| 31 OUTUBRO 2011
ARTIGOS - CULTURA
Uma lição tardia - I
Lendo a bela resenha que Gertrud Himmelfarb consagrou na New Criterion de outubro ao livro recentíssimo de Adam Kirsch sobre Lionel Trilling (Why Trilling Matters, Yale Univ. Press, 2011), tento, em vão, medir a diferença entre um país onde se busca recuperar a memória perdida do grande crítico e outro país onde a influência dele jamais penetrou nem pode penetrar.
Se nos EUA o estudo sério da literatura nas universidades foi quase soterrado sob toneladas de propaganda feminista, gayzista, islamista, comunista, africanista, o diabo, no Brasil a própria literatura desapareceu por completo – fato inédito na história de qualquer país do Ocidente –, mal subsistindo uma vaga lembrança do que essa atividade possa ter representado em épocas passadas.
Se nos EUA o estudo sério da literatura nas universidades foi quase soterrado sob toneladas de propaganda feminista, gayzista, islamista, comunista, africanista, o diabo, no Brasil a própria literatura desapareceu por completo – fato inédito na história de qualquer país do Ocidente –, mal subsistindo uma vaga lembrança do que essa atividade possa ter representado em épocas passadas.
Até a Academia Brasileira, que por algum motivo continua a chamar-se "de Letras" já não sabe direito do que se trata, imaginando ser coisa relacionada às pessoas dos srs. Lula, Ronaldinho Gaúcho, João Havelange, Diogo Nogueira e outros ali homenageados.
Mas não é só por isso que a mensagem de Lionel Trilling repercutirá nestas plagas como a campainha do recreio soando num cemitério. É também, e sobretudo, porque ela fornece o padrão de medida com que se pode avaliar a extensão da calamidade cultural brasileira, e esta última, aferida por semelhante critério, mostra já ter passado daquele ponto em que tomar consciência de um estado de coisas miserável é um princípio de esperança.
O Brasil mal chegou a desempenhar um papel insignificante na história intelectual do mundo, e já abdicou até das condições mínimas que lhe permitiram fazê-lo durante algum tempo. A opção preferencial pela barbárie e pelo grotesco foi levada às últimas consequências, e não existe via de retorno.
Brasileiros podem, é claro, continuar estudando, criando, descobrindo, escrevendo coisas boas. Mas serão contribuições individuais, isoladas, não integráveis em qualquer conjunto que valha o nome de "cultura nacional". Essa a conclusão a que chego quando examino a história mental deste país nas últimas décadas com os olhos de um aprendiz dos ensinamentos de Lionel Trilling, autor que li muito desde a juventude, com satisfação imensa, e do qual não posso dizer que tenha jamais discordado em algum ponto essencial.
O principal desses ensinamentos é que uma sociedade, sua história e sua política só podem ser compreendidos à luz daquela "imaginação moral" que se adquire com a assídua frequentação da grande literatura. A imaginação moral não é a absorção de um código moral, mas, ao contrário – nas palavras de Trilling –, "a consciência das contradições, paradoxos e perigos de viver a vida moral".
Himmelfarb observa que, ao longo das obras de Trilling, algumas palavras frequentes são "variedade", "possibilidade", "complexidade", "dificuldade", "sutileza", "ambiguidade", "contingência", "paradoxo" e "ironia". São os termos que traduzem a própria substância da vida moral, não como aparece no esquematismo abstrato dos códigos e regras, mas na realidade da existência concreta, que não é acessível à compreensão intelectual antes de ser elaborada em símbolos pela imaginação literária.
Os humanistas do quattrocento e do cinquecento, e antes deles os pedagogos das escolas monacais dos séculos 11 e 12, já haviam compreendido isso com clareza. Era na leitura dos clássicos que adquiriam o senso da compreensão, da benevolência, da misericórdia e da delicadeza de sentimentos – as virtudes propriamente humanas que os preparavam para a piedade e a caridade cristãs.
Foi com base em considerações dessa ordem que Lionel Trilling escreveu seu célebre estudo da ideologia americana dominante, The Liberal Imagination (1950).
A palavra "liberal", nos EUA, não tem nada a ver com o liberalismo econômico clássico que ela evoca espontaneamente no Brasil. Designa, bem ao contrário, o progressismo esquerdista que favorece os programas sociais, os impostos altos e o intervencionismo estatal, não raro o comunismo puro e simples.
