Por Olavo de Carvalho em 30 de maio de 2008
A mídia abortista – isto é, praticamente a mídia inteira – cumpriu novamente o seu ritual periódico do silêncio obsequioso, desta vez omitindo-se de assinalar, ao menos com o devido destaque, as palavras centrais, memoráveis sob todos os aspectos, do voto dado pelo ministro Eros Grau na questão das células-tronco:
“O debate instalado ao redor do que dispõe a Lei n. 11.105 não opõe ciência e religião, porém religião e religião. Alguns dos que assumem o lugar de quem fala e diz pela Ciência são portadores de mais certezas do que os líderes religiosos mais conspícuos. Portam-se, alguns deles, com arrogância que nega a própria Ciência, como que supondo que todos, inclusive os que cá estão, fossemos parvos. Como todas as academias de ciência são favoráveis às pesquisas de que ora se cuida, já está decidido. Nada mais teríamos nós a deliberar. Mesmo porque, a imaginar que as impedíssemos, estaríamos a opor obstáculo à cura imediata de doenças. A promessa é de que, declarada a constitucionalidade dos preceitos ora sindicados, algumas semanas ou meses após todas as curas serão logradas. Típica indução a erro mediante artifício retórico. É necessário sopitarmos as expansões de infalibilidade de quem substitui a razão científica por inesgotável fé na Ciência, transformando-a em expressão de fanatismo religioso.”
Dada a sua formação marxista, eu jamais esperaria do ministro uma tomada de posição tão lúcida, tão certeira, tão corajosa, comovente até, contra o “culto da ciência”. Culto que ainda recentemente mais uma obra histórica de grande envergadura, The Dictators: Hitler's Germany, Stalin's Russia , de Richard Overy (New York, W. W. Norton, 2004) veio confirmar ter sido um dos pilares fundamentais de construção dos dois regimes mais hediondamente homicidas que o mundo já conheceu.
Um vício crônico da intelectualidade brasileira é a devoção contínua que cada homem letrado, neste país, se sente obrigado a continuar prestando, pela vida a fora, às suas crenças de juventude. A identidade ideológica do adolescente, qualquer que seja ela, se integra de tal modo nos cérebros e nas almas, que acaba por se sobrepor às faculdades de percepção e intuição, tornando impossível o reconhecimento dos fatos mais gritantes, das realidades mais patentes e manifestas, e reduzindo a atividade pensante à repetição mecanicamente obsessiva de clichês e slogans , por mais deslocados que estejam da situação concreta.
Martin Amis, o brilhante romancista e crítico inglês, dizia que a essência da crítica literária e, no fim das contas, de toda a vida intelectual, é “a luta contra os clichês – não somente os clichês da palavra, mas sobretudo os da alma e do coração”.
Quando um intelectual e homem público brasileiro logra escapar da escravidão mental incapacitante que, por apego a seus companheiros de geração, tantos acabam consagrando como um dever sublime, o que se vê é aquele “momento de veracidade” em que as coisas se revelam como são e que, segundo uma antiga lenda hindu, eleva a criatura humana ao ponto de lhe dar voz de comando sobre os elementos da natureza.
Só uma palavra pode resumir os méritos de que o ministro Grau se cobriu com esse seu voto: Bravo!
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