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Suponho que esteja tentando ser, a um só tempo, irônico com as críticas generalizadas ao Congresso e também crítico aos desmandos do Legislativo. Nos termos em que se expressa, no entanto, consegue se mostrar, no máximo, tolo. Seu discurso, aliás, é uma evidência da assustadora mediocridade do Parlamento. Mas nem assim se justificaria o seu fechamento. Uma democracia é obrigada a conviver até com bobagens.
A ironia e argumentação ab absurdo são recursos retóricos válidos num discurso ou numa porfia. O diabo é que essas coisas se desfazem quando o senador afirma que, se o povo votasse pelo fechamento do Parlamento, “isso não seria golpe”.
Errou, senador! Errou feio!
Seria golpe, sim. O senhor tire o bloquinho do bolso e anote aí o que Tio Rei vai dizer — Tio Rei não se importa de aprender com os moços ou de ensinar aos velhos: nem o povo tem legitimidade para fraudar a essência da democracia. Pense, senador, por exemplo, nas cláusulas pétreas da Constituição. Não podem ser mudadas, como o senhor deve saber, por emenda constitucional ou por qualquer outro instrumento. Só uma Constituinte poderia alterá-la. E uma Constituinte requer rompimento da ordem.
Ademais, caro senhor: se fosse dado ao povo votar em tal plebiscito, quem lhe teria facultado tal possibilidade senão um golpista?
Não, não, senador! O Parlamento tem de continuar aberto, operando com todas as suas prerrogativas. E tem de ser decente. Ainda que o senhor, pelo visto, não considere isso possível. Sendo assim, em vez de dizer tolices, tem de pegar o boné e ir pra casa.
Nem o povo tem o direito de, usando os instrumentos da democracia, solapar a democracia. É por isso, senador, que um linchamento, segundo os valores que aprendemos a cultivar, será sempre uma barbárie, independentemente dos motivos, das motivações e do crime cometido por aquele que se quer esfolar. Porque a civilização democrática aprendeu que os julgamentos devem ser feitos em tribunais, garantindo-se o direito de defesa. Ainda que o povo queira o direito de linchar, nós não lho daremos. O senhor me entende? Quer que eu desenhe?
“Nós, quem?”, o senhor poderia perguntar. Respondo sem susto — e quem sabe o senhor fique um tanto arrepiado: “nós, as elites”, os que formos distinguidos, por um conjunto de razões, para zelar por valores que a todos protegem, embora nem todos possam estar dispostos a protegê-los.
O seu destempero retórico pode nascer do desencanto — tenho até certa simpatia pelos desencantados e pelos pessimistas —, mas se deixa tocar pelo populismo mais rasteiro quando supõe que a única fonte de legitimidade da democracia é a maioria. O senhor está errado. Não existe democracia sem a proteção às minorias. Aliás, senador, nem é preciso regime democrático para fazer o que a maioria quer, como o fascismo deixou claro.
Na democracia, senador, a gente tem de ser tão diligente, mas tão diligente, que, se for preciso, a gente ajuda o povo a se proteger de si mesmo...
E de alguns senadores, é claro!
Muita gente revoltada com as críticas que fiz a Cristovam Buarque. É? Pois acho que ainda fui condescendente. E não me venham com a história de que não entendi a ironia. Leiam direito o meu texto, ora essa! Eu mesmo abordei a hipótese de que ele estava sendo irônico e argumentando ab absurdo — sim, eu lhe dispensei até um pouco de latim... Ocorre que ele disse, com todas as letras, que, se o povo votasse a favor do fechamento do Congresso num plebiscito (que plebiscito???), isso não seria golpe. E aí eu afirmei: "Seria, sim!" Nem o povo tem direito de golpear a democracia. Ao fazer aquela afirmação, Cristovam estava dizendo que toda vontade popular é legítima. E eu digo: “NÃO É”.
Alguns relativistas vieram, então, com suas bizarrices: “Oh, mas os governos são construções históricas, não caem do céu!” Ora, não me digam! Ou então: “Mas o que é a verdadeira democracia?” — estes acreditam que ou a verdade cai do céu, ou tudo é falso. Eu chuto o traseiro de relativistas. Eu não deixo minha carteira dando sopa perto de relativistas. Eu não compraria um carro usado de relativistas. E a razão é simples: eles podem roubar o meu dinheiro ou me vender uma lata imprestável. Afinal, sabem como é, eles têm seus próprios valores...