O progressismo, observava Trilling, era de fato a única tradição intelectual dos EUA. Entre o povo havia sentimentos conservadores, mas não, entre os intelectuais, uma história contínua de ideias conservadoras em debate. Daí a importância de examinar o fundo de símbolos e emoções por baixo das ideias esquerdistas em evidência.
A primeira coisa que o crítico aí notava era a rigidez esquemática das reações morais, a falta de abertura para a variedade e ambiguidade das situações humanas, que tão nitidamente transparecia entre os conservadores como Samuel Johnson, Edmund Burke, Samuel Taylor Coleridge, Mathew Arnold – ou, acrescento eu, Balzac, Dostoievski, Leonid Andreiev, Manzoni, Papini, Henry James, Conrad, Mauriac, Bernanos, Soljenítsin, V. S. Naipaul, Eugenio Corti.
"Se o progressismo tem uma fraqueza desesperadora, é uma imaginação moral inadequada." Inadequada porque simplista e irrealista. "O progressista pensa que o bom é bom e o mau é mau: ante a ideia de bom-e-mau, sua imaginação falha."
A diferença aparece com ênfase máxima na maneira como os romancistas traçam os personagens de seus virtuais antagonistas políticos. Os romances escritos pelos conservadores pululam de revolucionários, comunistas, anarquistas, terroristas e assassinos políticos retratados com toda a complexidade moral da sua vida interior e das situações que atravessam.
Nos romances "de esquerda", o adversário político quase sempre aparece sob forma caricatural, desumanizada ou monstruosa, sem qualquer atenuante, sem qualquer ambiguidade, sem qualquer concessão relativista ou mera simpatia humana. Leiam Gorki, Barbusse, Brecht, Hemingway, John Steinbeck, Ilya Ehrenburg, Theodore Dreiser, Lillian Helman, Howard Fast, e entenderão do que estou falando.
É quase impossível conceber, na obra desses e outros romancistas de idêntica filiação ideológica, um personagem conservador ou de direita que tenha alguma virtude humana, alguma razão aceitável para ser como é e pensar como pensa. Há exceções, é claro, mas, em linhas gerais, a "imaginação moral", ou a simples compreensão humana, parece ser monopólio da literatura conservadora.
Não deixa de ser significativo que o próprio Georg Lukacs, o príncipe dos críticos marxistas, procurando na literatura de ficção exemplos de realismo objetivo à altura dos mais altos cânones do marxismo, os encontrasse antes nas obras de Balzac e Dostoievski – ou do apolítico Thomas Mann – do que entre os escritos de qualquer autor comunista.
A explicação de fenômeno tão uniforme e constante não me parece difícil de encontrar. O esquerdismo é quase sempre uma tomada de posição militante, que, se não leva necessariamente o escritor a filiar-se a um partido, ao menos faz dele um “companheiro de viagem” cujo círculo de convivência é em geral escolhido (por ele ou pelo próprio círculo) entre correligionários ideológicos.
O próprio Partido Comunista sempre se encarregou de fazer com que fosse assim: ao menor sinal de que um escritor ou artista tinha simpatias de esquerda, agentes comunistas tratavam de assediá-lo, infiltrando-se em todos os meios que o infeliz frequentava e fazendo o que podiam para tirar o máximo proveito político de suas palavras e induzi-lo a atitudes cada vez mais militantes, na vida e na obra (leiam Stephen Koch, Double Lives: Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West, 1994).
Já o conservadorismo é na quase totalidade dos casos uma pura preferência pessoal, desacompanhada de qualquer empenho de combatividade militante e livre de envolvimento direto ou indireto em organizações políticas. É normal que, ao desenhar o perfil de seus possíveis antagonistas políticos, o romancista conservador se atenha antes às exigências do realismo psicológico e da "imaginação moral" que às de qualquer intuito pedagógico-partidário de "transformar o mundo". (Continua.)
Publicado no Diário do Comércio.
________________Mas não é só por isso que a mensagem de Lionel Trilling repercutirá nestas plagas como a campainha do recreio soando num cemitério. É também, e sobretudo, porque ela fornece o padrão de medida com que se pode avaliar a extensão da calamidade cultural brasileira, e esta última, aferida por semelhante critério, mostra já ter passado daquele ponto em que tomar consciência de um estado de coisas miserável é um princípio de esperança.
