A resistência do mundo árabe é parte da luta antiimperialista
José Reinaldo de Carvalho
As guerras preventivas de Bush, sendo a guerra de Israel no Líbano mais uma delas, mostram quão distante está o mundo dos justos critérios para organizar a ordem internacional
No momento em que redigimos estas notas – 28 dias depois do início dos bombardeios israelenses sobre o Líbano – o Conselho de Segurança da ONU ainda não deliberou sobre um documento capaz de produzir o único, razoável e aceitável efeito esperado de algo que seja digno de ostentar o título de resolução desse organismo ao qual a comunidade internacional atribui a responsabilidade de atuar como guardião da paz e promotor da harmonia entre as nações. A única resolução aceitável, no caso do Líbano, para efeito de promover a paz é a cessação dos bombardeios e de quaisquer operações militares israelenses em território libanês, ou o que se convencionou chamar de cessar-fogo imediato.
É sempre positivo que países influentes no concerto internacional e detentores do poder de veto no Conselho de Segurança tomem a iniciativa e impeçam que os Estados Unidos decidam sozinhos sobre o curso dos acontecimentos. Igualmente importante, contudo, é não permitir que os organismos internacionais e a ONU, a fortiori, sejam instrumentalizados e obrigados a deliberar mediante uma pressão chantagista. Israel e os Estados Unidos condicionam o cessar-fogo à manutenção de sua presença como força de ocupação no Líbano e à liquidação física e logística do Hezbolá (do árabe Hizb Allah – Partido de Deus). É digno de asco o cinismo com que as autoridades da diplomacia norte-americana entravam as negociações, impedindo a rápida decisão sobre o cessar-fogo, para permitir o tempo necessário a Israel a fim de completar seu desígnio pelo holocausto da população libanesa. Somente então, cumpridas as condições impostas por Israel e os Estados Unidos, o “processo de paz” ingressaria numa nova etapa, através do envio de uma “força multinacional”, sobre cuja composição, e patrocínio, há muitas controvérsias.
Enquanto isso, a aviação israelense continua a bombardear intensamente o Líbano, a capital Beirute e seus arredores. Em quatro semanas de uma guerra desigual, os facínoras israelenses já provocaram um holocausto. O Líbano encontra-se em chamas e sob destroços – mais de mil mortos, população civil massacrada, infra-estrutura destruída, êxodo de cerca de 1 milhão de pessoas e prejuízos da ordem de 2 bilhões de dólares à economia do país. (O massacre de Cana, em 30 de julho, ficará para sempre na história como uma ata de acusação ao sionismo como sucedâneo do fascismo, como crime de lesa-humanidade pelo qual inapelavelmente um dia, ainda que tardio, terão de pagar, como ato de justiça em nome da dignidade do gênero humano, da razão e da excelência dos valores democráticos.)
Uma avaliação realista nos leva a duvidar da eficácia e da justiça dos entendimentos realizados entre os Estados Unidos e a França em 5 de agosto, base para uma eventual resolução do Conselho de Segurança sobre o “fim do conflito”. Na verdade, da maneira que as coisas estão sendo conduzidas, e dada a intransigência dos Estados Unidos e Israel em impor cláusulas que assegurem seus interesses expansionistas, somos levados a crer exatamente no oposto. Ao não enfrentar, sequer perfunctoriamente, as verdadeiras motivações que levaram Israel a atacar o Líbano em 12 de julho, corre-se o risco de confundir agressor e vítima, dar ainda mais força a Israel e atuar no sentido de agravar os fatores de crise e de guerra, não apenas no Líbano, que é tão somente o cenário atual, mas em toda a região (cenário permanente), ou pelo menos numa parte significativa desta, num arco que abrange Palestina, Síria e Irã.
Não foi o incidente fronteiriço em que forças da Resistência nacional libanesa, nomeadamente o Hesbolá, atacaram uma guarnição inimiga o que provocou a fúria de Israel. Nem é, portanto, a reação israelense algo “desmedido” e “desproporcional”, mas justificável, como pretendem a mídia estipendiária e os governos acovardados. Igualmente, não foi outro fato semelhante protagonizado por forças da Resistência palestina duas semanas antes o que levou o Exército israelense a atacar Gaza e a desencadear atos de terrorismo de Estado contra o governo legitimamente constituído da Autoridade Nacional Palestina. Esses incidentes apenas apressaram algo já metodicamente planejado e preparado.