É claro que a democracia representativa é uma construção histórica. Ela não se assenta apenas na observância das leis (estado de direito), posto que é possível haver “ditaduras de direito” — ou seja: elas só esmagam o cidadão segundo o código discricionário e transformam em leis as proibições as mais estúpidas. A democracia também não se assenta apenas na vontade da maioria, posto que é possível haver regimes violentos que contam com apoio popular, embora suas práticas sejam condenáveis(voltaremos a essa palavra; não se esqueçam dela): os fascismos europeus da década de 40 do século passado são clássicos no gênero; é possível que o Taleban, no Afeganistão, tivesse o apoio da maioria.
Então vejam: o estado de direito não basta para fazer uma democracia. O estado de direito mais a vontade da maioria não bastam para fazer uma democracia. Alguém pode indagar: “E se acrescentarmos aí, Reinaldo, a divisão e independência entre os Poderes? O conjunto basta para fazer uma democracia?” Melhora muito, meus caros. Mas ainda não basta. Digamos — não é o caso, mas digamos! — que o Legislativo e o Executivo na Venezuela, hoje, fossem independentes. Se os três Poderes continuassem irmanados na defesa das mesmas teses ditas “bolivarianas”, esmagando a divergência, não se teria democracia. Mas lhes dou um exemplo ainda mais óbvio.
As teocracias islâmicas, por exemplo, não podem ser democracias. Na maioria delas, há estado de direito, com respeito à vontade da maioria, e os Poderes até são independentes — dentro da independência possível. Ocorre que a religião se torna um redutor de todas as demandas, e seu valordeita sua sombra sobre a sociedade.
Escrevi a palavra-chave: VALOR. Uma democracia tem de estar assentada no estado de direito, na vontade da maioria, na separação e independência entre os Poderes e nos VALORES. Pergunto: é democrático que a maioria decida que nem todos são iguais perante a lei? É democrático que a maioria ache normal que a lei seja posta a serviço do grupo governante da hora? É democrático, para ficar nos termos do senador Cristovam, que o povo decida que não quer mais um Parlamento? Pode haver democracia islâmica, por exemplo, dado que as mulheres, sob o Islã (ou, se quiserem, sob os vários “Islãs”), não têm os mesmos direitos dos homens? "Ah, não se trata de uma questão de direitos, mas de cultura..." Pois é! Eu fico com os direitos...
A tese de que a vontade da maioria é a verdadeira força da democracia é autoritária e filoditatorial. Eu realmente acredito que alguns valores sociais e morais são patrimônios incorporados à evolução da civilização, como as vacinas por exemplo — e, a exemplo delas, nos fazem viver melhor. Eu realmente acredito que alguns valores da chamada cultura ocidental — como tolerância, respeito a minorias, igualdade perante a lei, liberdade religiosa — a fazem superior a outras realidades culturais.
Como diria Barack Hussein Obama, eu não estou em guerra com o Islã — nem com ninguém. Eu sou, isto sim, é um defensor radical, intransigente mesmo, desses valores. E, com efeito, acredito que os homens de toda a terra viveriam melhor sob o seu abrigo.
Sob este ponto de vista, reconheço meu lado quase jesuítico. Acho que os valores da democracia têm de ser espalhados pelos quatro cantos da terra. E creio que devem ser devidamente contidos aqueles que, mesmo estando entre nós, pretendem sabotá-los. Porque o regime de liberdades pode tolerar quase tudo — só não pode tolerar os intolerantes.
Houvesse um símbolo ou emblema para o regime democrático, como há para o cristianismo, por exemplo, eu não teria dúvida de nele inscrever a frase "In hoc signo vinces".
Um comentário:
Belo Artigo.
Trata-se dum conjunto, dum todo, a sociedade, e, podre, uma vez que é preciso contar com ela ao mesmo tempo que se não deve contar. Quer dizer, é como um conjunto estável, composto por elementos instáveis. Ora é impossível viver no interior, sem sofrer essa instabilidade, esse monte de mentiras. Surge então o medo de utilizar o mínimo pormenor que participe dessa instabilidade. É a revolta. Você duvida do valor das palavras, dos gestos, do que representam as palavras, das ideias, das simples associações de ideias, dos sonhos e até da realidade, das sensações mais claras, mais agudas. Você duvida mesmo da sua dúvida, da organização que toma, da forma que adota. Não lhe fica nada, nada. Já não é nada, é um camaleão, um eco, uma sombra. Isso é obra da sociedade, compreende?
Atenciosamente
Gabriel T.
http://eclipsedarazao.blogspot.com/
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