Há muitos anos não lia uma entrevista como a que Marcelo Goulart, promotor de Justiça do Meio Ambiente, concede a Marcio Aith naFolha de hoje. É estarrecedora! Creio que até vocês, que não são lá muito crentes na natureza humana de certos humanos, vão se surpreender. O texto é longo. Mas eu asseguro que é essencial lê-lo. Antes que fale da entrevista propriamente, permitam-me uma pequena digressão que nos aproxima do tema.
A digressão
Há quase 10 anos venho chamando a atenção dos leitores para a guerra de valores travada pela esquerda para a construção da “hegemonia” segundo os princípios estabelecidos pelo comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937). E, antes de mim e desde sempre, Olavo de Carvalho, entre outros poucos, tem destacado a importância de Gramsci na luta permanente das esquerdas contra a democracia. Ainda na sexta-feira, escrevi o texto De tontos e vigaristas (…) Ou: É Gramsci, idiota!. Lê-se lá:
Gramsci desenvolveu o conceito de “hegemonia”: um partido - na verdade, “o” partido, que ele chamava de “Moderno Príncipe” - tem de fazer a guerra de valores na sociedade que quer transformar. Mais do que transformar: na sociedade que pretende subjugar e, na prática, substituir. O autor não propõe as coisas nesses termos, é claro, porque ele faz a sua construção totalitária parecer um avanço humanista - como todo totalitário. E essa guerra implica tornar seus valores influentes, de modo que, com o passar do tempo, os indivíduos não consigam mais pensar fora dos seus parâmetros, fora de suas necessidades, fora de suas formulações. O “Moderno Príncipe” torna-se, assim, um “imperativo categórico”. E como se opera essa guerra? Como toda guerra: por meio de soldados. Só que, nesse caso, são os soldados da ideologia. Numa primeira fase, o trabalho fica mesmo a cargo da militância. À medida que a hegemonia vai se estabelecendo, mesmo os que não estão a serviço da causa se tornam seus vogais. Porque, como está dito, já não se consegue pensar fora daquela metafísica influente.
De volta ao promotor
Aith nos apresenta Goulart:
MARCELO Goulart é símbolo da corrente mais polêmica surgida no Ministério Público após a Constituição de 1988: a dos promotores que acreditam ser “agentes políticos”, relevam a “letra fria” da lei e atuam ao lado do MST e de ONGs contra o que definem como a elite do país. Aos 52 anos, Goulart atua desde 1985 na região de Ribeirão Preto, onde se notabilizou por disputas contra usineiros. Agora à frente do grupo responsável por processos ligados ao ambiente, ele moveu, só em 2009, 55 ações civis públicas, inclusive contra grupos que produzem orgânicos. Seu próximo desejo é assegurar o “direito difuso” dos brasileiros à reforma agrária.
Ainda não é tudo o que se pode dizer da biografia deste senhor, como revela o texto. Ele também já tentou administrar uma cidade. Em 1991, candidatou-se a prefeito de Jardinópolis. Pelo PT. Ficou em terceiro lugar. O que as urnas não lhe deram — o poder —, Goulart encontrou no Ministério Público. Só que com uma pequena diferença: agora, ele parece exercer o poder absolutista. Goulart é um admirador declarado de Gramsci. Leiam este trecho da entrevista:
FOLHA - Gramsci, a quem o sr. admira, atribui a força unificadora da sociedade, que Maquiavel atribuía ao Príncipe, a um partido. Por isso ele chamava o partido - no caso, o comunista - de “Moderno Príncipe”. Que partido, na sua opinião, ocupa a função de Moderno Príncipe no Brasil?
GOULART - Hoje não faz sentido pensar em partido político. São as forças democráticas que cumprem uma função hegemônica e que, articuladas, logo avançam a batalha das idéias, na imprensa, no Ministério Público, nas instituições. E criam a base cultural para as mudanças políticas e econômicas. Esse é o caminho democrático da construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Viram só? Ele admite a lógica da contaminação a que aludi no texto da sexta-feira — e que alguns de nós denunciamos há anos. O que vai acima vale por uma confissão. “Eles” estão em todos os lugares: “na imprensa (e como!!!), no Ministério Público, nas instituições“. E querem o quê? Ora, a sociedade “livre, justa e solidária”. O sr. Goulart sabe muito bem que pode haver divergências sobre conceitos como “livre, justo e solidário”. Por isso mesmo, o estado democrático é dotado de leis, de que somos todos servos, e a Justiça deve decidir de olhos vendados para enxergar melhor à medida que não discrimina ninguém. É o que ele pensa? Leiam mais uma pergunta e uma resposta.
