Luiz Fux, Dias Tóffoli, Marco Aurélio de Mello, Celso de Mello e Cezar Peluso. Os ministros Carmen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Ayres Britto e Ellen Gracie votaram contra o relator.
Quem não quer?Quem não quer a moralidade na vida pública? Mas ela só pode ser alcançada dentro da Constituição democraticamente votada. Se admito que um princípio constitucional pode ser violado para fazer uma “justiça” que, de outra sorte, não se faria, então peço ao Mal que se ajoelhe no altar do Bem para lhe prestar reverência. Se hoje, porque somos bons, admitimos que se pode transgredir a lei para pegar os “maus”, um dia os “maus” recorrerão a tal expediente para nos punir — nós, os bons! — sem que possamos nem mesmo protestar, já que uma mesma (a)moralidade nos une, ainda que em campos opostos.
Já basta que o Ficha Limpa jogue na lata do lixo a presunção da inocência sem que tenhamos aberto mão da presunção da inocência; já basta que se ignore o princípio sagrado nos estados de direito da não-retroatividade da lei, embora o princípio da não-retroatividade continue, felizmente, a orientar o nosso direito. Cinco ministros tentaram, nesta quarta, para arremate dos males, fazer letra morta do Artigo 16 da Constituição. Algumas considerações foram apenas ligeiras; outras, no entanto, trazem a semente do mal. Que mal? A visão totalitária de estado. Caso venha a prosperar no STF, estaremos no pior dos mundos.
O auge do desatino, entendo, se deu com uma consideração do ministro Ayres Britto, que atuou em dobradinha com Joaquim Barbosa, como dupla sertaneja — depois do “Sertanejo Universitário”, temos o “Sertanejo Judiciário”. Adiante! Segundo Britto, numa consideração escandalosa, “os direitos individuais têm sido usados para esvaziar outros direitos…” E emendou: “Direitos da cidadania, do trabalho”. Quem é esse ente jurídico, essa tal “cidadania”? Onde ela mora? Tem CPF ou CNPJ? Que diabo é isso, ministro Ayres Britto? Onde se esconde esse sujeito de direito?
A garantia contida no Artigo 16, como bem lembrou Gilmar Mendes, num voto brilhante, impede que maiorias de ocasião possam, sob os pretextos os mais aparentemente louváveis, mudar as regras de modo a se beneficiar. O texto assegura a igualdade na disputa. Não para Britto, que vê aí um conflito entre “direito individual” (qual???) e “direito coletivo”. Ora, o Artigo 16 da Constituição não foi redigido para proteger o sr. Leonídio Egídio Correa Bouças, que recorreu ao Supremo. Trata-se, ao contrário do que sugere o ministro, de uma garantia geral — ou, se ele quiser, “da cidadania”…
A consideração de Britto é infeliz e vem a contrapelo dos fatos. O que está em curso é justamente o contrário: direitos individuais estão sendo escancaradamente violados em nome dos tais “direitos da cidadania”. Querem um exemplo? Quando um estudante classificado num exame vestibular perde a sua vaga para um cotista, por exemplo, quem está sendo “esvaziado”? A resposta é óbvia: o direito individual!
Estados fascistas e socialistasSó os estados totalitários vêem os direitos individuais como adversários dos direitos coletivos. O filósofo Giovanni Gentile resumiu a essência do fascismo: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”. No socialismo, poder-se-ia trocar “estado” por “partido”. O objetivo virtuoso de um estado, numa democracia, deve ser garantir os direitos de todos garantindo o direito de cada um. Quantos crimes já se cometeram em nome da coletividade!!!
O bárbaro BarbosaBritto vinha no embalo de Joaquim Barbosa, que não havia economizado no absurdo. Sem contestar uma linha daqueles que o antecederam, resolveu resumir a questão a uma luta entre o Bem e o Mal — escolhendo, a meu ver, o Mal, mas ele estava convicto de estar fazendo o contrário. Segundo disse, tratava-se de optar entre dois primados da Constituição: o do Artigo 16 (logo, Barbosa admite que a Carta impedia a aplicação da lei em 2010!!!) e a defesa da moralidade na vida pública. Depreende-se, assim, de tão douta argumentação que o Artigo 16 concorra para a imoralidade, certo? Pode-se até avançar um pouco mais: se é assim, aqueles que a ele recorrerem para fundamentar o seu voto estarão compactuado coma lambança.
Eis uma consideração, lamento dizer, não muito inteligente, já que a contradição apontada por ele não existe, e também um tanto ofensiva com seus pares. Barbosa tem certa dificuldade de argumentar sem que pareça que ele fala em nome da justiça, e os outros, da injustiça. Não o assiste aquele decoro básico de elogiar o voto contrário ao seu para abrir divergência. Nunca! Fica sempre uma sugestão de que está combatendo a má fé. Vamos ver: com que então a Constituição brasileira abriga um artigo que não pode freqüentar casas de família? Não dá!
Direito, vela e defunto
Ellen Gracie, sempre tão sóbria, parecia estar com pressa ontem. Referindo-se aos votos de Mendes e de Fux, que elogiou, mandou ver: “Gasta-se boa vela com mau defunto”. Entendi que o mau defunto era o brasileiro que usava o seu direito de recorrer à Justiça, pouco importando as suas qualidades morais, não é? Eis aí, ministro Britto, um “direito da cidadania” que só faz sentido se for uma direito individual. Não! Isso não é argumentação jurídica. Isso nem mais é uma metáfora a esta altura, mas um mero clichê esvaziado de sentido. A fala avilta um tantinho o debate.
Ellen Gracie, sempre tão sóbria, parecia estar com pressa ontem. Referindo-se aos votos de Mendes e de Fux, que elogiou, mandou ver: “Gasta-se boa vela com mau defunto”. Entendi que o mau defunto era o brasileiro que usava o seu direito de recorrer à Justiça, pouco importando as suas qualidades morais, não é? Eis aí, ministro Britto, um “direito da cidadania” que só faz sentido se for uma direito individual. Não! Isso não é argumentação jurídica. Isso nem mais é uma metáfora a esta altura, mas um mero clichê esvaziado de sentido. A fala avilta um tantinho o debate.
LewandowskiO ministro Lewandowski, também presidente do TSE, tem uma trajetória curiosa nessa história. Era crítico do Ficha Limpa. No dia 21 de maio do ano passado, considerava: “A lei só pode retroagir para beneficiar alguém, nunca pode prejudicar”. À medida, parece, que o texto caiu nas graças da imprensa, foi se tornando seu defensor radical…
Caminhando para o encerramentoEscrevi, creio, quase uma centena de textos sobre o Ficha Limpa. Eu e vocês sabemos o quanto apanhei por isso — até de alguns leitores habituais do blog. A minha questão foi sempre a mesma: não se faz uma democracia sem respeitar as instituições. Não será a bandidagem a decidir se a Carta vale ou não no país. Mais do que isso: sempre alertei, e gostei de ver o ministro Fux fazer o mesmo hoje — já critiquei aqui algumas manifestações suas —, que o vírus da transgressão à Constituição contamina as liberdades individuais.
Nesta quarta, o ministro Ayres Britto provou com sobras a minha tese. Ele acredita que, no Brasil, ‘direitos individuais têm sido usados para esvaziar outros direitos da cidadania”. Bem, queridos, nós somos aquela gente esquisita que acredita que, fora dos direitos individuais, não há salvação para a democracia. Na verdade, nós acreditamos que, fora dos direitos individuais, não há nem mesmo democracia.
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