Escrito por Gustavo Corção
Hoje, para variar e para descansar o leitor, vamos falar da lagartixa. Antes disso, devo dizer que, nas meias horas de descanso depois das refeições receitadas pelo Dr. Stans Murad, costumo esticar-me num sofá, perdão, num sofanete, para ser mais exato, e então, sem saber como e quando começou, costumo deixar correr a lembrança dos dias idos e vividos ou das pessoas idas e mortas. Entrego a memória a seus caprichos e ponho-me de camarote a assistir às avessas, e de surpresa, às cenas desse teatro de amadores mal ensaiados que se chama vida. É o meu luxo, é o último regalo que os ferozes deveres de estado me concedem. Desta maneira, misturando à água da memória o vinho da ficção, invento a vida que não tive, viajo, vejo terras e mares que não vi, revivo amores que não vivi
Many and many years ago,
In a kingdom by the sea...
Nem sempre é ameno este exercício. Às vezes, como cobra escondida na moita, salta-me diante dos olhos um quadro vivíssimo que supunha morto ou dormido, ou vara-me o ouvido do coração uma palavra, um timbre, um grito, que me quebra o repouso com uma descarga elétrica de dor. Mas também muitas vezes logro repassar momentos de tão intensa doçura — ora no gosto fresco de um alvorecer, ora na suavidade silenciosa de um entardecer — que me dão esquecimento de todos os azedumes provados... Outras vezes, simplesmente cochilo até que toque um dos sete despertadores dos sete deveres de estado.
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Ora, ontem, quando me punha no decúbito dorsal aconselhado pela sábia e amiga solicitude do Dr. Stans Murad, que é meu amigo pessoal, e declarado inimigo pessoal da morte, especialmente da morte súbita (A subitanea et improvisa morte libera nos, Domine), no momento em que me preparava para desatar as amarras da fantasia, vi no teto uma lagartixa a andar desembaraçadamente no seus afazeres de lagartixa, movendo-se ao arrepio das leis da gravitação, mas certamente ao saber de outras leis que desconheço, mas respeito.
Feliz animal! Lá no teto, com a maior naturalidade do mundo, a lagartixa vê tudo de pernas para o ar, vê pesados móveis grudados num teto sem nenhuma lei a favor de tal postura, e vê em decúbito dorsal uma grande pobre lagartixa humana, estendida no sofanete, imóvel, vivendo só pelo ardor dos olhos e pela angústia do semblante. Lacerta agilis, se tivesses nas tuas frias veias uma centelha daquilo que nos faz entender, e principalmente desentender, saberias lá no teu teto que o mundo cá embaixo anda ainda muito mais de pernas para o ar do que te parece. Tua tranqüilidade, ó Lacerta agilis, vem do fato de não seres absurda. És o que és, e moves-te em conformidade com o que és. Nós, não. Nós não sabemos exatamente o que somos, e quando o sabemos é para logo observarmos que certamente, certíssimamente, não vivemos segundo o que verdadeiramente somos.
Vou contar-te um segredo de homem, lagartixa, um segredo pesado. Um segredo triste. Muitos de nós, óLacerta, sem tua translúcida inocência, andam no teto deste século, nos seus ires e vires, sem se aperceberem que vivem num mundo de pernas para o ar. Sem sofrerem. Sem quererem trabalhar para viverem segundo o que principalmente são. Não desenvolvo esta parte de minhas meditações porque prometi hoje ao leitor um dia de descanso. E suponho que o leitor me permitiu que hoje só lhe falasse de lagartixa.
Feliz devorador de insetos, não invejo tua tranqüilidade nem tua dieta; mas devo dizer-te, ó animal inocentemente subversivo, que muito menos invejo os meus iguais que andam no teto do século, na cúpula da atualidade, alegres de viverem num mundo de pernas para o ar, e de se nutrirem de insetos. Aqui onde me vês, deitado por obediência, já que hoje nem a fantasia me deixaste, prefiro esta postura, esta consciência afrontada, esta dor: é o nosso quinhão, ó lagartixa.
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O mesmo compassivo amigo que me receitou os descansos depois das refeições, por um dos muitos paradoxos da ciência, manda-me andar 2 a 3 quilômetros por dia. O remédio é barato e agradável, só tendo a desvantagem humilhante de estar na moda. Como porém não me apraz andar pelas ruas duma cidade invadida por misteriosos inimigos que vieram não sei de onde, e vão não sei aonde (parece-me que a lugar nenhum) com uma incompreensível velocidade, inventei um estratagema simples que me permite andar os três quilômetros sem o inconveniente de afastar-me demais de meu pequeno mundo. La bête blessée cherche son trou. Tenho ao lado de minha casa uma nesga de terreno com trinta metros de fundo. Indo e vindo cem vezes tenho meus três quilômetros percorridos sem sair de casa. O método parecerá insípido às pessoas que gostem de ver coisas novas, ilhas, cidades, vulcões, ruínas e gostam de correr mundo. Tenho a impressão que este é o parecer de meu cão, um quarto ou dezesseis avos de sangue de perdigueiro. Escolhi a hora matinal, antes da missa, para meu exercício. E o fiel pseudoperdigueiro, quando me vê abrir a porta dos fundos às seis da manhã, com um bengala que para seus cromossomos seria uma espingarda, deve latir consigo mesmo: — Vamos à caça! E põe-se alegremente a andar a meu lado, o que atravanca às vezes os passos mas não deixa de alegrar o exercício.
O que o pobre falso perdigueiro não pode compreender é a minha insólita atitude diante do portão. Em vez de abri-lo, e ganharmos a floresta próxima, eu volto à garagem, marco um ponto, e volto ao portão, para voltar à garagem, e assim por diante até cem. o pobre animal vai e vem, com entusiasmo decrescente. Mantém a fidelidade, uma fidelidade sem alegria, sem sonhos de tiros e perdizes caídas, e já lhe surpreendi mais de um olhar triste que parece falar: — Meu amo enlouqueceu.
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E agora, amado leitor, cumprido o descanso sob os olhos da lagartixa, e completada a marcha na companhia do cão, voltemos aos homens, às conferências episcopais, à atividade da Editora Vozes, inimiga de Deus e do homem. Voltemos aos sete deveres de estado que o bom Dr. Stans Murad não vê como um bom regime para um velho baleado.
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