O Brasil mal chegou a desempenhar um papel insignificante na história intelectual do mundo, e já abdicou até das condições mínimas que lhe permitiram fazê-lo durante algum tempo. A opção preferencial pela barbárie e pelo grotesco foi levada às últimas consequências, e não existe via de retorno.
Brasileiros podem, é claro, continuar estudando, criando, descobrindo, escrevendo coisas boas. Mas serão contribuições individuais, isoladas, não integráveis em qualquer conjunto que valha o nome de "cultura nacional". Essa a conclusão a que chego quando examino a história mental deste país nas últimas décadas com os olhos de um aprendiz dos ensinamentos de Lionel Trilling, autor que li muito desde a juventude, com satisfação imensa, e do qual não posso dizer que tenha jamais discordado em algum ponto essencial.
O principal desses ensinamentos é que uma sociedade, sua história e sua política só podem ser compreendidos à luz daquela "imaginação moral" que se adquire com a assídua frequentação da grande literatura. A imaginação moral não é a absorção de um código moral, mas, ao contrário – nas palavras de Trilling –, "a consciência das contradições, paradoxos e perigos de viver a vida moral".
Himmelfarb observa que, ao longo das obras de Trilling, algumas palavras frequentes são "variedade", "possibilidade", "complexidade", "dificuldade", "sutileza", "ambiguidade", "contingência", "paradoxo" e "ironia". São os termos que traduzem a própria substância da vida moral, não como aparece no esquematismo abstrato dos códigos e regras, mas na realidade da existência concreta, que não é acessível à compreensão intelectual antes de ser elaborada em símbolos pela imaginação literária.
Os humanistas do quattrocento e do cinquecento, e antes deles os pedagogos das escolas monacais dos séculos 11 e 12, já haviam compreendido isso com clareza. Era na leitura dos clássicos que adquiriam o senso da compreensão, da benevolência, da misericórdia e da delicadeza de sentimentos – as virtudes propriamente humanas que os preparavam para a piedade e a caridade cristãs.
Foi com base em considerações dessa ordem que Lionel Trilling escreveu seu célebre estudo da ideologia americana dominante, The Liberal Imagination (1950).
A palavra "liberal", nos EUA, não tem nada a ver com o liberalismo econômico clássico que ela evoca espontaneamente no Brasil. Designa, bem ao contrário, o progressismo esquerdista que favorece os programas sociais, os impostos altos e o intervencionismo estatal, não raro o comunismo puro e simples.
O progressismo, observava Trilling, era de fato a única tradição intelectual dos EUA. Entre o povo havia sentimentos conservadores, mas não, entre os intelectuais, uma história contínua de ideias conservadoras em debate. Daí a importância de examinar o fundo de símbolos e emoções por baixo das ideias esquerdistas em evidência.
A primeira coisa que o crítico aí notava era a rigidez esquemática das reações morais, a falta de abertura para a variedade e ambiguidade das situações humanas, que tão nitidamente transparecia entre os conservadores como Samuel Johnson, Edmund Burke, Samuel Taylor Coleridge, Mathew Arnold – ou, acrescento eu, Balzac, Dostoievski, Leonid Andreiev, Manzoni, Papini, Henry James, Conrad, Mauriac, Bernanos, Soljenítsin, V. S. Naipaul, Eugenio Corti.
"Se o progressismo tem uma fraqueza desesperadora, é uma imaginação moral inadequada." Inadequada porque simplista e irrealista. "O progressista pensa que o bom é bom e o mau é mau: ante a ideia de bom-e-mau, sua imaginação falha."
A diferença aparece com ênfase máxima na maneira como os romancistas traçam os personagens de seus virtuais antagonistas políticos. Os romances escritos pelos conservadores pululam de revolucionários, comunistas, anarquistas, terroristas e assassinos políticos retratados com toda a complexidade moral da sua vida interior e das situações que atravessam.
Nos romances "de esquerda", o adversário político quase sempre aparece sob forma caricatural, desumanizada ou monstruosa, sem qualquer atenuante, sem qualquer ambiguidade, sem qualquer concessão relativista ou mera simpatia humana. Leiam Gorki, Barbusse, Brecht, Hemingway, John Steinbeck, Ilya Ehrenburg, Theodore Dreiser, Lillian Helman, Howard Fast, e entenderão do que estou falando.
