Autor Convidado: Demétrio Magnoli em 03 de Abril de 2008
"Como todo mundo, eu gostaria de viver uma longa vida. (...) Mas não estou preocupado com isso agora. Só quero cumprir a vontade de Deus. E Ele me permitiu subir a montanha. E eu vi lá de cima. E enxerguei a terra prometida. Posso não chegar lá com vocês. Mas quero que saibam que nós, como um povo, chegaremos à terra prometida." Martin Luther King pronunciou essas palavras há exatos 40 anos, naquele que foi seu último discurso. Menos de 24 horas depois, o homem que tinha um sonho tombava morto, alvejado a tiros na sacada de um hotel de Memphis. Duas semanas atrás, um discurso sobre o mesmo tema, pronunciado por Barack Obama, evidenciou a distância que ainda separa a nação americana da "terra prometida".
O discurso de Obama nasceu de uma imposição, não de uma opção. Dias antes, o pastor negro de sua igreja, que foi seu confessor, amaldiçoara os Estados Unidos como uma "nação racista". O candidato precisava reagir a um escândalo - e escolheu o caminho mais digno. No lugar de apenas se dissociar de uma maldição revestida de amargura, ofereceu um balanço do "impasse racial no qual estamos presos há muitos anos". A peça, elegante e pungente, é uma crítica devastadora às políticas de raça.
O "povo" de King não eram os negros, mas a nação americana inteira. O seu sonho era uma visão pós-racial, expressa na esperança de que "meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação na qual não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter". A revolução que ele personificou foi interrompida pelos arautos do multiculturalismo, que rodearam a crença nas raças com as paliçadas defensivas das políticas de preferências raciais. A inversão do sinal sustentou a velha equação que faz cada um ser julgado pela cor da sua pele.
No seu discurso mais célebre, de agosto de 1963, King invocou a promessa de igualdade da Declaração de Independência. A mesma invocação perpassa o discurso recente de Obama, cuja candidatura nasceu como negação da negação multiculturalista e como retomada do fio partido há 40 anos. O tear do qual emana esse fio é a Revolução Americana, que ainda não cumpriu integralmente sua promessa fundadora.
A identidade dos Estados Unidos construiu-se sobre uma tensão de fundo entre aquela promessa e a concepção multiculturalista do melting-pot, que é o caldo constitutivo da nação. No melting-pot, os componentes do povo vivem juntos, no mesmo país, sem jamais se misturarem efetivamente. A noção de mestiçagem, como intercâmbio biológico e cultural criador, não tem lugar nesse conceito que celebra os muros e abomina as pontes. A novidade de Obama está na descoberta da mestiçagem como antídoto contra o multiculturalismo.
Há fissuras reais no mundo dos estamentos "raciais" americanos. Há um ano, a Suprema Corte declarou inconstitucionais as políticas educacionais baseadas em cotas raciais, e o juiz Anthony Kennedy associou uma indagação incomum a um protesto inesperado: "Quem exatamente é branco e quem é não-branco? Ser forçado a viver sob um rótulo racial oficial é inconsistente com a dignidade dos indivíduos na nossa sociedade." Nos últimos meses, centenas de milhares de jovens, negros e brancos, revelaram-se fartos das políticas de raça ao acorrerem em massa aos comícios gigantescos de Obama.
"Sou o filho de um homem negro do Quênia e de uma mulher branca de Kansas. (...) Sou casado com uma americana negra que carrega dentro dela o sangue de escravos e proprietários de escravos - uma herança que transmitimos a nossas duas preciosas filhas. (...) É uma história que marcou a minha personalidade genética com a idéia de que essa nação é mais que a soma de suas partes - que, a partir de tantos, somos verdadeiramente um." Obama é um mestiço, palavra que não encontra correspondência rigorosa na língua inglesa. A sua ancestralidade genética, em si mesma, carece de significado político. A singularidade relevante encontra-se na sua visão da mestiçagem como ponte entre King e a Declaração de Independência e como inspiração para a reinvenção da identidade americana.
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