A atual escalada belicista de Israel é a decorrência de uma estratégia conscientemente elaborada pelos Estados maiores imperialista e sionista. A existência e a atividade de Israel como Estado expansionista e cabeça de ponte do imperialismo norte-americano na região choca-se objetivamente com as aspirações nacionais dos povos árabes e o palestino. A opção de Israel e dos Estados Unidos pela violência decorre da concepção de que Israel só estará em plena segurança se destruir a Resistência nacional árabe e palestina e eliminar os países considerados rivais na região –, hoje Síria e Irã, como foi até recentemente o Iraque de Saddam Hussein. Assim, a guerra no Líbano é parte de um conjunto de ações que abrangem a anexação do território palestino; o impedimento da autodeterminação palestina que só existirá com a existência de um Estado soberano sobre um território íntegro; o desmantelamento do Líbano e a instalação de um enclave militar no território desse país; e a confrontação com a Síria e o Irã, adversários desses planos expansionistas de Israel e, portanto, considerados inimigos figadais dos sionistas.
Por sua vez, os Estados Unidos, que usam Israel como seu instrumento, encontram-se empenhados na execução do seu plano de reestruturação do Oriente Médio, no qual a diplomacia é o que menos conta, como não contava quando eles decidiram atacar o Iraque em 2003, a despeito da oposição do Conselho de Segurança e de constituir uma evidente violação de todas as normas do direito internacional. Do mesmo modo como naquela ocasião, Bush e seus operadores de política externa consideraram a ONU “irrelevante”, Condoleeza Rice declarou, numa coletiva à imprensa em 21 de julho, o que em outras épocas uma política externa conduzida com algum pudor silenciaria por se tratar de algo inconfessável. “Não vejo – disse a secretária de Estado do segundo governo Bush – qualquer interesse na diplomacia se for para voltar ao status quo anterior entre Israel e o Líbano. Penso que isso seria um erro. O que nós estamos presenciando de certa forma é um começo, são as dores do parto de um novo Oriente Médio e, seja o que for que façamos, devemos estar certos de que avançaremos para o novo Oriente Médio e não voltaremos ao antigo”. Entendamos o que disse a senhorita secretária de Estado.
Os Estados Unidos não aceitam que o Líbano permaneça livre da ocupação israelense, que durou 18 anos, desde 1982 a maio de 2000, quando as tropas sionistas foram escorraçadas do país pelo Hezbolá, que então se credenciou e se engrandeceu aos olhos do povo libanês não como organização “terrorista” ou “fundamentalista”, “a serviço do Irã”, mas como força de libertação nacional. “O Hezbolá goza de grande prestígio no Líbano porque libertou nosso país. Em todo o mundo árabe você escuta ‘o Hezbolá preserva a honra árabe, e apesar de ser muito pequeno enfrenta Israel’. E é claro que Nasrallah (secretário-geral da organização) tem o meu respeito”, disse o presidente libanês Emile Lahoud, em entrevista publicada no jornal alemão Der Spiegel – reproduzida no Brasil pelo sítio de internet UOL. A secretária de Bush não aceita também que o Hamas, outro movimento de Resistência nacional, indexado como “organização terrorista”, tenha vencido as eleições na Palestina, como não aceita que depois da tentativa do imperialismo norte-americano de dividir o Líbano, estimulando a chamada “Revolução do Cedro” em 2004, o Hezbolá tenha conquistado quase um terço das cadeiras do Parlamento nacional e tomado parte do governo do país, o que dissipou o perigo de uma guerra civil. O governo estadunidense não aceita que sua secretária tenha sido instada pelo primeiro-ministro libanês, Fouad Siniora, a cancelar a viagem ao Líbano quando ocorreu o massacre em Cana e que tenha dito que não negociaria enquanto não se declarasse o cessar-fogo. Ou que esse mesmo governante que os Estados Unidos supunham poder manipular indefinidamente tenha, também ele, agradecido de público ao Hezbolá “pelo sacrifício feito em nome do país”. A isso é que a secretária chama de “volta ao status quo”. E a isso é que os EUA declaram guerra, mancomunados com seus sicários israelenses.
Tudo está a indicar que o novo Oriente Médio de Bush e Olmert, e todos os herdeiros de Sharon, depende mais da repetição dos crimes da aviação israelense do que dos acertos entre Douste-Blazy e John Bolton. Para além da retórica, estão as manobras estadunidenses e israelenses protelatórias do cessar-fogo. No mundo unilateral e convulsionado pelas guerras preventivas de Bush, as únicas ações consideradas válidas na atual crise do Oriente Médio são a ocupação unilateral dos territórios palestinos; a construção do muro; a divisão da Palestina em três bantustões e a redução do seu território à décima parte; o desrespeito sistemático a anteriores resoluções da ONU; a nova (atual) invasão do Líbano; a destruição desse país; a nova invasão de Gaza; e as ameaças abertas de confrontação com a Síria e o Irã. Tem sido assim também no Afeganistão e no Iraque, que não são guerras passadas, mas conflitos em curso, em pleno desenvolvimento. No Iraque sucedem-se os massacres. Falluja e Hadhita são fatos da atualidade a mostrar que o novo Oriente Médio de Bush não será fruto de um entendimento para a paz, mas de uma carnificina.