É quase impossível conceber, na obra desses e outros romancistas de idêntica filiação ideológica, um personagem conservador ou de direita que tenha alguma virtude humana, alguma razão aceitável para ser como é e pensar como pensa. Há exceções, é claro, mas, em linhas gerais, a "imaginação moral", ou a simples compreensão humana, parece ser monopólio da literatura conservadora.
Não deixa de ser significativo que o próprio Georg Lukacs, o príncipe dos críticos marxistas, procurando na literatura de ficção exemplos de realismo objetivo à altura dos mais altos cânones do marxismo, os encontrasse antes nas obras de Balzac e Dostoievski – ou do apolítico Thomas Mann – do que entre os escritos de qualquer autor comunista.
A explicação de fenômeno tão uniforme e constante não me parece difícil de encontrar. O esquerdismo é quase sempre uma tomada de posição militante, que, se não leva necessariamente o escritor a filiar-se a um partido, ao menos faz dele um “companheiro de viagem” cujo círculo de convivência é em geral escolhido (por ele ou pelo próprio círculo) entre correligionários ideológicos.
O próprio Partido Comunista sempre se encarregou de fazer com que fosse assim: ao menor sinal de que um escritor ou artista tinha simpatias de esquerda, agentes comunistas tratavam de assediá-lo, infiltrando-se em todos os meios que o infeliz frequentava e fazendo o que podiam para tirar o máximo proveito político de suas palavras e induzi-lo a atitudes cada vez mais militantes, na vida e na obra (leiam Stephen Koch, Double Lives: Spies and Writers in the Secret Soviet War of Ideas Against the West, 1994).
Já o conservadorismo é na quase totalidade dos casos uma pura preferência pessoal, desacompanhada de qualquer empenho de combatividade militante e livre de envolvimento direto ou indireto em organizações políticas. É normal que, ao desenhar o perfil de seus possíveis antagonistas políticos, o romancista conservador se atenha antes às exigências do realismo psicológico e da "imaginação moral" que às de qualquer intuito pedagógico-partidário de "transformar o mundo". (Continua.)
Publicado no Diário do Comércio.
DIÁRIO DO COMÉRCIO
Publicado em Segunda, 31 Outubro 2011 19:24 Escrito por Olavo de Carvalho
Uma lição tardia - II
Consolidada na literatura há quase dois séculos, a diferença entre as imaginações morais respectivas da direita e da esquerda acabou se transmutando em automatismo verbal e se espalhando pelos debates públicos, pela mídia, pela linguagem cotidiana. Comprovando uma vez mais a regra de Hugo Von Hofmannsthal de que nada está na política sem ter passado primeiro pela literatura, o modo como os romancistas das duas alas concebem seus personagens politicamente antagônicos tornou-se o modo como a direita e a esquerda se imaginam uma à outra (é claro que me refiro à direita e à esquerda "normais", institucionais, e não a extremismos loucos, que têm de ser analisados sob outra perspectiva).
Quase que invariavelmente, o conservador, ou o "liberal" no sentido brasileiro do termo, concebe o esquerdista como uma alma carregada de boas intenções, inspirada em nobres propósitos, tão somente um pouco imatura, iludida por uma falsa visão do mundo real e condenada, por isso, a cometer erros colossais. Já o esquerdista raramente fala do seu adversário sem lhe atribuir motivações perversas, sem explicar suas ideias como ferramentas a serviço de tramoias obscuras, desejos egoístas e "interesses inconfessáveis". Na mais generosa das hipóteses, faz abstração da sua diferença individual, reduzindo a "interesses de classe" tudo o que ele diz ou faz.
A esse fenômeno, tão regular e constante, soma-se um outro, dele derivado e ainda mais acessível à comprovação estatística: os representantes da esquerda legítima, "respeitável", permitem-se falar de seus adversários numa linguagem de virulência tal que, na direita, somente a minoria de extremistas desequilibrados ousaria usar contra a esquerda.
É a "querra assimétrica" verbal, que precede a guerra assimétrica stricto sensu. A vultosa amostragem colhida por Cliff Kincaid em www.aim.org/wls/ e por Fred Gielow em I Can’t Believe You Said That. Hundreds of Liberals Speak Their Minds (Washington D.C., Accuracy in Media, 2008) é mais que suficiente para ilustrar, se não para provar o que estou dizendo.
