Investigando durante décadas a natureza do marxismo, acabei concluindo que ele não é só uma teoria, uma “ideologia” ou um movimento político. É uma “cultura”, no sentido antropológico, um universo inteiro de crenças, símbolos, valores, instituições, poderes formais e informais, regras de conduta, padrões de discurso, hábitos conscientes e inconscientes, etc. Por isso é autofundante e auto-referente, nada podendo compreender exceto nos seus próprios termos, não admitindo uma realidade para além do seu próprio horizonte nem um critério de veracidade acima dos seus próprios fins autoproclamados. Como toda cultura, ele tem na sua própria subsistência um valor que deve ser defendido a todo preço, muito acima das exigências da verdade ou da moralidade, pois ele constitui a totalidade da qual verdade e moralidade são elementos parciais, motivo pelo qual a pretensão de fazer-lhe cobranças em nome delas soa aos seus ouvidos como uma intolerável e absurda revolta das partes contra o todo, uma violação insensata da hierarquia ontológica.
A constituição da sua identidade inclui dispositivos de autodefesa que impõem severos limites à crítica racional, apelando, quando ameaçada real ou imaginariamente, a desculpas mitológicas, ao auto-engano coletivo, à mentira pura e simples, a mecanismos de exclusão e liquidação dos inconvenientes e ao rito sacrificial do bode expiatório.
Iludem-se os que acham possível “contestar” o marxismo por um ataque bem fundamentado aos seus “princípios”. A unidade e a preservação da sua cultura estão para o marxista acima de todas as considerações de ordem intelectual e cognitiva, e por isso os “princípios” expressos da teoria não são propriamente “o” fundamento da cultura marxista: são apenas a tradução verbal, imperfeita e provisória, de um fundamento muito mais profundo que não é de ordem cognitiva e sim existencial, e que se identifica com a própria sacralidade da cultura que deve permanecer intocável. Esse fundamento pode ser “sentido” e “vivenciado” pelos membros da cultura por meio da participação na atmosfera coletiva, nos empreendimentos comuns, na memória das glórias passadas e na esperança da vitória futura, mas não pode ser reduzido a nenhuma formulação verbal em particular, por mais elaborada e prestigiosa que seja. Por isso é possível ser marxista sem aceitar nenhuma das formulações anteriores do marxismo, incluindo a do próprio Marx. Por isso é possível participar do movimento marxista sem nada conhecer da sua teoria, assim como é possível rejeitar criticamente a teoria sem cessar de colaborar com o movimento na prática. A investida crítica contra as formulações teóricas deixa intacto o fundamento existencial, que atacado reflui para o abrigo inexpugnável das certezas mudas ou simplesmente produz novas formulações substitutivas que, se forem incoerentes com as primeiras, não provarão, para o marxista, senão a infinita riqueza do fundamento indizível, capaz de conservar sua identidade e sua força sob uma variedade de formulações contraditórias que ele transcende infinitamente. O marxismo não tem “princípios”, apenas impressões indizíveis em constante metamorfose. Como a realidade da vida humana não pode ser vivenciada senão como um nó de tensões que se modificam no tempo sem jamais poder ser resolvidas, as contradições entre as várias formulações do marxismo farão dele uma perfeita imitação microcósmica da existência real, dentro da qual o marxista pode passar uma vida inteira imune às tensões de fora do sistema, com a vantagem adicional de que as de dentro estão de algum modo “sob controle”, atenuadas pela solidariedade interna do movimento e pelas esperanças compartilhadas. Se o marxismo é uma “Segunda Realidade”, na acepção de Robert Musil e Eric Voegelin, ele o é não somente no sentido cognitivo das representações ideais postiças, mas no sentido existencial da falsificação ativa, prática, da experiência da vida. Por isso qualquer povo submetido à influência dominante do marxismo passa a viver num espaço mental fechado, alheio à realidade do mundo externo.
Detalharei mais no próximo artigo estas explicações, resumo das que ofereci no meu recente debate com um professor da Faculdade de Direito da USP, às quais meu interlocutor respondeu que eu pensava assim por ter “problemas emocionais graves” -- sem perceber que, com isso, dava a melhor exemplificação da minha teoria.