Entretanto, mirando a perspectiva e tendo em conta as forças em confronto, algo nos diz que não existirá o novo Oriente Médio concebido pelo imperialismo norte-americano. E que do holocausto provocado por ele em conluio com seus aliados de Israel, poderão resultar vários cenários, difíceis de prever pela dureza dos confrontos que inevitavelmente se produzirão. Uma coisa é certa, porém. Da carnificina com que Bush empesta o ambiente no limiar do século XXI não surgirá a paz, nem a estabilidade.
No Oriente Médio não cabe outra solução duradoura que não passe por uma resolução abrangente e justa para o conflito árabe-israelense, que não se restringe ao Líbano. O ponto de partida terá de ser a decisão sobre a questão palestina, com a retirada de Israel de todos os territórios ocupados, a criação do Estado nacional palestino e o respeito à soberania de todos os países da região, o que pressupõe a convivência com a Síria e o Irã, tal como estes são.
A convicção de que o novo Oriente Médio do imperialismo norte-americano é uma miragem difunde-se cada vez mais não só nos países da região, mas entre as forças que em todo o mundo e mesmo nos Estados Unidos são solidárias com a Resistência árabe-palestina. E um espectro assustador a tirar o sono dos senhores da Guerra que habitam a Casa Branca e operam desde o Pentágono. É cada vez mais improvável um Oriente Médio dócil e submisso aos ditames do imperialismo estadunidense e de Israel. A derrota dos planos israelenses e norte-americanos quanto ao futuro do Oriente Médio está sendo desenhada também no terreno político. A atual guerra israelense no Líbano é o mais duradouro conflito entre os agressores sionistas e a Resistência árabe. E que diferença para 1967, quando Israel se impôs numa guerra de seis dias! Um mês depois de iniciado o atual conflito, não há perspectiva para Israel de silenciar e deter os Katiusha. Em 5 de agosto, ocorreram as primeiras batalhas terrestres entre o exército invasor e as forças da Resistência. É indisfarçável o sentimento de derrota em Israel e, inversamente, em meio ao horror semeado pelos bombardeios israelenses, é também patente um sentimento de orgulho nacional no Líbano por estar conseguindo levar adiante a resistência, pois nunca nenhuma força militar árabe agüentou por tanto tempo um ataque de Israel, que possui o mais poderoso exército da região. As conseqüências políticas são óbvias e inevitáveis. O Líbano, que há um ano estava à beira de uma guerra civil fomentada pelos EUA e Israel que instrumentalizam determinadas forças políticas internas, hoje conta com o Hezbolá, como fator político e militar decisivo para o enfrentamento do agressor externo.
Não é difícil prever que o mesmo sentimento de orgulho nacional e de ser possível resistir se espalhe a outros rincões do mundo árabe.
O mito da invencibilidade norte-americana também se esboroa no Iraque. Na semana seguinte ao massacre de Cana, generais estadunidenses e seus pró-cônsules no Iraque foram obrigados a admitir que o país se encontrava à beira da guerra civil. Três anos depois da ocupação, está longe, muito longe o momento em que os Estados Unidos poderão dizer que afinal “democratizaram”, “reestruturaram” e submeteram o Iraque. Tal é a sensação do fracasso que se debate abertamente nos círculos políticos e militares e mesmo às esconsas, dentro da Casa Branca e do Pentágono sobre uma irrecusável disjuntiva: permanecer no terreno sofrendo vergonhosas derrotas ou retirar as tropas.
George W. Bush e Condoleeza Rice talvez tenham razão num ponto. O holocausto dos libaneses é de fato as dores de um parto. Longas e lancinantes dores, não do nascimento do “novo Oriente Médio” de dominação colonialista, mas de uma nova luta antiimperialista, que objetivamente vai alterar a “novíssima” ordem mundial instaurada por Bush. Há muitas ilusões no mundo de hoje quanto ao desenvolvimento do cenário mundial. As guerras preventivas de Bush, sendo a guerra de Israel no Líbano mais uma delas, mostram quão distantes estamos duma “raison de Sisteme”, em que prevaleçam o multilateralismo e justos critérios de legitimidade para organizar a ordem mundial. Resistir e lutar, com firmeza, tenacidade e amplitude, com capacidade de unir todas as forças do progresso, da paz, da democracia e do socialismo parece ser a postura e a perspectiva do movimento antiimperialista em face do unilateralismo e do belicismo dos EUA e de seus aliados. A resistência em curso no Oriente Médio é parte desse movimento, acumula na mesma perspectiva.
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