Na literatura como na política, a tendência da direita é para humanizar a imagem do adversário, para torná-lo compreensível em termos de motivações racionais aceitáveis, enquanto na esquerda prevalece o impulso de reduzir a individualidade concreta do direitista a algum esquematismo sociológico despersonalizante, quase sempre repulsivo e odioso.
Essa diferença de imaginação e de linguagem basta para explicar por que a esquerda, embora seja a recordista número um de crimes contra a humanidade, continua se concebendo como a detentora do monopólio das virtudes mais excelsas.
Ela pensa assim não porque tenha algum dia feito algum bem capaz de compensar o genocídio soviético, chinês e cambojano, mas precisamente porque é, das duas facções majoritárias em que se divide a arena política do mundo, a mais insensível, a mais brutal e desumana, a menos capaz de estender ao adversário um olhar de simpatia, compreensão e piedade.
Na ausência desse olhar, toda comparação é impossível e o senso do bem e do mal se enrijece num muro intransponível entre "nós" e "eles", onde a diferença já não é de escala, mas quase que de constituição ontológica, separando os seres em duas espécies estanques, tal como no título do romance comunista de Elio Vittorini: Uomini e No. Não espanta que, nessas condições, a absoluta indiferença ou cumplicidade cínica ante o genocídio de centenas de milhões de pessoas coexista pacificamente, na alma esquerdista, com as mais lacrimosas efusões de coitadice quando um terrorista é preso, condenado ou submetido a maus tratos.
A esquerda se acha a melhor justamente porque é a pior. A mais humana, porque é a mais inumana. A direita, por sua vez, ajuda solicitamente na manutenção do engodo, na medida em que sua natural ojeriza a deformar a imagem do adversário mediante estereótipos pejorativos acaba se pervertendo numa compulsão de lisonjeá-lo a todo preço e até numa recusa obstinada de enxergar as motivações dele com um mínimo indispensável de realismo. Ambas se enganam a si mesmas, uma a favor dela própria, a outra contra ela própria.
Também não espanta que, mantendo o adversário sob um bombardeio constante de imprecações, ofensas, falsas acusações e apelos sumários ao seu assassinato, a esquerda busque nas mais neutras e inócuas declarações dele um sinal de hate speech, de racismo, de homofobia ou de qualquer outra aparência de delito que lhe permita expô-lo à execração pública como um monstro asqueroso e, se possível, privá-lo de sua liberdade e de seus meios de subsistência.
Nas universidades americanas, onde a todo momento se ouvem apelos ostensivos ao assassinato de conservadores, basta um destes ou mesmo um professor apolítico insinuar educadamente que talvez os papéis sociais de homens e mulheres sejam distinções naturais em vez de construções culturais arbitrárias, e pronto: o infeliz está sujeito não somente à acusação de racismo e nazismo, mas, por incrível que pareça, a um processo por "assédio sexual".
Não pensem que é exagero meu ou generalização retórica de casos excepcionais. Os processos dessa natureza se disseminaram de tal maneira que a National Association of Scholars, importante entidade de estudiosos conservadores, está espalhando um apelo dramático a todos os reitores de universidades para que coíbam esse uso abusivo das leis de proteção à mulher.
Abusivo, é claro, no entender dos conservadores: para o esquerdista – e não me refiro só à extrema-esquerda -- é tão natural farejar crime de assédio sexual numa mera hipótese sociológica exposta em sala de aula quanto enxergar uma ameaça iminente de genocídio homofóbico na simples atitude profissional de um psicólogo clínico que tente ajudar a libertar da compulsão homossexual um paciente que lhe peça, que lhe implore para fazer exatamente isso.
Novamente, não estou criando hipóteses no ar: o caso da psicóloga Rozangela Justino é (ou deveria ser) bem conhecido no Brasil. Duzentos anos de deformação pejorativa da imagem do "inimigo" desembocam na perseguição tirânica exercida em nome da proteção contra perigos não só inexistentes como até mesmo impensáveis.
Embora o extermínio preventivo de adversários hipotéticos tenha sido a prática mais constante da esquerda nas nações sob o seu domínio, é curiosamente a direita que tem a fama de "paranoia" de enxergar comunistas embaixo da cama. Paradoxo, sim, mas efeito patente da retórica invertida que mencionei acima.
Olavo de Carvalho é ensaísta, jornalista e professor de Filosofia
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