FOLHA - O senhor é conhecido por atuar ao lado do MST e de entidades ambientais. Esse é o papel de um promotor?
MARCELO GOULART - A visão do Ministério Público como mero agente processual está superada desde a promulgação da Constituição de 1988. O membro do Ministério Público é agente político e, hoje, tem a incumbência constitucional de defender o regime democrático e implementar a estratégia institucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
Ora, desde logo se coloca uma questão, não é? Como definir o que é “progressista”? Já que é um dos braços do estado, não é papel do Ministério Público fazer essa distinção. E Aith, felizmente, também é socorrido por essa curiosidade. Leiam:
FOLHA - Como o sr. distingue as entidades progressistas das outras?
GOULART - As forças sociais democráticas são aquelas que assumem o compromisso de implementar o projeto democrático da Constituição de 1988. A Constituição definiu para o país um modelo de Estado social e de democracia participativa. Os sujeitos políticos que atuam na defesa desse projeto são aliados naturais do Ministério Público na luta pela construção da hegemonia democrática. Não é difícil identificá-los.
FOLHA - Por que os produtores rurais não seriam progressistas?
GOULART - Aqueles grupos que defendem um modelo de agricultura social e ambientalmente sustentáveis estão no campo democrático. Aqueles que, ao contrário, defendem um modelo que leva ao descumprimento da função social do imóvel rural estão no campo dos adversários do projeto democrático da Constituição da República. Esses defendem o padrão de produção agrícola hoje prevalecente no Brasil.
Dispensável dizer que, no modelo de Goulart, cabem as invasões do MST, mas não cabem as fazendas, mesmo as produtivas, que o movimento invade. A mesma Constituição que fala na “função social” da propriedade assegura o direito de propriedade. Desde logo, coloca-se uma pergunta óbvia: se a função social justifica a invasão, que é um crime, o direito de propriedade justifica que se passe fogo no invasor? Se é lícito a uma fatia do Ministério Público associar-se aos criminosos do MST, seria lícito a uma outra associar-se a seus adversários, mandando às favas a lei, tendo também uma “atuação política”?
Ocorre que o ex-candidato a prefeito, rejeitado pelas urnas, tem algumas convicções firmadas sobre o modelo ideal para a agricultura brasileira. E, como se nota, em sua atuação, ele procura pôr em prática o seu programa. Leiam o que segue:
FOLHA - O que o senhor acha do álcool combustível?
GOULART - A queima do combustível álcool também polui, e o processo de produção do álcool é sujo. Temos a queima da cana, o desmatamento, o uso incontrolado de insumos químicos. Além da superexploração do trabalho. Mais: a produção do álcool exige economia de escala, que somente se viabiliza nesse padrão de produção baseado na monocultura e na concentração fundiária. São Paulo está se tornando um grande canavial. O futuro não está no álcool, mas em outras alternativas, como o hidrogênio e a eletricidade. Diria que o álcool é um combustível de transição. Não terá vida longa.
FOLHA - A monocultura mecanizada não é uma tendência inexorável da agricultura mundial?
GOULART - Claro que não. Não é assim na Europa. Precisamos discutir outros modelos. Temos um pensamento único por parte da elite dirigente nacional em relação à agricultura.
Como vocês vêem, o promotor Goulart tem seu próprio projeto sobre matriz energética e está disposto a comandar uma revolução — gramscianamente falando — no setor agropecuário brasileiro. Vocês podem ficar revoltados com suas convicções políticas, é claro. Mas também podem e devem se revoltar com sua ignorância. Essa história de que São Paulo está virando um canavial é uma grossa bobagem. O estado detém a maior participação na produção brasileira — quase 20%. Responde por mais de 80% da produção de laranja, mais de 60% da de cana, 18% da de banana, 10% da de café, 12% da de milho, 27% da de batata inglesa, 22% da de tomate e 16% da de uva. Ora, que importam os fatos? Ele tem uma idéia na cabeça e tem o poder absoluto que lhe confere o Ministério Público.
A esta altura, já deu para perceber que este patriota tem certamente um horizonte utópico, que fica claro nesta seqüência da conversa com Mario Aith:
FOLHA - O senhor parece não gostar de grandes propriedades rurais.
GOULART - No meu horizonte utópico não está presente um grande número de usinas de açúcar e álcool, por exemplo.