Marxismo esotérico
Quando digo que o marxismo é uma “cultura”, está aí implícito que compará-lo a uma “religião” é abusar de uma analogia. Essa analogia só funciona, em parte, se por “religião” se entendem os primitivos complexos mitológicos em que crenças, ritos, governo e sociedade se fundiam numa totalidade inseparável. As religiões universais são por excelência transportáveis para fora da sua cultura originária, e o são, precisamente, porque nelas o depósito inicial da revelação se transmuta numa formulação teológico-dogmática racional com pretensões de verdade universal, a qual se oferece para ser validada ou impugnada no plano do exame teorético. Já o marxismo não admite de maneira alguma ser discutido nesse plano, porque a essência do seu conteúdo intencional, como já expliquei, não está expressa em discurso, mas imbricada organicamente, como um segredo mudo, no tecido da prática revolucionária, do qual deve ser desentranhada por meio de sutis mutações de significado, procedimento esotérico cuja autoridade transcende a dos escritos do próprio Marx.
Antonio Negri, escrevendo em 1994 sobre uma discussão com Norberto Bobbio, afirma: “Para Bobbio, uma teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra do próprio Marx. Para o autor marxista radical (Negri), no entanto, era a crítica prática das instituições jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário -- uma prática que tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à hermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e à expressão do seu poder. Se havia algo em comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos consideravam o socialismo real um desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista.”
De um lado, o marxismo não consiste nas formulações expressas de Marx, mas transmuta-se na “construção de um sujeito revolucionário”. De outro, também não se identifica com o “socialismo real”, isto é, com a situação historicamente objetiva produzida por essa mesma construção. Mas, se o “verdadeiro” marxismo não está nem no projeto nem no edifício, nem nas intenções da teoria nem nos resultados da prática, onde está então? Está no trajeto, no processo em si. Está nas profundezas ocultas e moventes da praxis, veladas a seus protagonistas e agora em parte desveladas pelo tirocínio hermenêutico do sr. Negri, para grande surpresa de seus predecessores que se imaginavam marxistas. Longe de ser uma religião dogmática apegada à letra da revelação, o marxismo é um fluxo esotérico de símbolos em movimento perpétuo cujo sentido só vai se revelando ex post facto, cada nova geração provando que os ídolos revolucionários de ontem não eram revolucionários e sim traidores, como numa Igreja auto-imunizante em que a primeira obrigação de cada novo Papa fosse excomungar o antecessor. Compreende-se o risco temível de discutir com marxistas. Você tem um trabalho medonho para vencê-los, só para depois aparecer alguém alegando que, da derrota deles, o marxismo saiu não somente incólume, mas engrandecido.
Nessa linha, o sr. Negri afirma que “uma crítica muito radical do direito e do Estado tinha se desenvolvido no curso do processo revolucionário e tinha sido reprimida nas codificações e constituições da União Soviética e do ‘socialismo real’”. Num estalar de dedos, a máxima realização histórica do movimento socialista se torna o seu contrário: a repressão do socialismo. Mas, com a mesma desenvoltura com que se isenta de responsabilidade por suas ações, a “prática revolucionária” atribui a si própria os méritos de seus inimigos: na perspectiva do sr. Negri, o “conjunto de lutas pela libertação que os proletários desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado” abrange “desde o levante de Paris em 1789 até... a queda do muro de Berlim”. A leitura esotérica transmuta a derrocada do comunismo em rebelião anticapitalista.
Como raciocínio filosófico, científico, dogmático ou mesmo ideológico, não faz o menor sentido. Como argumento retórico, é ridículo. Como trapaça, é pueril demais. Mas, como operação de emergência para a salvação da unidade cultural ameaçada, faz todo o sentido do mundo. As culturas são a base da construção da personalidade de seus membros, que desmorona junto com elas. A defesa da cultura é uma urgência psicológica absoluta, que justifica o apelo a medidas desesperadas.
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