No meu horizonte utópico estão a policultura, a geração de postos de trabalho no campo e a agricultura orgânica. Está o acesso do povo à terra, que é um direito fundamental negado desde o descobrimento. A estrutura fundiária brasileira é uma das principais razões de nosso subdesenvolvimento.
FOLHA - O senhor é socialista?
GOULART - Como promotor de Justiça, sou defensor da Constituição, do projeto democrático. Essa é a minha missão. Minhas convicções pessoais são só isso: minhas convicções pessoais.
FOLHA - Quais convicções?
GOULART - Utopicamente? Acredito na possibilidade de construir uma sociedade socialista. Sob um ponto de vista gramsciano, se avançarmos na linha da Constituição, vamos dar grandes passos para, no futuro, caminhar para uma sociedade socialista.
FOLHA - Como é que isso ocorreria?
GOULART - A partir do momento em que os princípios sociais da Constituição forem sendo efetivamente conquistados, não só no papel, mas na realidade, haverá um choque lá na frente. Teremos de discutir, por exemplo, como é que a dignidade da pessoa humana pode conviver com o direito de propriedade. E assim por diante.
A VEJA que está nas bancas publica uma resenha do livro “História do Brasil com Empreendedores”, de Jorge Caldeira. Voltarei a ele oportunamente. A leitura é fascinante porque dá conta da mais cara tara dos nossos intelectuais, a saber: o latifúndio seria a grande causa das desgraças do Brasil. Essa tese do marxismo caipira amarra até hoje o pensamento brasileiro — e, surpreendentemente, um de seus formuladores, Caio Prado Júnior, tomou a tese emprestada de um conservador: Oliveira Vianna. Mas isso fica para o futuro, quando eu voltar a falar do livro. Faço tal observação porque eis ai o sr. Goulart a ressuscitar a tese do “latifúndio”. Como se nota, como promotor do meio ambiente, ele nem mesmo se limita a fazer valer as já amalucadas leis ambientais brasileiras. Ele também tem um projeto: contra os supostos latifúndios.
Dispenso-me de me alongar sobre o fato de que foi o agronegócio que garantiu a estabilidade brasileira nos sete anos de governo Lula. Praticamente a totalidade das reservas do Brasil, que lhe deram segurança para enfrentar a crise, tem sua origem nos superávits comerciais que foram garantidos pela agricultura e pela pecuária. Também foi o agronegócio que garantiu aos brasileiros um dos alimentos mais baratos do planeta. Goulart não quer saber. Ele não gosta desse modelo, não, senhores! E, no Ministério Público, ele pode agir segundo o seu gosto, sem que isso lhe possa causar qualquer embaraço. Uma outra pergunta e uma outra resposta explicam tudo:
FOLHA - O senhor tem chefe?
GOULART - Não existe hierarquia funcional no Ministério Público. Um de nossos princípios é o da independência funcional, que ganhou força com a Constituição de 1988. Esse princípio serve para proteger o membro do Ministério Público das pressões do poder político, econômico e interno.
Desde logo, cabe uma indagação: e quem protege a sociedade da ação do Ministério Público? “Pressões do poder político”? Por acaso o MST não é um ente político, não exerce pressão e não tem poder? O próprio Ministério Público, como admite Goulart, não é também uma força “política”? No Estado de Direito, nenhum Poder é soberano. A sabedoria está na independência e na harmonia. Eis o problema: a que “Poder” pertence o Ministério Público? A nenhum! E, como se nota, a “independência funcional” está sendo usada como licença para o arbítrio. Não só o MP se coloca como um Poder acima dos Poderes como, dentro dele, cada promotor acredita que lhe é lícito proceder a uma livre exame da Constituição, aplicando-a segundo a sua vontade e o seu gosto.
A entrevista do sr. Goulart deixa claro que ele se considera um soberano em sua função. Atua de acordo com um modelo econômica que tem na cabeça, elege os atores que considera “progressistas”, descarta os que tem por reacionários e ainda diz que, assim, está sendo um servo fiel da Constituição.
Eu o desafio a mostrar que linha da Carta de 1988 abriga a atuação do MST, o seu mais persistente parceiro de luta. Ele não vai mostrar porque não existe. Ao contrário: a Constituição protege a propriedade privada, que seus aliados violam cotidianamente, numa ação típica do mais descarado banditismo.
O que vai acontecer com Goulart depois dessa entrevista? Nada, ora essa! Ele continuará a atuar como um soberano, a tentar fazer a reforma agrária por intermédio do Ministério Público, como se fosse lícito a este ente substituir a sociedade, suas leis e o paradigma da democracia representativa. Mas entendo: ele é, afinal, um assumido gramsciano.
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